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sexta-feira, 21 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24493: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXII: Op Safira Solitária, na véspera do Natal de 1971, "ronco" e "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos a sofrerem 8 mortos e 15 feridos graves (pp. 212-224)


Furriel Mamasaliu Bari (pág. 213)


Esquadrilha de Allouettes-III na BA12. 
Imagem cedida por Vítor Barata, especialista da FAP (pág. 212)


Ussumane Seca, Abdulai Djalo Cula, Aliu Djaquite, Aliu Sana Sanhé 
e Sissau Candé, em Tite, 1971 (pág. 215)



O Alferes Tomás Camará e o Furriel Anastácio Ferreira (pãg.  216)


Momentos antes do embarque para Angola, em Outubro de 1963. Em primeiro plano o Furriel Mil. Mário Dias. Atrás, da esquerda para a direita, o Furriel Artur Pires, o Soldado Abdulai Djaló e o Alferes Justino Godinho. (pãg. 217)


Um grupo de Comandos na Base Aérea de Bissalanca, de partida para Bafatá. Abdulai Djaló, de joelhos, ao lado do soldado com o lança-roquetes. Foto de finais de 1965 (pág. 218)


Capitão Almeida Bruno, ajudante-de-campo do Brigadeiro António de Spínola, fotografado no decorrer da Op Ostra Amarga,  na mata da Cobiana, em 18 Outubro 1969 (pág. 223)



Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)


Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.

(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.

(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;

(xvi) em novembro de 1971, participa na ocupação da península de Gampará (Op  Satélite Dourado, de 11 a 15, e Pérola Amarela, de 24 a 28);

(xvii) 21-24 dezembro de 1971: Op Safira Solitária: "ronco" e "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos  (8 morts e 15 feridos graves).


1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digital, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O nosso  camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra,  facultou-nos uma cópia digital. O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.



 Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXII:

Op Safira Solitária, na véspera do Natal de 1971: "ronco" e  "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos  a sofrerem 8 mortos e 15 feridos graves (pp. 212-224)

Dezembro de 1971. A 1ª e a 2ª companhias foram em viaturas para a zona de Morés[1], enquanto um único grupo, o meu, ficou de reserva, em Bissalanca[2], na base aérea, à espera que algum grupo pedisse a nossa ajuda.

No primeiro dia não aconteceu nada para registar, mas no dia seguinte, dia 21, houve vários contactos com a guerrilha. Depois de ter terminado o bombardeamento da aviação, o grupo do furriel Mamasaliu Bari, que tinha tido vários feridos durante a manhã, dirigiu-se para um local onde tinha visto cair várias bombas e deparou com vários corpos esfacelados.

No momento em que chegou ao local deu-se uma troca de tiros entre o PAIGC e o grupo, sem consequências. A seguir o Mamasaliu disse alto ao fogo, um soldado, que tinha o dispositivo de dilagrama montado, procurou a cavilha da respectiva granada, viu-a e, no momento em que a recolhia do chão, inclinou o cano da G-3 para o solo. A granada defensiva caiu, explodiu e atingiu-o, a ele e o guia que o acompanhava, e feriu ainda vários companheiros. 

Em dificuldades para sair do local, Mamasaliu pediu reforço e foi, então, que foi dada ordem para o meu grupo avançar.

Quando acabei de ser lançado na zona, chamei pelo rádio o Demba, que me respondeu. O capim cobria-nos mas fizemos a junção dos dois grupos, cada um recorrendo a um tiro para o ar. Reunimos os dois grupos e, com o grupo dele à frente, começámos a progressão, com o objectivo de tirarmos o Bari do local.

Sempre a corta-mato, demos com um carreiro, com muitos sinais de passagem. Podia ser, pensámos, o caminho trilhado pelo Mamasaliu. Logo a seguir o Demba virou à esquerda e, quando cheguei a esse local com o meu grupo, seguimos atrás, virando também à esquerda. Fiquei com algumas dúvidas e consultei a carta topográfica. Pedi para se fazer um alto e fui ter com o alferes Demba.

Demba, não é por aqui!

–  É por aqui!

Bom, retomámos a marcha e, um pouco mais à frente, voltei a fazer um alto ao meu grupo.

–  O que se está a passar? 
–  perguntou o Demba.

– Eu não vou andar mais nenhum passo para a frente, sem pedirmos ao Bari para assinalar a posição dele com um tiro para o ar.

O Demba ligou o rádio e, então, pediu ao Bari que desse um tiro para melhor o localizarmos. E a resposta não demorou, o ruído do tiro ouviu-se bem, atrás de nós.

–  Estás a ver, Demba? Agora, temos que voltar para trás!

O Demba pediu desculpa e, sem demora, demos meia-volta e retomámos a marcha, agora um pouco mais rápida, até encontramos o grupo do Bari. Metemos o grupo no meio dos nossos dois, Demba à frente e o meu grupo atrás e continuámos a progressão em direcção aos cajueiros de Morés.

Eram cerca de 17h00, quando encontrámos o grupo chefiado pelo comandante da operação, o tenente Zacarias Saiegh.

Duas companhias juntas para passar a noite em Morés, num local[3] bem referenciado e muito conhecido em toda a zona. Fiquei junto ao tenente, que me disse que estava naquele sítio desde o meio-dia, à espera que os grupos se reunissem a ele. E que íamos dormir naquele local, que ninguém nem nada tirava os Comandos daqui.

–   Sabe quantos homens temos aqui? Duzentos e tal! Se nos atacarem hoje, nós vamos apanhar-lhes o material todo.

Não me faltava a confiança na força de tanta gente, mas não nos podíamos esquecer que, quanto maior é o número, maior pode ser também a derrota. Com boa pontaria ou sem boa pontaria, para acertar numa pessoa no meio da multidão basta apontar.

O que eu tinha era dúvidas, achava que havia tropa a mais naquele local, tanta que podia vir a atrapalhar.

Quando eu estava nos Comandos em Brá, no tempo do alferes Saraiva e dos outros, nós saíamos sempre em grupos pequenos e era mais fácil executar uma operação, havia menos barulho e menos riscos. Também só dávamos tiros quando era pela certa.

Quanto maior é o número de pessoas envolvidas, mais difícil uma operação ter sucesso. E ensinaram-me em Brá que sucesso era chegar de surpresa, atacar e retirar logo.

Mas, desta vez não estava a ser assim e a nossa dificuldade maior estava na coordenação dos nossos Comandos.

