"Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”
Autor: Daniel Gouveia - Âncora Editora, 2015
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2017:
Queridos amigos,
É a escrita de um septuagenário experimentado, os seus livros de guerra distinguem-se dos demais por revelarem um ser curioso, deslumbrado com a Natureza, vai aprendendo a olhar e a interessar-se pelo Outro, aquela guerra foi a sua matéria-prima para aprender a crescer. Não está desatento ao fator bélico, não é mordaz ou cínico ou calhandreiro ou está tomado por acessos de azedume, não, é medularmente construtivo, divertido e convivente. É esse o vigor que perpassa pelas cartas que ele selecionou e que enviou à sua dama. No meio de uma chuva imensa, conta entusiasmado que presenciara um espetáculo magnífico, talvez uma hora antes de a clareira se alargar e formigueiros inteiros mudav am para os sítios altos, aranhas passavam carregando sob as patas um saco com os ovos, gafanhotos, lagartas buscavam lugar seguro contra a subida das águas. E estava sempre a aprender com o guia Teixeira que lhe dizia que ia chover muito e apontava para a bicharada em fuga.
Um homem que escreve assim tem o coração pacífico, aprende a superar os antolhos com uma perna às costas.
Um abraço do
Mário
Cartas do mato, por Daniel Gouveia (2)
Beja Santos
De Daniel Gouveia já aqui se saudou o seu notável “Arcanjos e Bons Demónios – Crónicas da Guerra de África”, DG Edições, 3.ª edição, 2011. Em abono dessa sua preciosa narrativa, vamos agora dar atenção a “Cartas do Mato – Correspondência Pacífica de Guerra”, Âncora Editora, 2015. Por uso e costume, o centro das nossas atenções vai para o que se escreve sobre a guerra da Guiné, mas faz-se sempre o reconhecimento de que só ganhamos em comparar o que é comparável em toda a literatura da guerra; em comparar e distinguir, pois claro, cada teatro tem as suas especificidades, houve diferentes hostilidades. Mas ao comparar e distinguir também elevamos o nosso olhar para um patamar de princípios, de ética, de fusão da camaradagem: os valores e os sentimentos universais, aquilo que é transversal no combatente, seja a descoberta dos novos ambientes, as formas de adaptação, o quinhão da solidariedade, as angústias e os medos, a repartição dos farnéis, o combate contra a solidão, e o medo das picadas, a angústia das esperas, o caminhar dentro das florestas húmidas, a reação à emboscada; e a caraterização dos protagonistas, o cozinheiro, o padre, o apontador de bazuca, o oficial e o sargento, a ansiedade na chegada do correio.
Os meses passam, Daniel Gouveia está em Quiximba, anda à procura de soluções práticas, uma delas passa pelo uso do apito: “Comprei um apito de árbitro, para evitar berrar ordens, sobretudo nas paradas dos quartéis alheios, quando a tropa anda dispersa a falar com os conterrâneos. Tenho um código de apitadelas e aquilo funciona como um relógio, com uma eficácia de que nem eu suspeitava. Uma apitadela curta e duas longas e tenho toda a minha gente a correr para os Unimogs, estejam na cantina, na caserna ou nas latrinas”. Vai encontrando soluções expeditas para evitar acidentes e simultaneamente ter as armas prontas as funcionar. Sem descurar a guerra e a logística, é um alferes profundamente atento a brejeirices e dá conta de divertidos entremeses culturais, caso de um soldado cuja mulher tinha ido a França e lhe mandara um postal ilustrado, ele queria saber o conteúdo:
“Vendredi = Sexta-feira
Ma cheri marrie
je ofere-ça a mon marrie que bocú eme vu, toutjours, e jame múa no
pa te obilie
je te envie compliments escuzemuá
bocú
rvoá macheri
mom bena mó”
(Com boa vontade, poderia traduzir-se assim: Sexta-feira/Meu querido marido/ofereço isto ao meu marido que amo muito, sempre e jamais te esqueço/mando-te cumprimentos, desculpa/muito/adeus meu querido/meu bem amor). Está bem integrado, partilha as festas dos seus homens, ridiculariza o empolamento dado pelos relatórios oficiais, ele encontrara ninharias e a PIDE destacava que a unidade “apreendera grande quantidade de material ao inimigo, numa operação de limpeza a umas grutas aonde se encontraram vestígios de permanência de um numeroso grupo. Nessa operação foram recuperadas 10 enxadas indígenas, dez metropolitanas, dinheiro e documentos ao inimigo”. E comenta, ladino: “Tudo aldrabice. As enxadas eram três, o dinheiro era uma moeda de cinquenta centavos e os documentos eram uma ficha de recenseamento local e uma guia para consulta no hospital de São Salvador”.
