Queridos amigos,
É um livro, a vários tipos, raro. Raro pela confidência, raro pelo filtro que o autor se impõe quanto ao sujeito da memória: a infância, a recruta, a especialidade que culmina, praticamente, com a convocatória para a guerra.
Não se sabe porquê, desembarca em Luanda e é direcionado, de supetão, para a Guiné, viaja até Bedanda.
Não se perde em considerandos nem faz crónica da guerra, regista estimas e chega depois a hora do sinistro que o transfigurou, até hoje. Impressiona quando escreve sobre os guineenses, captou-lhes a ternura, o gosto pela música, a afabilidade.
Temos aqui um livro que é também um grito de revolta, é alguém que superou o pesadelo e não o esconde. É um livro raro, encontrou um caminho inesperado depois da agonia de se ver sem duas pernas, venceu o destino.
Um abraço do
Mário
Quatro rios e um destino
Beja Santos
“Quatro Rios e um Destino”, por Fernando Sousa, Chiado Editora, 2014, é um registo de vivências singular, onde se cruzam o enaltecimento de valores e o grito de protesto pelas desumanidades que experimentou no Anexo do Hospital Militar, após o grave sinistro que teve na Guiné.
O enaltecimento de valores arranca logo com a descrição da sua infância, um texto singelo, carregado de amor familiar e telúrico, tudo contado sem arrebiques, com o gosto de confidenciar:
“Aos sete anos, já acompanhava o meu pai na colocação de armadilhas para apanhar caça, sobretudo coelhos e perdizes, que por ali havia em abundância. Porque, naquela terra, longe de tudo, era importante aprender a sobreviver (…) Aos seis anos, já calcorreava todos os caminhos e veredas que conduziam às várias propriedades da família, tendo como companhia nestas andanças uma burra, que tudo levava e tudo trazia, e muitas vezes agarrado ao rabo dela, para a poder acompanhar naquelas caminhos pedregosos, repletos de altos e baixos”.
Lembra-se das férias que passou na colónia balnear infantil de O Século, Lisboa deslumbrou-o, foi cidade que o marcou para sempre. Salta destas recordações de infância para a sua entrada no RI 14, e passar de mancebo a instruendo militar, estávamos em Outubro de 1969. Não gostou das carecadas nem das outras praxes. O comandante de pelotão é tratado como ratazana de esgoto:
“Por pura vingança desmedida, procurava os sítios onde houvesse mais água e lama, dentro e fora
do quartel, para obrigar todos a rastejar e rebolar, até que ficassem completamente encharcados e cobertos de lama, para, de seguida, se rir e gozar. Todos nós passámos um sacrifício tremendo com aquele pulha”.
Em Janeiro de 1970, veio a caminho do RI 2. Em Março, é chamado
Fernando Sousa. Entrou para a Tabanca Grande em 6/8/2014 |
Para ganhar uns cobres, desata a colorir fotografias a preto e branco. Mandam-no de viagem a Bambadinca, vai acompanhar material que foi metido num batelão. Durante a viagem ao longo do Geba, foi surpreendido por um instrumento musical que desconhecia, o korá:
“Fiquei na dúvida se seria uma cabaça redonda cortada ao meio, onde fixaram uma pele de cabra ou de outro animal para mim desconhecido. Numa das metades da dita cabaça, as cordas que serviam de fixação dessa mesma pele, da qual se repercutia o som, eram também tiras talvez desse ou outro animal, sabiamente cortadas e de forma harmoniosa fixas para manterem a pele principal devidamente esticada, onde tudo batia certo e estava perfeito, menos as cordas de produzir o som que eram fio de náilon habitualmente usado pelos pescadores, que prendiam na cabaça em algumas dessas tiras de pele ainda com pelos do animal, de forma inteligente, e no outro extremo, fixos na ponta de um bambu, como que feito à pressa, e mal conseguiam manter a tensão necessária para que o som produzido tivesse qualidade”.
Ia atento às belezas que avistava nas margens do Geba. Viu um crocodilo a apanhar sol e um pássaro às bicadas no meio dos dentes. Feita a descarga regressa a Bissau e dão-lhe como destino a CCAÇ 6, em Bedanda, ia atormentado e a viagem foi uma tormenta. Já conhecia dois rios, o Tejo e o Geba, agora vai a caminho do Cumbidjã, dali seguirão para o rio Ungauriuol, este com curvas muito apertadas e estreitas, em que os barcos quase roçavam no tarrafo.