Fui juntar-me ao Demba, ao Vasconcelos e ao Sada e, com o seu guarda-costas Demba Demo, ficámos ali perto uns dos outros, cada um junto do respectivo grupo.

Por volta das 19h30, estávamos naquele local desde as 18 e pouco, ouvimos choros, que me pareceram de criança. E não paravam. Cada vez que menino chorava, o tenente mandava passar palavra, para ninguém abrir fogo, que devia ser população a regressar aos acampamentos, para arranjar comida para meninos

Um soldado chamado Djaquité, do grupo do Alferes Tomás Camará, trazia uma HK 21 com uma fita de balas muito comprida, que enrolava no corpo. Com o bipé montado apontou-a para fora dos cajueiros e a certa altura viu um grupo fardado que vinha na nossa direcção. Então, ele disse ao Tomás Camará:

–  Meu alferes, disse para não fazer fogo, vem um grupo armado na nossa direcção, e agora?

O Tomás respondeu que se vinha gente que abrisse fogo, o que o soldado fez, abriu uma rajada muito comprida para eles. Quando quis sair dali, para mudar de local, foi tarde de mais, uma roquetada acertou-lhe em cheio[4]. As morteiradas começaram a chover, umas atrás das outras, saímos todos dali, a correr. Não sei como foi, tinha deixado as minhas cartucheiras no local onde estivemos deitados. E agora, tinha que ir buscá-las lá. Resolvi voltar para trás.

Eu, muito antes de sermos atacados, quando ainda estava com o Saiegh, perguntei ao Abdulai Djaló o que é que ele achava de irmos dormir todos naquele local, onde o tenente tinha dito. O Abdulai respondeu-me que seria melhor não termos contacto com o IN durante a noite e não disse mais nada.

O Abdulai[5] era um soldado muito corajoso, bom combatente, era de 1961, tinha combatido sempre na guerra, desde o início.

Conhecemo-nos em Farim, éramos da mesma etnia, os nossos pais conheciam-se há muito tempo. Ele era mais antigo nos Comandos que eu, foi um dos que foi para Angola com o Alferes Saraiva e outros.

Nunca foi graduado porque era o indisciplinado número um, em todos os grupos por onde tinha passado. Nenhum comandante de grupo o aguentava mais que um mês. Levavam-no ao comandante a dizerem que não o podiam comandar, o comandante de companhia mandava-o para outro grupo e foi assim conhecendo quase todos os grupos, sempre a fazer as mesmas coisas.

Até que um dia, o comandante da 1ª Companhia ficou com ele. Quando o Saiegh saía, o Abdulai saía com ele, era o guarda-costas do tenente. Quando o comandante não saía, se o Abdulai não quisesse também não saía. Por isso ele nunca foi graduado.

Quando cheguei ao local, o Abdulai estava sentado ao lado do Tenente Saiegh e, depois de ouvir a ordem de passar a noite naquele local, fui juntar-me aos meus colegas.

Quando começou a chuva de morteiros levantámo-nos para abandonar o local. Mas já era um pouco tarde, devíamos ter abandonado aquele local mais cedo. Quando voltei atrás para recuperar as cartucheiras, o pessoal do PAIGC lançou dois “very-lights” seguidos. De trás de um cajueiro, com a iluminação, consegui ver onde as cartucheiras estavam. Quando a luz do “very-light” se apagou, corri para o local e agarrei-as. Na altura em que estava a regressar ao local onde estava antes, caíram duas morteiradas seguidas, entre o local onde eu me encontrava e o sítio onde estavam os meus companheiros. Continuei a andar até à saída dos cajueiros, quando vi um corpo deitado à minha frente, que na precipitação de sair dali nem reparei quem era. Depois voltei atrás. Nesta altura, ainda não sabia que era o cadáver do Demba Demo, guarda-costas de Sada Candé.

Soube depois, que também Sada Candé tinha perguntado ao Demba do que pensava ir acontecer nessa noite. Mas ele não respondeu, nem uma, nem duas vezes. Só à terceira vez que o Sada perguntou se ele não tinha ouvido, então Demba disse que não tinha ouvido, mas que pedia a Deus, que nessa noite não houvesse confronto.

Estendido no chão ali à minha frente, estava um cadáver. Vi dois soldados a rastejar e perguntei-lhes de que companhia eram. Da 2ª, responderam.

–    Vocês estão feridos? Não estão? Então deixem-me passar!

Puseram-se a pé e começaram a correr à minha frente. E quando já estávamos a sair da zona dos cajueiros, onde a chuva de granadas de morteiro continuava a cair, ouvi um gemido.

A voz parecia-me do Abdulai Djaló. Quando eu andava à procura, perguntando quem era que gemia, ouvi a voz do Abdulai a dizer que estava ferido. Encontrei-o sentado. Disse-me que tinha as pernas partidas.

Quando me pus a observar o que ele tinha, estava muito escuro, apalpei-lhe as pernas para ver da gravidade do ferimento e reparei que o Abdulai tinha as pernas feridas, dos pés às ancas, tudo esfacelado e partido. Pensei que não iria viver mais que alguns minutos.

–  Não me deixem aqui   
–  disse-me ele.

–  Não te deixo cá, ficas garantido, vou buscar reforço para te levar para um local mais seguro.


Corri para o Saiegh e disse-lhe que o Abdulai estava com feridas muito graves e que estava também um corpo perto dele, não descobri quem. Arranjei sete homens que foram comigo até ao local, sempre a corrermos, e quando olhei para trás só estava um comigo, o 1º cabo Mussa Djamanca, da 1ª CCmds.

Que é que aconteceu aos outros? Voltámos ao Saiegh, eu e o cabo, à procura dos outros. Esta história repetiu-se e da última vez ouvimos alguém chamar o comandante, pelo nome que era chamado em casa, pelo irmão e parentes da sua mãe.

Quando chegámos junto do tenente,  disse-lhe que tinham fugido todos, só estava eu e o Mussa. E acrescentei que tinha ouvido alguém chamar pelo Zick, o nome por que era tratado o Saiegh em família.

 
–  Onde ouviste? –  perguntou o Saiegh.

 –  Nos cajueiros!


Então, ele perguntou se alguém tinha visto o irmão dele, depois do ataque. Ninguém tinha visto. Passou para a frente e disse:

–   Porra, vamos embora, ninguém fica!

Segui-o até ao local onde estava o Abdulai Djaló e um corpo, o do Demba Dembo. Mostrei-lhe o local e, como não se via nada, ele perguntou-me de quem era esse corpo.

