1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Junho de 2019:
Queridos amigos,
Há uma consigna permanente na obra do Alberto Branquinho, tenho para mim que ele usa a cambança como o termo da maleabilidade entre o seguro e o inseguro, o destemor e o medo, a rapidíssima alteração de situação, estar a meter uma garfada à boca e cair a primeira morteirada entre duas fileiras de arame farpado, pode-se cambar o rio, uma conversa totalmente inusitada junto ao monumento dedicado aos nossos mortos, ali bem perto da Torre de Belém, pode-se cambar naquele quartel que tem mesquita e chefe religioso, camba-se quando se sonha com o estrelejar dos rebentamentos e alguém comenta que parece o S. João no Porto, carago.
Temos aqui Alberto Branquinho no seu melhor e que Deus o conserve com o seu engenho e arte.
Um abraço do
Mário
Sempre zombeteiro, sempre em cambança, dentro das guerras: Alberto Branquinho
Beja Santos
De “Cambança - Morte e vida em maré baixa”, por Alberto Branquinho, publicado em 2009, fez-se oportunamente referência. Temos, desde 2013, “Cambança Final”, Sítio do Livro, eu desconhecia a obra, é uma revisão aumentada da obra anterior, o confrade Alberto Branquinho merece felicitações por estes contos breves, registos assombrados ou coloridos e águas-fortes onde prima uma forte contenção, um rigor económico na explanação das situações e uma simplicidade descritiva que recomendam a releitura nos dias seguintes, são trechos que possuem todos os aliciantes indispensáveis para uma proveitosa releitura.
E não é só a simplicidade, é a universalidade, quem por ali viveu e combateu entra rapidamente nesta sala de espelhos onde nos reconhecemos. Quando ele fala na apresentação de um lugar, pode ser uma vila com casas de pedra e tijolo, casas comerciais em uso ou depois de abandonadas ao serviço das nossas tropas; há população nas moranças, alfaiates e lavadeiras, um funcionário colonial e até um agente da PIDE. Aconteceu connosco, vivemos nesses lugares.
O confrade Alberto Branquinho sabe urdir atmosferas onde cabe a população sobre duplo controlo, o horror dos destroços humanos ou a explosão de uma mina anticarro, há mesmo pedaços de carne que não se podem identificar, faz-se a dedução no destino, após a contagem do pessoal, e fica tudo dito, não se sofre mais nem menos, fica só o apontamento de que naquela guerra tais coisas aconteceram. E aconteceram connosco. Há até mesmo uma memória de guerra quando se vai visitar o Monumento aos Combatentes do Ultramar junto à Torre de Belém, dá-se um encontro, alguém entra imprevistamente em diálogo, acende-se o tumulto da guerra. Não ficamos imunes àquela conversa tão descabelada.
Feito o preâmbulo, diga-se em abono da verdade que a escrita de Alberto Branquinho tem marca de água, é um compósito de situações pícaras ou bizarras (como ele gosta de observar) onde ele tem a faculdade de se distanciar e até de expurgar o que seguramente experimentou: o lodo, a sede, os equívocos da comunicação, o prazer inexcedível em beber uma coisa tão boa que se chama água, os comportamentos mais imprevisíveis na reação a uma flagelação, as muitas digressões entre quartéis, a atmosfera na messe de oficiais, aquele major de operações que decidiu ir ao terreno, desconfiado que a malta se andava a desenfiar e que regressou feito em chaga. E há a aculturação, as superstições, a ação psico, o turra que se faz guia para descontentamento de muitos, eram operações que se podiam evitar se ele tivesse levado um balázio lá no mato. Também acontece o inaudito, ser posto na mesa um arroz de jagudis, o desconsolo daquele cozinheiro que via tão frequentemente o seu ambiente de trabalho rebentado à morteirada.
O confrade Branquinho pela-se por discretear à volta da metáfora da cambança, o ir e voltar, a maré-alta e a maré-baixa, como ele descreve cheio de intenção e rematar com uma tirada humorística, veja-se:
“Tudo era planeado de modo a que a tropa chegasse junto ao rio quando a maré estava no seu pleno, evitando, assim, terem de chafurdar (e perder tempo) nos dez ou quinte metros de lodo na maré-baixa, em cada margem.
A canoa, que tinha cerca de doze metros de comprimento e oitenta centímetros de largura, aguardava próximo da margem, agarrada pelo remador. Baloiçava com a entrada de cada passageiro e sua carga, metendo uns golos de água.
