omeçaram os preparativos para o transporte de abastecimentos a Madina do Boé.
Os géneros começaram a ser transportados para o destacamento do Ché-Che, onde ficam armazenados.
Não devem faltar muitos dias para que a companhia de caçadores n.º 1546 atravesse de novo o rio para escoltar as viaturas que transportarão os géneros e as munições para o abastecimento, durante a época das chuvas, da companhia n.º 1416, aprisionada dentro de um rectângulo de arame farpado, numa terra a que ainda se dá o nome de Madina do Boé. Um nome que apenas faz lembrar, a quem o escuta, o sofrimento de um grupo de homens valorosos que, estoicamente, ali vão permanecendo.
Pelas onze horas e meia o pelotão do Alferes Y, partiu para o Ché-Che, escoltando as primeiras viaturas carregadas de géneros.
Não receberam ração de combate, porque a companhia precisa de economizar
algumas dezenas de rações... Passaram fome!
É terrível esta insensibilidade!... Esta falta de humanismo e de sentido de responsabilidade.
É chocante este abuso do poder, esta sede economicista, que se alimenta, exclusivamente, do sofrimento dos outros.
Pela manhã parti para o Ché-Che, com o meu grupo de combate, a escoltar
as viaturas que transportam os géneros que estão a ser armazenados nessa localidade.
No destacamento não há condições de armazenamento para os géneros que transportamos.
Fica tudo ao ar livre, ao sol e à chuva. Grande parte do abastecimento não vai
chegar ao destino.
A culpa é toda de quem programou o transporte para esta época... Mas aqui, por
incrível que pareça, não se pedem responsabilidade a ninguém.
É a tropa... Quem se lixa, depois, são aqueles que acabam por sofrer a fome e
a necessidade... Quem faz as asneiras acaba sempre por não sofrer nada... Há pessoas
afortunadas que nasceram já com o privilégio de poder fazer todo o tipo de asneiras, sem que ninguém, depois, as incomode...
A tropa é o mundo dessa gente... É uma corporação de medíocres...
Guiné > Região do Boé > Rio Corubal > Cheche > A jangada que fazia a travessia do rio.
, 1966/68).
Foto: © Manuel Coelho (2011). Todos os direitos reservados [Edição: LG]
Dia 22
Pelas onze horas chegou, sob o comando do capitão, o restante pessoal da companhia.
O Tenente Coronel X, comandante do meu Batalhão, veio, também, na coluna.
Parte do pessoal atravessou, ainda cedo, para a margem Sul do Corubal e ocupou a zona ribeirinha. Entretanto, durante toda a tarde, a jangada foi transportando para a margem Sul as viaturas e os géneros.
Toda a companhia passou a noite na margem Sul.
Durante a noite choveu muito.
Como não havia local onde nos abrigássemos apanhou-se com a chuva toda. Foi o suficiente para ninguém dormir nada.
Perto da margem do rio rebentou uma armadilha anti-pessoal sob a roda de uma
viatura. Fez apenas estragos ligeiros e não feriu ninguém.
A mina anti-pessoal rebentou, perto do tronco de uma árvore, onde, normalmente, todos temos tendência para nos encostar.
Foi uma sorte a viatura ter passado primeiro...
Dia 23
Continuou a travessia de géneros para a margem Sul, onde nos encontramos.
É uma operação lenta e muito perigosa.
A jangada está arruinada e não oferece nenhumas condições de segurança.
Hoje, caiu outra viatura ao rio e por lá ficou mergulhada, a tomar banho.
Desta vez também não tivemos, ainda, desastres pessoais. Temos andado
com muita sorte.
Se um dia o raio deste calhambeque perde a estabilidade quando transportar
soldados, será uma catástrofe..
De noite, as formigas e os mosquitos não deixaram dormir ninguém
O local onde se pernoitou, devido às chuvas, transformou-se num enorme lamaçal.
Dia 24
Ainda cedo iniciou-se o transporte dos géneros para Madina do Boé.
Fiquei todo o dia, com o meu grupo de combate, emboscado na zona da tabanca
do Vilongo, uma povoação abandonada, cujo espaço o capim depressa se encarregou
de conquistar.