–  Não sei, não se vê nada com esta escuridão é difícil reconhecer de quem é o corpo. 

Quando estávamos nesta conversa, ouvimos chamar Zick. Então, ele, rápido, disse:

–  Amadu, levem daqui o Djaló e o corpo, enquanto nós vamos buscar o ferido aos cajueiros.

Para levarmos o Abdulai eram precisos quatro homens. Como os pés estavam desfeitos, não podíamos arrastá-lo pelo chão, duas pessoas pegaram nos braços e levámo-lo até debaixo de um mangueiro, onde estava o Saiegh. Quando o depositámos no chão, o Abdulai perguntou-me quando vinha o heli buscar os feridos.

–  Agora não pode ser, Abdulai, só de manhã.

–  Não aguento, vou morrer aqui!

–  Por que não aguentas, Abdulai?

–  Estou a perder muito sangue!

Na altura, tínhamos três feridos deitados neste local. Eram eles, o Abdulai Djaló, o Samba Bangura e o Vicente Malefo, todos atingidos nas pernas. Como gemiam alto, pedi ao enfermeiro, que era um Comando também, chamado Samba Tala, para dar umas picadas neles todos, para parar a hemorragia e para lhes tirar as dores. 

 Abdulai foi o primeiro a quem o enfermeiro deu uma injecção e ouvi-o dizer:

– Allahu Akbar,Allahu Akbar,Allahu Akbar!!! (**)

Quando acabou de falar no nome de Deus três vezes, calou-se de uma vez, boca e olhos abertos, olhando fixo. Abdulai tinha acabado de morrer.

Então, abandonei o local e fui ao encontro do Zacarias Saiegh. Nem me deixou sentar.

–  Trata-me aí do Malefo, está a fazer muito barulho.

Fui para junto dele, voltei a chamar o Samba Tala e pedi-lhe para lhe dar uma picada. Momentos depois, calou-se, não gemeu mais, já não devia ter dores. Isto tudo passou-se entre as 19h30 e as 21h00. A partir desta hora houve um silêncio total.

Entre as 02 e as 03h00[6], o PAIGC tentou acabar connosco. Tiros de canhão sem recuo e de armas automáticas amarraram-nos ao chão, ninguém conseguia levantar a cabeça. Quando o tiroteio acalmou, vi um militar da nossa companhia a correr. Insultei-o e mandei-o voltar para trás. Regressou para o pé de mim, a dizer:

–   Meu sargento, já foram todos, o comandante não está ali. Venha ver se está lá alguém nosso!

Levantei-me, fui atrás dele até ao local onde estava o comandante. Ninguém, ninguém estava ali, só os corpos. Continuámos a sair dali, a pouca distância um do outro e encontrámos um pequeno grupo de quatro companheiros. Éramos um grupo de sargentos: eu, os 2ºs Sargentos Vasconcelos e o Damo Baldé e os Furriéis Mamadu Djaquité, Facene Sama e Abu Seide. Corremos uma curta distância, talvez 100 metros. Parámos, não podíamos ir mais longe, os feridos estavam para trás.

–  Vamos para o lado das bananeiras 
–   disse-me o Vasconcelos. 

–  Para as bananeiras, não  –  disse eu. –  Se eles passarem por aqui, para onde podiam fazer fogo? Para as bananeiras, que é um local bom para pessoal se esconder, ou não?

–  Então, para onde vamos?

–  Ficar aqui, neste local descampado, sem árvores. Não tem nada, nada que leve a desconfiar que está aqui gente!

Concordaram. Aqui ficámos até às 05h00, mais minuto menos minuto. Estava a romper a aurora, tirei um cigarro, raspei um fósforo e disse para o lado que ia fumar um cigarro, que já era de manhã. Pediram todos logo licença para fumar também. Desloquei-me para o local onde tínhamos deixado os feridos.

Eu tinha ouvido tiros dirigidos para o local onde estavam os feridos e, mais tarde fogo sobre a zona dos mangueiros. Foi nesta altura que acabaram com Malefo, deram-lhe um tiro no peito. E, no regresso, fizeram a mesma coisa, abriram fogo na zona das bananeiras, que até começou um pequeno incêndio, que não durou muito, felizmente.

Fomos avançando, para ver se descobríamos algum companheiro nosso. Ouvimos alguém responder à nossa chamada, era o Samba Bangura.

Dirigi-me ao frriel Mamadu Djaquité, muito conhecido entre nós por Pélé e pedi-lhe para o irem buscar, enquanto eu ia procurar o Malefo. Encontrei-o morto, com um tiro no peito.

Naquela ocasião estava a chegar-se a nós, um grupo de cerca de vinte companheiros, com o respectivo comandante, que andava também à nossa procura e se vinham reunir a nós.

Eram quase 06h00, quando ouvimos o ruído de uma avioneta a sobrevoar a  zona. Chamaram-nos por rádio, pedindo que assinalássemos a nossa posição. E depois, ouvimos da avioneta chamarem o helicanhão, indicando-lhe onde nós estávamos. 

Apareceu no ar outro heli, que vim a saber que trazia o major Almeida Bruno, eram para aí 06h30, os dois helis no ar, em cima de nós. E foi, a partir desta altura, que o major Bruno tomou conta das operações. Em primeiro lugar as evacuações dos feridos, depois os mortos e a seguir recuperar o pessoal das companhias.

O major virou-se para mim e disse:

–  Amadu, ficas com o teu grupo a montar a segurança, enquanto trato da retirada das companhias para Mansabá, para seguirem depois, em coluna, para Bissau.

Montei a segurança e, quando estavam a entrar os últimos, avisou-nos:

–   Como estão a ver, a partir de agora somos só um grupo, estamos sem segurança. Portanto, temos que ser muito rápidos, quando chegarem os helis, corremos todos, ocupamos os lugares, sem hesitações.

Quando os helis levantaram com o penúltimo grupo, preparámo-nos e ficámos à espera. Depois, quando pousaram, arrancámos ordenadamente. Quando o heli em que eu ia estava a levantar, fiquei a olhar cá para baixo, para os cajueiros, até desaparecerem de vista. Da minha vista desapareceu, da minha memória não, ficou lá gravada aquela noite, até hoje.