Com o rio iluminado pelas estrelas, os homens embarcavam em grupos de dez a doze, carregados de G3, cartucheiras, cantil, bazuca, granadas, metralhadora, fitas de munições e os bolsos cheios de peças de rações de combate.
Completado o embarque, o remador empurrava a canoa água dentro, depois entrava nela e, com um único remo, fixada a ré, fazia-a seguir silenciosamente, a caminho da outra margem.
Alguns iriam rezando, encomendando a alma a Deus, mas tensos e silenciosos, olhando em volta, tentando, talvez, localizar algum crocodilo noctívago. Qualquer pequeno baloiçar ou movimento involuntário para um lado era perigoso, porque havia, sempre, a tentativa de o compensar para o lado contrário e fazia a água galgar as bordas da canoa. O risco da carga ser baldeada estava sempre presente e era tanto maior quanto mais bruscos os movimentos fossem.
Chegados à outra margem, o remador saltava para a água e puxava a canoa para uma posição paralela à margem, para facilitar a saída da tropa. Depois regressava à margem de onde viera e as travessias repetiam-se até passarem os últimos homens.
Numa dessas travessias nocturnas, um furriel que fora o último a entrar na canoa, que constatou que os soldados, seus companheiros de viagem, não acatavam a ordem para se sentarem no fundo a canoa e teimavam em seguir de cócoras, com cada mão agarrada em cada lado, para não molharem os fundilhos. Puxou a culatra da G3 atrás e berrou-lhes:
- Eu não sei nadar. Quero toda a gente com o cu sentado no fundo, porque, se esta merda vira, varo-vos a todos.”
Alberto Branquinho é um ás na tragicomédia, aquele Cabo Tomé que fazia 23 anos, e que andava completamente bêbado, preocupou muita gente, só que veio a flagelação, cada um foi para o seu posto e o remate deste curto conto insinua drama onde houvera a turbulência da borracheira:
“Os primeiros que voltaram à caserna viram o Cabo Tomé, mesmo à entrada, nu, deitado de costas, de olhos abertos, como que olhando o tecto de zinco retorcido, enquanto um fio de sangue lhe escorria do lado esquerdo da boca, passava pelo pescoço e fazia uma poça de sangue debaixo da cabeça”.
Só um mestre pode ser tão fulminante no termo de um enredo que começa na mais vertiginosa paródia que o burlesco permite. Há páginas impagáveis que é de rir e chorar por mais, como aquele Cabo Abel a quem coube em Bissau fazer policiamento aos bairros dos indígenas, e segue-se a peripécia, sem mais palavras:
“De entre as casas, caminhando por uma vereda que passava ao pé do grupo de militares em que estava o Cabo Abel, surgiu uma rapariga negra, que vestia uma bata impecavelmente branca, trazendo consigo os livros escolares, agarrados contra o peito. O Cabo Abel levantou-se e com a G3 a tiracolo, segurou o cigarro com a mão esquerda e com a direita barrou-lhe o caminho:
- Bajuda, bô cá pude passa!
A moça, que teria catorze ou quinze anos, parou por um momento, encarou o Cabo Abel nos olhos e perguntou-lhe:
- Porquê você não fala comigo português direito?”
Alberto Branquinho fez bem ter regressado com esta oferenda com feitiços e despojos, com as confusões do capelão, da criança que se recupera de um acampamento inimigo que foi completamente destruído, das relações amorosas entre a Cadi e o Eusébio e do que todos vamos fazer (ou pensávamos vir fazer) quando regressássemos à peluda.
É livro para estar em permanência nas nossas estantes.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 28 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19925: Notas de leitura (1191): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (12) (Mário Beja Santos)
Feito o preâmbulo, diga-se em abono da verdade que a escrita de Alberto Branquinho tem marca de água, é um compósito de situações pícaras ou bizarras (como ele gosta de observar) onde ele tem a faculdade de se distanciar e até de expurgar o que seguramente experimentou: o lodo, a sede, os equívocos da comunicação, o prazer inexcedível em beber uma coisa tão boa que se chama água, os comportamentos mais imprevisíveis na reação a uma flagelação, as muitas digressões entre quartéis, a atmosfera na messe de oficiais, aquele major de operações que decidiu ir ao terreno, desconfiado que a malta se andava a desenfiar e que regressou feito em chaga. E há a aculturação, as superstições, a ação psico, o turra que se faz guia para descontentamento de muitos, eram operações que se podiam evitar se ele tivesse levado um balázio lá no mato. Também acontece o inaudito, ser posto na mesa um arroz de jagudis, o desconsolo daquele cozinheiro que via tão frequentemente o seu ambiente de trabalho rebentado à morteirada.