São deliciosos os seus comentários com o guia Teixeira, andavam em patrulha e detetaram o rasto de uma manada de burros-do-mato:
“- São poucos. Trazem cinco ou seis crias. O chefe é este – aponta uma pegada – e é muito velho. Aqui escorregou um. Aqui uma cria correu para alcançar a mãe.
Já vou percebendo alguma coisa, quando os sinais são nítidos. A vista vai-se treinando. Às vezes encontro um rasto e chamo o Teixeira para interpretar. Outras, arrisco eu a interpretação e ele vai corrigindo:
- Teixeira, olha, pacaça do ontem.
- Do hoje, meu alferes…
- Cabra do mato, da água para aquela mata, parando de vez em quando a olhar para trás, porque o vento estava contra e só trazia o cheiro do que estivesse à frente.
- Não, meu alferes. Olhava para trás porque desconfiava da onça no rasto.
- Mas não há pegadas de onça…
- Cabra do mato passou sobre esta lama, marcou as patas dela. A onça passou ao lado, no chão seco, não marcou.
- Então como é que sabes que era onça?
- Este arbusto tem pelo de onça. Vê, meu alferes?
- Vejo…
É assim que vou fazendo a minha aprendizagem de pisteiro”.
Vai de férias e volta a Quiximba, dá notícias da rotina, da chegada do cinema ao refeitório, dos autos, das colunas, faz um comentário duríssimo aos camionistas: “São uma raça especial de gente, rude e grosseira, o rebotalho humano que já não tem onde cair, nem sequer numa terra como Angola, onde qualquer paspalho subsiste, e agarram-se à última das últimas tábuas de salvação: guiar camiões pelas zonas de guerra, estabelecendo contacto entre as povoações e os centros urbanos e levando os abastecimentos à tropa. Por um lado, são admiráveis, pelo que suportam, por aquilo a que se sujeitam a troco de 6.000$00 por mês, melhor dizendo a 1$20 por quilómetro. Por outro lado, já pouco têm a perder e gente desta só se recruta nas camadas marginais da sociedade. Donde, a violência de atitudes, a falta de educação e até hostilidade em relação ao resto das pessoas”.
Inaugura-se a capela de Quiximba, o padre Campos, antes de benzer a capela, dirige-se às tropas nestes termos: neste momento, não chegou ainda às unidades o modelo oficial em português, da bênção, porque agora só se faz em português, de maneira que vai ser em latim, vocês não vão perceber nada, mas também é só cinco minutos…
Aprende a dar injeções, nem aqui dá tréguas à brejeirice: “Cheguei a combinar com o enfermeiro Bessa o truque de, no último momento, ele passar-me a agulha e ser eu a espetá-la sem o paciente saber. Mas a notícia espalhou-se em menos de um fósforo e bastava eu estar na enfermaria à hora dos tratamentos, para logo desaparecerem os doentes que tinham de levar injeções".
Estamos em Maio vão chegar 350 famílias que viviam no Quanza Norte, virão fazer sanzala para o Quiximba. Chama-se a “Operação Robusta”. É um dos grandes textos de Daniel Gouveia, como veremos.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 14 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17669: Notas de leitura (988): “Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”, por Daniel Gouveia, Âncora Editora, 2015 (1) (Mário Beja Santos)