O erro cometido pelo tenente Saiegh e pelos quadros todos foi fatal para todos nós. Para os que morreram foi completamente fatal, morreram ingloriamente. Para os que sobreviveram, como eu, foi fatal porque foi um momento que não recordo como glorioso. Saí dali com o sentimento de que tinha sofrido uma derrota. Mas é a guerra e a guerra é mesmo assim.

As nossas normas de Comandos foram completamente violadas. Um pequeno alto, um alto provisório, um bivaque clandestino. Tudo o que gastarmos, nem que sejam horas e horas na preparação, tem que ser respeitado. Se não respeitarmos, se cometermos um erro, pode perder-se uma vida.

Nós cometemos vários erros naquela noite. Tivemos cinco mortos[7] nos cajueiros, um ferido muito grave, catorze graves e vários[8] ligeiros, que nem contámos. Os mortos, sim, contámos: Aliu Djaquité, Quintino Gomes, Demba Dembo, Abdulai Djaló e Vicente Malefo. O ferido grave foi o Sam Bangorá. Dos feridos ligeiros não importa falar, nem me lembro quem foram.


Eu saí dali sem uma arranhadura.

Conforme escrevi atrás, o meu grupo ficou com o major Almeida Bruno no terreno. Íamos ser os últimos a retirar. Era perigoso, o local estava bem no centro de Morés, perto do quartel-general do PAIGC, segundo se dizia e, à volta, havia dezenas de pequenos acampamentos. 

Era uma boa altura para eles concentrarem todo o fogo em cima de tão pouca gente. Força para isso, eles tinham. Morteiros, armas pesadas, canhões sem recuo, armas automáticas, naquela área não lhes faltava material. Por isso, eu estava consciente que a retirada nos poderia custar algumas vidas mais. Mas, para além de nós, que estávamos numa clareira e com pouca natureza para nos abrigarmos, tínhamos em cima de nós, pronto a disparar o helicanhão. E ainda os bombardeiros, mortos por entrarem na guerra.

Mas eles deviam estar satisfeitos com os estragos que nos causaram, para além do que devem ter sofrido também. Certo é que, numa guerra destas, nem há vitórias nem derrotas completas. O Oio foi uma das primeiras zonas, onde o PAIGC reclamou área libertada, quase ainda no início da guerra.

Quando os helis levantaram para Bissau, íamos calados a olhar para os cajueiros até desaparecerem da nossa vista, mas as imagens da noite estavam gravadas definitivamente nas nossas memórias. 

Para mim, o dia 24 de Dezembro de 1971, é uma data inesquecível. Uma data amarga, para mim e para muitas famílias. A tristeza invadiu as nossas famílias, os nossos amigos e a gente de Bissau, que nos conhecia.

Chegámos ainda antes do meio-dia, com os familiares à nossa espera. Dos que ainda vinham em coluna de Mansabá, não tínhamos ainda resposta para lhes dar. Mesmo que os acalmássemos e disséssemos que estavam bem, não acreditavam. Assim era melhor ficarmos calados e esperarmos a chegada deles.

Não pude deixar de pensar e recordar, no voo de regresso do meu grupo a Bissau, nos companheiros que terminaram as carreiras e as suas vidas naquele local, chamado Morés.

O inimigo mereceu esta vitória sobre os Comandos? Se encararmos a negligência com que foi escolhido o local para passarmos a noite naquele local dos cajueiros, onde o Saiegh nos aguardava desde o meio dia, se pensarmos bem na desobediência às nossas regras de combate, então foi bem merecida a nossa derrota.

Os nossos instrutores nunca nos disseram para nos sentirmos mais confiantes se fossemos muitos. A nossa preparação era para nos tornar homens mais duros, mais fortes, mais eficazes. Mas que nunca nos devíamos considerar nem melhores nem piores, apenas diferentes. Numa palavra: Comandos. (***)

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Notas do autor ou do editor literário (VB)


[1] Nota do editor: operação “Safira Solitária”, 20/24 Dezembro 1971.

[2] Base aérea em Bissalanca, arredores de Bissau.

[3] Nas imediações do itinerário entre Bissorã e Mansabá.

[4] Nota do editor: o Soldado Aliu Jaquité, da 1ªCCmds, “na noite de 23/24 Dezembro, após receber ordem para retirar, respondeu que um Comando só retira pelos braços de um camarada. Tendo avistado alguns elementos IN a meia dúzia de metros da sua posição, abriu fogo com a sua arma ligeira, abatendo-os, tendo sido por isso referenciado, sendo morto de seguida por uma granada de RPG-2.” Relatório da operação “Safira Solitária”.

 [5] Em árabe, Abdulai quer dizer “Escravo de Deus”

[6] Nota do editor: 22 Dezembro 1971.

[7] Nota do editor: oito no total, segundo o relatório da operação “Safira Solitária” (***)

[8] Nota do editor: quarenta e cinco, segundo o relatório.

[ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G.] (****)

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(**)  Deus é Grande, em árabe.

(***) O "pessimismo" do Amadu Djaló contrasta com o louvor dado, já em 1972, à 1ª e 2ª CCmds Adricanos,  pelo gen Spínola pelo seu brilhante e audacioso desempenho operacional, até então, com destaque para a Op Safira Solitária...Oportunamente faremos um poste com o teor desse louvor.

(****) Operação "Safira Solitária" - 20 a 24Dez1971:

Na região de Morés-Santambato- Tambato-Gã Farã- Talicó-Cambajo--larom-Siure, 04 e COP 6, forças da lª e 2CCmds Afr efectuaram ma nomadização. O ln reagiu por 21 vezes à penetração e progressão das NT, com maior intensidade nas regiões de Cubonge e Morés.

Foram causados ao ln 54 mortos confirmados, bastantes feridos e 83 elementos da milícias locais, todos armados, também mortos que reagiram à acção das NF. 

As NT sofreram 8 mortos, 15 feridos graves e 44 ligeiros. Recuperados 28 elementos da população, 2 esautom "Simonov", 2 eautom "Kalashnikov" com cinco carregadores, 1 esp
"Mosin-Nagant", 1 ml "MG-42", 1 "longa" e 2 gran lgfog "RPG-2".

Foi destruído um acampamento ln.

Fonte: Excertos de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro III; 1.ª Edição; Lisboa (2015), pp. 293-294 (Com a devida vénia...)

Guiné 61/74 - P24492: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (38): O arroz de lingueirão à moda de Candoz







Marco de Canaveses > Paredes de Viadorees > Candoz > Tabanca de Candoz > 15 de julho de 2023 > Aqui também chegam os sabores do mar...