Pelas duas horas da tarde, já perto do cruzamento Béli/Madina, explodiu uma
mina anti-carro sob a roda de uma viatura.
Uma das secções do meu pelotão, que seguia do Vilongo [Bilonco] para o Ché-Che, a prestar segurança às viaturas, foi toda projectada para o chão.
Todos os soldados dessa secção ficaram feridos. Todos menos o Eusébio que, por simples acaso, não seguia naquele meio de transporte.
Reparei que o rapaz trazia um terço pendurado ao pescoço.
Nenhum dos feridos corre perigo, mas foram todos transportados para
Bissau de helicóptero
Ao cair da noite fomos para Madina do Boé, onde se pernoitou.
O nosso comandante de batalhão acompanhou-nos sempre durante esta aventura.
É dos poucos, (ou talvez o único) comandantes de batalhão que se metem nestas andanças.
Regra geral os comandantes de batalhão preferem andar longe dos locais onde
os tiros se façam ouvir, escolhem andar de avião, a algumas centenas de metros de
altura, mesmo para comandar as forças de que são responsáveis.
De avião, e a uma altura considerável, longe do alcance das metralhadoras
antiaéreas, é muito mais seguro viajar, ou proceder ao comando, através das
comunicações rádio.
Mas, o comandante do batalhão de caçadores n.º 1887 é um homem diferente.
Em Madina, um alferes da guarnição local, ao vê-lo em tronco nu, a pele queimada, confundido entre os soldados, veio perguntar-me:
- Eh pas!.. Quem raio é aquele sargento?
- Caluda... - Respondi-lhe! Olha que se trata do comandante do meu batalhão.
O alferes ficou admirado. E tinha razão para isso.
Efectivamente, as altas patentes não se dão ao trabalho de experimentar no terreno um pouco do sofrimento que, no dia, a dia, aflige os seus homens.
Esta guerra está a ser feita pelas baixas patentes, principalmente por milicianos, sejam eles furriéis e alferes, ou em menor número, capitães. Os altos comandos preferem a tranquilidade dos gabinetes, mesmo que pouco confortáveis, a burocracia
e a vida fácil dos quartéis..
Quando é necessário exercer o comando das operações nunca se deslocam com
os seus homens. Através do rádio, e do avião, eles indicam os objectivos.
Convictos, eles ordenam:
-Siga pela direita. Avance mais para a frente. Atravesse a bolanha...
- Faça fogo para ali. Utilize o morteiro.
E a tropa macaca, como as elites nos chamam, lá vamos cumprindo tantas parvoíces que às vezes nos mandam fazer. Autênticas loucuras donde, às vezes, só o acaso nos deixa sair com vida...
Depois, quando chegar o fim das comissões, eles, cheios de orgulho, ficam com o peito cheio de medalhas e condecorações. São uns heróis. Desfilam garbosamente em grandes paradas, perante os ministros embriagados de júbilo.
E ouvem-se discursos! Decidem-se louvores! E escreve-se a história com uns heróis feitos de barro!
E os soldados, esses, se tiverem a sorte de não regressar numa urna funerária, dificilmente conseguirão regressar livres das enfermidades tropicais, das mutilações, dos traumas e da miséria.
É este o panorama de um exército lançado numa guerra em que já ninguém acredita. Numa guerra que apenas terá ligeiro interesse para meia dúzia de iluminados que andam por aí quase só a exibir os galões. No fim, eles levam pelo menos algum dinheiro. Quem sabe. Vão mesmo levar algumas condecorações.
Recebi carta de Lisboa, de uma rapariga que deseja ser minha madrinha de guerra...
Dia 25
De manhã, partindo de Madina, a companhia foi ao monte (uma pequena elevação) junto ao cruzamento de Béli/Madina, fazer uma pequena operação. Depois, um dos pelotões foi ao Ché-Che buscar mais géneros.
De tarde voltou toda a gente para Madina.
O comandante de Nova Lamego veio a Madina.
Como não podia deixar de ser, veio de avião.