Faz estimas, logo com o Furriel Ribeiro e o 1.º Cabo Leito, apreciou as qualidades do capitão Ayala Botto. Todas as suas descrições deste teatro de operações serão sincopadas, enxutas, fala dos seres humanos que o cativaram, caso do marido da lavadeira que o convidou para almoçar. Está polarizado os maus momentos que se seguem, aquela manhã igual a tantas outras manhãs, na encruzilhada entre o Cumbidjã e o Malamba, será ali que toda a sua vida se transfigurou, ao princípio não sentiu nada depois despertou no meio de chamas a arder:
“Ardia sobre o meu corpo retalhado, num buraco que a própria explosão cavou. Ali mesmo reconheci que já não era mais eu! Vejo que uma perna tinha pura e simplesmente desaparecido, restando dela farrapos de carne pendurados! Da outra, apenas via um osso completamente descarnado, espetado naquele chão ardido, e ao lado uma bota com um pé nela metido, pendurado por um tendão, agarrado àquele osso lambido, que, outrora, tinha feito parte integrante do meu corpo”.
Inicia-se o calvário dos tratamentos no Hospital Militar em Bissau. Ao ganhar consciência do sucedido, com todas aquelas dores como facas cravadas, amaldiçoa a sua sorte. Pede ao sargento de enfermaria para lhe pôr termo à vida. Tomba os frascos indispensáveis ao seu tratamento, é amarrado à cama. O 1.º Cabo Sousa chora copiosamente. Era um homem de fé, um homem que rezava, agora está enraivecido, aquele tempo marcou-o para sempre:
“Ainda hoje me dói o arrancar das ligaduras, das compressas, daquela carne dilacerada e queimada! O tormento de acordar de cada anestesia!”.
E passa a confrontar-se com as dores dos outros naquele espaço que ele designa por antecâmaras da morte. Um dia ganha coragem e escreve à família, carta tranquilizadora, levava 22 dias de sofrimento atroz. Suavizou-o a visita da mais velha das cinco mulheres do seu colega de Bedanda, que tanto estimava. Está impaciente para partir para Lisboa, esse dia acabou por chegar. E em Lisboa vai viver tempos terríficos. Odeia que lhe digam coisas como “Sabes meu filho, tu até tiveste muita sorte!”. Há uma atmosfera de tragédia ali à volta: “Era desgraçadamente ali que muitas namoradas, noivas e madrinhas de guerra sofriam a maior desilusão das suas vidas, ao encararem com o que restava das suas paixões, tornando seus sonhos em pesadelos!”.
Toda a sua escrita ressuma cólera não contida pelo que viu e viveu no Anexo do Hospital Militar Principal, lugar maldito, só ao fim de oito meses que cederam uma cadeira de rodas. Livro profusamente ilustrado, e escreve a legenda, estamos em 1972, vemo-lo passivo, desalentado, numa cadeira de rodas:
“A total decadência. O passar uma tormenta. O viveu num inferno. Um condenado. Um sobrevivente. Um nascido do nada. Um irreverente. Um inconformado. Um renascido para a luta. Mas sempre eu, consciente de mim, do que fui, do que era e do que teimosamente ambicionava ser”.
Aprende a outra dimensão da autonomia, a depender, com todas as suas forças de si mesmo, cria novas convicções. Volta a Bebeses, descobre que não tem ali lugar, refugia-se na cidade, transforma-se no homem que é hoje. Irá até cais de Alcântara para prestar homenagem a si mesmo, como sinal de que tinha regressado e estava vivo.
Hoje assume-se como não-crente, basta-lhe acreditar em si e em todos os homens de bem, confessa que terminou a última parte das suas recordações com dificuldade. Quer que o leitor não duvide dele: “Porque de verdade tudo isto que passei vos relato foi real. Foi mesmo assim”.
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Nota do editor
Último poste da série de 17 de Novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13905: Notas de leitura (651): 1 de Novembro de 2014, na Feira da Ladra (3) (Mário Beja Santos)