Fotos (e legenda): © Luís Graça (2023). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1.  Dez dias de "férias & trabalho" na nossa Quinta .de Csndoz, longe da Lourinhã, da fisioterapia e do ginásio,... e do blogue (já que o acesso à Net é reduzido),  não nos impedem, a mim e à Alice, de manter a tradição do petisco... com sabor a mar. 

Ontem foi uma sardinhada, à moda antiga, para 15 pessoas. A Alice juntou cá os manos vivos.  O  Zé Carneiro  trouxe as sardinhas da lota de Matosinhos, e foram as melhores que comemos este ano, assadas em lenha de videira (que é a melhor)... Como se diz aqui, "souberam-nos pela vida"..., independentemente da sua origem (parece que foram pescadas no mar de Sesimbra). E lembraram-se os tempos da "sardinha para très"...

Há dias a "chef" Alice fez um arrozinho de lingueirão (ou navalha)... É um prato simples e delicioso, com arroz de tomate e coentrinhos.  (Podia levar pimentos, mas não  levou para estragar o gostinho a maresia do molúsculo...). 

 O "segredo" é lavar bem o lingueirão (ou navalha). libertando-o de toda e qualquer impureza , em particular a areia (que é extremamente desagradável para os nossos dentinhos e língua). Aproveita-se a "auguinha" onde se coze o molúsculo... 

Quanto ao resto, há para aí muitas receitas na Net, que o leitor pode consultar. Como sempre, estava um arrozinho de comer e chorar por mais...Esta gente aqui é especialista a cozinhar o arroz (de mil e uma maneiras)...

Amigos e camaradas, b0m verão,  e que Deus Nosso Senhor não  vos tire o apetite... Continuamos à espera que os nossos 'vagomestres'  nos mandem ao menos as fotos dos seus "petiscos de verão"... Comam bem (o que não quer dizer muito...)  e partilhem ao menos a vossa fotogaleria... gastronómica.  (LG)

II. Lingueirão, segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa:

lingueirão |güei|
(lin·guei·rão)

nome masculino

1. Língua grande.

2. [Zoologia] Molusco acéfalo bivalve, com concha retangular estreita e longa. = Canivete, Ligueirão,Lingueirão-de-Canudo,Longueirão, Navalha, Navalheira.  

Origem etimológica: língua + -eirão.

"lingueirão", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2023, https://dicionario.priberam.org/lingueir%C3%A3o#google_vignette.

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24491: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (4): Amigos para sempre!


Foto: © Luís Graça (2011)

Contos com mural ao fundo (4) >   Amigos para sempre!

por Luís Graça (*)

Foi o primeiro encontro da Companhia, depois do regresso da Guiné... Vinte anos depois (!)... Na Anadia, em 1991, o ano em que nasceu a Internet, pelo menos a Internet que conhecemos hoje, em que as pessoas estão familiarizadas com as redes sociais, e usam o telemóvel e o correio eletrónico.

A organização coube ao "Vagomestre", auxiliado pelo "Transmissões"...  Não lhes foi fácil descobrir nomes, moradas, telefones  e até faxes... E juntar "boas vontades". (Ainda não havia endereços de e-mail, comunicava-se por  telefone,  telegrama  e fax.)

Faltou muita gente, a começar pelo ex-capitão, ainda no ativo, então na GNR, ao que se dizia. Ou talvez já na reserva, que ele nessa altura deveria  estar próximo dos sessenta... E outros, não poucos, disseram ao organizador: "Guiné, meu?!... Não,  obrigado!... Já dei para esse peditório!"...

Estavam presentes um alferes, o Azevedo, o "Ranger", uma boa parte dos furriéís e outras tantas praças, cabos e soldados, sobretudo do Centro e Norte. Ao todo não mais do que uma trintena, menos de um quinto da Companhia. Na realidade, metade dos "brancos"... O resto eram guineenses.

O "Vagomestre",  também conhecido pela infame alcunha de "Unhas de Fome" (insultuosa para ele), fora o  principal organizador. Era de Aveiro, e tinha agora uma empresa de contabilidade ligada ao setor das pescas. O Oliveira, o "Transmissões", esse, ia fazendo também pela vida, sendo assessor jurídico de uma federação de sindicatos, ligada à CGTP-IN, depois de completar o curso de direito em Coimbra.

Também apareceu o "Pastilhas". O seu "bunker" era  a "República dos Feliz... ardos", os que não iam para o mato: ele, o transmissões, o gajo da ferrugem, o vagomestre, e dois sargentos (um deles, o  Félix, que chefiava a secretaria), e ainda  alguns primeiros cabos, como o cripto, o escriturário, o quarteleiro, o bate-chapas (o "Chapinhas*)... 

Toda a gente vivia em "bunkers", feitos de troncos de cibe, chapa de bidão, bidões  de terra e umas tantas das poucas pedras que havia  naqueles terrenos de aluvião... "Vida de ratos", queixava-se o Andrade que, à noite, passava horrores na expectativa de um ataque ou flagelação ao quartel.

Tinha piada,  as voltas que o mundo dera: o "Pastilhas" era agora tratado com outra deferência... Conseguira, ainda antes do 25 de Abril, entrar em medicina... Depois do Serviço Médico à Periferia, entrara na carreira de clínica geral, em 1983, e era, já em 1991, médico do trabalho numa fábrica de montagem de motores para automóveis, na região Centro.

Mas a figura principal do encontro, na ausência do capitão, era o "Campanhã", o valente "Campanhã", o "herói da Companhia"!... Era com emoção, "com alguma emoção, mal disfarçada" (sic), que o Neves, furriel do seu pelotão,  voltava a abraçar, ali na Anadia, nesse já longínquo ano de 1991, o "Campanhã", com o seu inimitável sotaque tripeiro e "a franqueza que era timbre da boa gente do Norte".

Dos presentes, havia mais um que tinha "subido na vida", o Azevedo, autarca social-democrata e empresário (fizera, logo na primeira hora, uma distribuição profusa do seu "cartão de visita" e transpirava felicidade e prosperidade por todos os poros)... 

O "Campanhã", esse, ninguém sabia ao certo o que fazia agora... Mas apresentava alguns sinais exteriores de riqueza, a avaliar pelo BMW ("em segunda mão, nada de confusões!") com que viera do Porto, com mais dois ou três camaradas "da corda", um dos quais nem sequer tinha nada a ver com a Companhia, fora paraquedista em Angola. 