No regresso ofereceu boleia ao meu comandante de batalhão, mas ele não aceitou. Prefere regressar, acompanhando-nos, conhecendo o nosso dia a dia, e as dificuldades que em cada encruzilhada estão à nossa espera.
A proceder assim não vai receber condecorações. É que as medalhas, regra geral, destinam-se a condecorar outro tipo de heróis. Os que tiverem mais horas de voo, em Dornier 27, ou em helicóptero, os meios de transporte mais utilizados pelos altos comandos.
- Caro comandante... Se assim continuas não fazes carreira. Ninguém se vai lembrar de ti. Mesmo que não sejas muito ambicioso, terás sempre na mente, como qualquer bom militar, atingir, no mínimo, o posto de general. É um desejo mais do que justo... Mesmo razoável...
- Mas, se não fores como os outros, insensível e desumano, oportunista e alheio ao
sofrimento dos teus homens, nunca atingirás o topo da carreira que abraçastes.
Quem me dera não ser profeta...
Dia 26
Às sete horas da manhã iniciou-se a viagem de regresso a Nova Lamego.
Caminhou-se quase sempre sob uma chuva intensa.
Recuperou-se a viatura que accionou a mina anti-carro.
Ao anoitecer as viaturas já estavam todas na margem Norte do rio Corubal. Desta vez a jangada portou-se bem. Não nos pregou nenhuma das partidas do costume. Já merecíamos ter alguma sorte na travessia deste rio.
Cansados e famintos, atingimos Nova Lamego quase à meia noite.
Foi quase uma semana de fome, sede, fadiga e trabalho sem fim. Acima de tudo foi uma semana de tensão nervosa contínua, onde a miragem do perigo foi constante, tocando, às vezes, os limites da resistência psíquica de cada um de nós.
Mas, estoicamente, todos vão aguentando...
Todos vão passando além dos limites da capacidade de aguentar...
Regra geral, a nossa capacidade de resistir é sempre maior do que aquilo que nós próprios pensamos.
Somos sempre capazes de chegar um pouco mais longe...
Impressionou-me, nesta viagem, a personalidade do capitão da companhia de Madina do Boé. É um homem especial.
É mesmo um homem invulgar. Dele pode dizer-se que é um guerreiro nato.
Domingos Gonçalves
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Guiné >
Mapa da província (1961) (Escala: 1/500 mil) > Detalhe: região do Boé > A única "estrada" que ligava Nova Lamego (carta de Nova Lamego) ao sul (até Cacine), passando por Canjadude (
carta de Cabuca), atravessando o Rio Corubal em Cheche (margerm direita) (
carta de Jabiá) e segundo depois para Madina do Boé (
carta de Madina do Boé)...
Entre o Cheche e Madina do Boé havia o cruzamento para Beli (
carta de Beli). Entre o Cheche e Madina do Boé a única povoação (abandonada) que havia em 1966 era Bilongo.
Um dos mitos da propaganda do PAIGC foi o da declaração da independência em 24 de setembro de 1973 em Madina do Boé, o que nunca aconteceu... Madina do Boé foi retirada pelas NT, por ordem de Spínola, em 6 de fevereiro de 1969 (Op Mabecos Bravios). No regresso desta operação houve o trágico desastre no Cheche, com 47 mortos por afogamento.
Guiné > Região do Boé >
Carta de Jabiá (1961) (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Che-Che, por onde passava a "estrada" para Madina do Boé com cruzmento à direita para Beli. Estas 3 posições (Beli, Madina do Boé e Cheche foram abandonadas pelas NT, por ordem de Spínola). O aquartelamento mais a sul de Nova Lamego passou a ser Canjadude, guarnecida pelos "Gatos Pretos" (CCAÇ 5). Eram precisos 4 cartas militares para se ir de Nova Lamego a Madina do Boé (cinco, no caso de Beli).
Infografia: Blogue Luis Graça & Camaradas da Guiné (2014).
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Nota do editor
Último poste da série de 9 DE SETEMBRO DE 2011 >
Guiné 63/74 - P8759: Memórias da CCAÇ 1546 (1966) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (2): A Viagem, O Desembarque e o Passeio pelo Geba