O confrade Branquinho pela-se por discretear à volta da metáfora da cambança, o ir e voltar, a maré-alta e a maré-baixa, como ele descreve cheio de intenção e rematar com uma tirada humorística, veja-se:
“Tudo era planeado de modo a que a tropa chegasse junto ao rio quando a maré estava no seu pleno, evitando, assim, terem de chafurdar (e perder tempo) nos dez ou quinte metros de lodo na maré-baixa, em cada margem.
A canoa, que tinha cerca de doze metros de comprimento e oitenta centímetros de largura, aguardava próximo da margem, agarrada pelo remador. Baloiçava com a entrada de cada passageiro e sua carga, metendo uns golos de água.
Com o rio iluminado pelas estrelas, os homens embarcavam em grupos de dez a doze, carregados de G3, cartucheiras, cantil, bazuca, granadas, metralhadora, fitas de munições e os bolsos cheios de peças de rações de combate.
Completado o embarque, o remador empurrava a canoa água dentro, depois entrava nela e, com um único remo, fixada a ré, fazia-a seguir silenciosamente, a caminho da outra margem.
Alguns iriam rezando, encomendando a alma a Deus, mas tensos e silenciosos, olhando em volta, tentando, talvez, localizar algum crocodilo noctívago. Qualquer pequeno baloiçar ou movimento involuntário para um lado era perigoso, porque havia, sempre, a tentativa de o compensar para o lado contrário e fazia a água galgar as bordas da canoa. O risco da carga ser baldeada estava sempre presente e era tanto maior quanto mais bruscos os movimentos fossem.
Chegados à outra margem, o remador saltava para a água e puxava a canoa para uma posição paralela à margem, para facilitar a saída da tropa. Depois regressava à margem de onde viera e as travessias repetiam-se até passarem os últimos homens.
Numa dessas travessias nocturnas, um furriel que fora o último a entrar na canoa, que constatou que os soldados, seus companheiros de viagem, não acatavam a ordem para se sentarem no fundo a canoa e teimavam em seguir de cócoras, com cada mão agarrada em cada lado, para não molharem os fundilhos. Puxou a culatra da G3 atrás e berrou-lhes:
- Eu não sei nadar. Quero toda a gente com o cu sentado no fundo, porque, se esta merda vira, varo-vos a todos.”
Alberto Branquinho é um ás na tragicomédia, aquele Cabo Tomé que fazia 23 anos, e que andava completamente bêbado, preocupou muita gente, só que veio a flagelação, cada um foi para o seu posto e o remate deste curto conto insinua drama onde houvera a turbulência da borracheira:
“Os primeiros que voltaram à caserna viram o Cabo Tomé, mesmo à entrada, nu, deitado de costas, de olhos abertos, como que olhando o tecto de zinco retorcido, enquanto um fio de sangue lhe escorria do lado esquerdo da boca, passava pelo pescoço e fazia uma poça de sangue debaixo da cabeça”.
Só um mestre pode ser tão fulminante no termo de um enredo que começa na mais vertiginosa paródia que o burlesco permite. Há páginas impagáveis que é de rir e chorar por mais, como aquele Cabo Abel a quem coube em Bissau fazer policiamento aos bairros dos indígenas, e segue-se a peripécia, sem mais palavras:
“De entre as casas, caminhando por uma vereda que passava ao pé do grupo de militares em que estava o Cabo Abel, surgiu uma rapariga negra, que vestia uma bata impecavelmente branca, trazendo consigo os livros escolares, agarrados contra o peito. O Cabo Abel levantou-se e com a G3 a tiracolo, segurou o cigarro com a mão esquerda e com a direita barrou-lhe o caminho:
- Bajuda, bô cá pude passa!
A moça, que teria catorze ou quinze anos, parou por um momento, encarou o Cabo Abel nos olhos e perguntou-lhe:
- Porquê você não fala comigo português direito?”
Alberto Branquinho fez bem ter regressado com esta oferenda com feitiços e despojos, com as confusões do capelão, da criança que se recupera de um acampamento inimigo que foi completamente destruído, das relações amorosas entre a Cadi e o Eusébio e do que todos vamos fazer (ou pensávamos vir fazer) quando regressássemos à peluda.
É livro para estar em permanência nas nossas estantes.
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Nota do editor
Último poste da série de 28 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19925: Notas de leitura (1191): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (12) (Mário Beja Santos)