O Neves, esse, ainda continuava, infeliz e mal pago, a trabalhar como jornalista num semanário da capital, e a fazer mais uns  biscates na rádio.

− E no fim quem levou a taça foi o capitão!... Chegou a major, ainda a guerra não tinha acabado para nós... − disparou o "Campanhã", a "abrir as hostilidades".

A taça ?!... − ouviu-se, lá do fundo da mesa, a voz do "Vagomestre", que estava com um ouvido atento à conversa do grupinho do "Campanhã", e outro orientado para as graçolas de alguém que recordava o pobre diabo  do "Peniche", a "Bichona",  o "bobo da corte" da Companhia, que assegurava que ainda havia de mudar de sexo antes de morrer. (Infelizmente morrera  de HIV/SIDA, uns bons anos antes,  por volta de 1985, com o mesmo corpinho  com que  tinha saído da barriga da mãe.) 

− Quer-se dizer, mais uns galões, mais graveto ao fim do mês… insistiu o "Campanhã".

−  Mas, ó pá, era a vida dele, a carreira dele! – atalhou o ex-alferes miliciano Azevedo, tambem tratado por "Ranger", transmontano, que nada tinha perdido do seu espírito de subserviência em relação a todas as hierarquias deste mundo.

 E depois nós éramos milicianos, estávamo-nos nas tintas para as divisas e os galões! – atalhou o "Vagomestre",  tentando, com sua proverbial falta de sentido de humor, deitar água na fervura.

− E, nós, o mexilhão, a tropa-macaca, os soldados do contingente geral! – ripostou o "Campanhã".

 Estávamos todos metidos no mesmo barco, essa é que essa!  opinou, por sua vez, o "Pastilhas", agora o "xô dôtor" Andrade.

 Mas mesmo assim havia diferenças, carago! No meio daquela merda toda – desculpem lá a expressão, que eu sou um home do Norte, carambas! – vocês até eram uns fidalgotes: tinham patacão, graveto; tinham messe, bar, bebidas estrangeiras; iam matar a malvada a Bafatá; comiam umas garinas, pretas ou verdianas, de vez em quando, em Bafatá e em Bissau; iam de férias, na TAP, à Metrópole…

E lá continuou o reguila do "Campanhã" a vociferar contra os privilegiados da tropa, neste caso os milicianos que na guerra tinham messe,  à parte, com direito a comer de garfo e faca, toalha branca na mesa e... até criados de libré!... 


Recorde-se que o capitão, um minhoto ("de sangue azul", dizia-se, com solar lá na terra, e todo cheio de nove horas), até lhes arranjou, aos impedidos na messe, uma farpela a condizer!... Um deles era justamente o "Peniche", soldado básico, ex-desertor e ex-presidiário (tinha passado pela Companhia Disciplinar de Penamacor; viera 
 a "ferros"  no T/T "Niassa", "um espectáculo confrangedor", recordava o Neves).

 Criados de libré, já não me lembrava dessa, ó meu! − comentou o "Campanhã", para o Neves, e outros que lhe estavam próximos, na mesma mesa (que, na prática, era só uma, comprida, onde cabiam todos os convivas; de fora tinham ficado, daquela vez, no primeiro convívio da Companhia, as caras-metade e demais famíliares).

 Messe com criados de libré, só em dias de festa, convém lembrar!... Por favor, nao exagerem!..?.O nosso capitão explicava que era para "os senhores oficiais e sargentos se sentirem em casa, não perderem a noção do tempo e não ficarem cafrealizados"  recordou o Azevedo. − E que pena ele não poder estar aqui hoje com nós! 

− Cafrealizados?! − interpôs o Neves que nunca tinha concordado com a ideia de uma messe, separada do rancho, num quartel do mato como o da Companhia.

− Cacimbados, apanhados do clima, se quiseres! − esclareceu o "Ranger".− Afinal, sempre foram quase dois anos fora da civilização.

 Alguns de vocês, alferes e furriéis (não vale a pena aqui citar nomes) até nem queriam outra vida se não fosse terem de andar com a puta da canhota no mato, a embrulhar e a foder o coirão!... 

Em boa verdade, um dos alferes da Companhia tinha feito o curso de capitães e ainda fizera uma comissão em Angola, passando a integrar o QEO - Quadro Especial de Oficiais. Ninguém sabia do seu paradeiro. Alguém terá dito que ficara na África do Sul, depois da inpendência de Angola, o que carecia de confirmação.

E, dando um salto na cadeira, continuou o "Campanhã", de dedo em riste:

− Mais, seus c..., alguns milicianos que eu conheci, na tropa e depois na Guiné, nunca tinham ganho um tostão na puta da vida, a não ser talvez a mesada do velho…

 Calma aí e pára o baile, ó "Campanhã"! Estás a ser injusto, ao fazer generalizações abusivas!  interrompeu, de chofre, o Azevedo, que tinha vindo direitinho do seminário para a "Máfrica"  (onde fez a recruta) e depois para Lamego (onde tirou o Curso de Operações Especiais), com passagem por Tancos (para tirar as 'minas & armadilhas').

−  Bom amigo e camarada, tenho que te  lembrar que muitos de nós, furriéis e alferes, já trabalhávamos, e alguns começaram bem cedo, feito o 5.º ano ou o 7.º,  do liceu ou equivalente... 
  atalhou o Neves, ajudando a cortar o fio à meada do  discurso torrencial (e perturbador) do "Campanhã", e sabendo que os primeiros goles da zurrapa do espumante do Zé dos Leitões começava a abrir as goelas da desinibição. 

 Cá o Zé Soldado, como eu,  já era chefe de família e há muito que fossava  no duro, antes de ir parar com os quatros costados à Guiné. É bom que não se esqueçam disto, carago!... Quanto ao resto, reconheço que éramos todos iguais, brancos e pretos, oficiais, sargentos e praças, que elas no mato, c.., não traziam código postal!

 
O "Campanhã" e o Neves tínham-se  tornado amigos (ou, talvez melhor, confidentes e cúmplices um do outro, camaradas, no sentido etimológico do termo, já que na tropa não havia verdadeiros amigos, amigos do peito, mas apenas gente que partilhava a mesma condição, o mesmo chão, a mesma caserna, o mesmo "bunker", a mesma vala, o mesmo espaldão, o mesmo beliche, a mesma cama, enfim, o mesmo buraco)... 

Voltaram ambos a recordar  essa memorável viagem de comboio que, em meados de 1969, tinha levado a  Companhia, ensonada, do Campo Militar de Santa Margarida até ao cais de embarque, em Lisboa, no Cais da Rocha Conde de Óbidos. 

Entre dois tragos de bagaço de vinho verde, rasca, o "Campanhã" fora-lhe contando a sua vida, os seus sonhos, os seus projectos, mas também os seus tropeções, fazendo do Neves o seu confidente de circunstância, vizinho de lugar e companheiro de infortúnio, "lucidamente deprimido" (escreveria ele mais tarde), à medida que o comboio da CP, requisitado pela tropa, galgava as terras 
banhadas pelo Tejo, ronceiro, sonolento e lúgubre, pela calada da noite, e o "Quarteleiro" tirava uns acordes sinistros do seu acordeão. Mas a maior da malta dormitava, encostada aos ombros de uns e outros, para acordar, estremunhada, com a brisa do estuário do Tejo...

Muitos deles ainda se tratavam, neste primeiro convívio anual, em 1991, pelas alcunhas da tropa. E, em rigor, o Neves já não se lembrava sequer dos nomes próprios da maioria dos seus camaradas da Companhia. O "Quarteleiro", por exemplo, sempre o havia conhecido por "Quarteleiro" e era um gajo impecável que  punha a G3  num brinquinho, quando a malta regressava do mato, coberta de pó ou enlameada, "a tresandar a merda". E, depois, animava a malta com o seu acordeão de arraial minhoto, tal como o Oliveira, que tocava viola e cantava uns fados e baladas de Coimbra. 

Da dura história de vida do "Campanhã", o Neves, com o seu traquejo de jornalista, tinha, porém, tomado notas, no seu diário. Lá em Baião, o último concelho do distrito do Porto, ficava uma infância pobre, e no Porto, em Campanhã, uma adolescência truculenta, uma filha de mãe solteira, um futuro incerto de operário da ferrugem. 

Filho de pequenos rendeiros pobres, cedo pegara na trouxa, num ato de rebeldia contra o "pai e patrão", para apanhar o comboio da Linha do Douro e assentar arraiais numa "ilha" do Porto, na freguesia de Campanhã, razão de ser da alcunha que lhe deram na tropa. Tinha um irmão mais velho, operário na CP, que trabalhava na manutenção da via férrea, e que lhe deu guarida nos primeiros tempos.

 Parti, sem a benção do meu pai, e com a minha mãe em alta berraria, em som estereofónico que era para as vizinhas ouvirem bem... Fui em busca de melhores dias na Invicta, já que em casa o caldo, a broa e a pinga mal chegavam para dez bocas. Nem sequer tinha graveto para comprar o bilhete. Viajei escondido num vagão de mercadorias, como um cigano ou um ladrão.

 Falas em fome... mesmo, a sério?!  insinuou o Neves, timidamente.

 Não, vocês, lá na capital, nem sabem o que é isso: uma sardinha para três em dia de festa; um bocado de toucinho quando se matava o porco lá pelo Natal; o ranço da salgadeira na loja quando eu ia buscar o verdasco; um caldo de água quente, pencas e pão de milho esfarelado para aconchegar o estômago; batatas com batatas, quando as havia… E um pingo de azeite, com cebolinhas, e castanhas cozidas no outono e inverno... Mas um homem habitua-se a tudo... Fome, fome, não direi. Digamos que passei... necessidades!... Até ir para o Porto, nunca soube o que era o leite da vaca, nem queijo, manteiga ou iogurte, nem muito menos cerveja. Nem sequer um ovo estrelado, que a minha mãe vendia os ovos para fazer algum dinheiro!...  Não, nunca conheci calças sem remendos.  Ou sequer um par de botas. O meu furriel sabe o que são socas?

 Não, não faço ideia! Peço perdão, sou um citadino...

 Tarocas, tamancos, chinelos, um calçado aberto, com um tira de couro por cima e sola de pau... Era o que a gente botava nos pés, quando ia à vila ou à escola. 

E no Porto, na sua Campanhã (onde ainda morou depois de vir da Guiné, sendo mais tarde alojado num bairro camarário), antiga zona popular e operária da cidade, faria entretanto a sua "universidade da vida" antes  da tropa: moço de recados, marçano, aprendiz de  barbeiro, trolha, futebolista júnior, empregado de café, barman, "chulo de puta fina" – "azeiteiro, como se dizia lá na "ilha" – até descobrir o duro caminho que o levaria aos portões da ferrugem (leia-se: da fábrica metalúrgica, que foi o seu primeiro emprego a sério, com descontos para a "Caixa", em Massarelos, a célebre Fundição de Massarelos, que já  havia conhecido melhores dias, e que irá fechar os portóes a seguir ao 25 de Abril).

 "Cães grandes"?!.. Aprendi a tirar-lhes o chapéu e a cuspir-lhes na sombra desde o dia em que, de socas, mas já com pêlo na venta e os tomates inchados, depois de feita a 4.ª classe, acompanhava o meu velho na visita anual à Casa da Fidalga, pelo São Miguel... 

− São Miguel?...

− Sim, no fim do ano agrícola, lá para o fim de setembro... Para acertar a renda e renovar o contrato: dois terços do vinho, metade do milho, a melhor fruta para a senhora, a viúva de um juiz salazarista (que o povo dizia que era do "Supremo" e condiscípulo de Salazar) e  que tinha mais quintas na região, entre o Marco e Baião, do que eu dedos na mão…

"Cães grandes" era uma expressão que lhe era querida, e suficientemente ampla para nela caber todos os que lhe podiam morder o fundilho das calças e "foder o coirão", do 1.º sargento ao oficial superior, do abade ao "fidalgo"... Em Santa Margarida, tinha levado uma porrada do "sorja", o Gravata, por evidente abuso do poder do seu superior hierárquico, acrescentaria o Neves, que foi contemporâneo dos acontecimentos...


O Neves aproveitou o reencontro da malta, em 1991, para recapitular, com o "Campanhã", o  que se tinha passado, ao certo, em Santa Margarida em maio de 1969, na formação da Companhia: o 1.º sargento era um "chicalhão" de cavalaria e não gozava das simpatias de ninguém, a começar pelos cabos milicianos, futuros furriéis... Por outro lado, o homem esperava ir passar apenas umas férias na Guiné, antes de ser chamado para a Escola Central de Sargentos , em Águeda. 

Às praças não perdoava que se esquecessem de lhe bater a pala!... Foi o azar do "Campanhã", para mais "reguila" desde o início da formação da Companhia. 

− Andavas já debaixo de olho do nosso primeiro!... Ele nunca foi à bola com reguilas como tu, e para mais do Porto!

De nada valeram os pedidos, insistentes, que os cabos milicianos lhe fizeram, para rasgar a participação. Era um homem inflexível, e irascível,  oriundo da arma de cavalaria "como o Spínola" (como gostava de lembrar). E alguns de deles até tinham um certo ascendente sobre ele, haviam começado, ainda em Santa Margarida, a dar-lhe explicações de português, francês, matemática e outras disciplinas essenciais para um futuro tenente SGE (Serviços Gerais do Exército)... 


O "Campanhã", que era uma figura popular, muito querida entre a malta da Companhia, acabou mesmo por levar uma porrada, na véspera de ser promovido a cabo, e lá partiu para a Guiné, "com muita mágoa e raiva", como simples soldado atirador de infantaria. O capitão, que precisava dos bons ofícios do 1.º sargento, para mais logo no início da formação da Companhia, nada fez para demover o 1.º sargento,  acabando por  dar andamento à participação, o  que causou evidente mal-estar entre a generalidade dos cabos milicianos.

O "Campanhã" falava do seu "velho", do  seu pai, com ternura contida e com o respeito comovido que lhe mereciam os mortos de que a História não fala. Tinha falecido em fevereiro de 1969, nas vésperas da ordem da sua mobilização para a Guiné.

 As alegrias passam, meu furriel. Só as desgraças e as injustiças nunca se perdoam e nem se esquecem. A "porrada", injusta, do nosso 1.º sargento ainda me dói, e vai-me continuar a doer pela Guiné fora. 
confidenciou ele, nessa inesquecível viagem de comboio.

Foi despromovido, podia ter ido no "Niassa", com as divisas de 1.º cabo, "com toda a cagança e mérito, porque as conquistei com muito suor"... E perguntava ao Neves:

− Acha justo eu estar a comandar uma secção, na falta de um furriel,  com o reles posto de soldado raso?... Nunca lhe perdoarei, àquele "cão grande"!... Se ele alguma vez tiver o azar de alinhar no mato (o que nunca irá acontecer, eu sei) ou se eu o apanhar a jeito nalgum ataque ao quartel, juro que o mato com um tiro na testa...

E, depois,  arrependendo-se da enormidade que tinha acabado de proferir, emendou, não fosse alguém ouvi-lo e denunciá-lo à "bófia":

− Não o mato, pela simples razão de que eu tenho uma filha pequena para criar... Mas sou capaz de lhe pregar um susto quando o pessoal  se instalar no 'parque de campismo'...

E prosseguiu, já com uns bagaços a mais, enquanto o comboio uivava na breu da noite:


 As tainadas, as bezanas, tudo isso a gente caga e mija... As fodas, um gajo vem-se e, ala, moço, que se faz tarde... Qual amor, qual carapuça!... Nunca soube o que era isso.  

O Neves, "alfacinha" (que ue  não conhecia  nem imaginava até o que era a pobreza de muita gente do campo e da cidade que vivia  no Norte)  não conseguiu disfarçar as suas próprias emoções  quando uma grossa lágrima caiu pela cara  abaixo do "Campanhã " ao evocar  a figura do pai, num longo e pungente monólogo:

 − Veja o meu falecido pai: trabalhou uma vida inteira como uma besta de carga para morrer pobre como Jó, sem um cantinho a que chamasse seu, como qualquer cabaneiro ou cigano sem eira nem beira. Sem saber sequer uma letra, nunca foi à escola, tal como a minha mãezinha que Deus já lá tem, um e outra.... Sem nunca ter ido sequer ao Porto visitar-me e ir à Foz, de elétrico, para ver o mar… Nunca viu o mar, o meu velho!... Nem ele nem ela... Conheceu muitos 'fidalgos', como ele chamava aos senhorios ou patrões… Sempre o conheci de chapéu na mão, agradecendo a suas senhorias o grandessíssimo favor de continuar na terra por mais um ano, uma casa térrea e uns socalcos, depois do São Miguel… Viveu uma vida emprestadada, viveu por favor dos que mandavam neste mundo... É isso que me revolta, carago. E é por isso que me chamam reguila, corrécio, estroina ou pior... Mas eu digo-lhe: há coisas que um homem nunca esquece por muitos tombos que dê na puta da vida, por muitas bezanas que apanhe ou por muitas sacanices que faça… E eu já fiz muita merda, nesta meia dúzia de anos em que me tornei homem. Olhe, até fiz uma filha a uma gaja, menor, com quem fui obrigado a casar...

O Neves recordava estas palavras, ouvidas com empatia, no tal comboio da noite que transportava "carne para canhão", no longínquo ano de 1969... Curiosamente, verificava ali naquele almoço de convívio de antigos combatentes, vinte anos depois de "tudo ter acabado em bem" (como dizia o safado do Azevedo),  que nenhum deles se desculpava por feito aquela guerra e, muito menos, não de a ter perdido, mas de ter perdido a sua juventude, os seus "verdes anos" (como cantarolava o Oliveira).  Em contrapartida, haviam-se ganho novos amigos:

− Amigos para sempre! − concluiu o "Ranger", embevecido.

Para alguns deles, porventura para a maior parte deles, agora "despidos e despedidos" (a expressão era do Neves), desfardados, paisanos, passados à peluda, nus de corpo e alma como no dia em que haviam ido à inspecção, alcunhados de ex-combatentes da guerra do ultramar, últimos guerreiros do império colonial português, "mal amados" (pelo poder democrático do pós-25 de Abril)  − "mas vivinhos da costa como o carapau, graças a Deus!" (era a voz efeminada do "Peniche", o básico, a falar sozinho, lá do outro mundo,  orgulhoso,  porque  sempre acabara por ir parar à "vida artística da noite") − , tinha sido afinal a primeira e a última grande aventura das suas vidas cinzentas, um rito de passagem, uma iniciação (entre dolorosa e divertida) à vida adulta. 

 Uma espécie de acidente de percurso. Um pesadelo climatizado. Uma trovoada fantasmagórica numa bela noite de verão tropical. Um abcesso. Um furúnculo. Uma dor de dentes... - completou, dedilhando a velha viola, ao lado do Neves, irónico, o "baladeiro" do Oliveira, ex-furriel de transmissões, que era de Coimbra (ou arredores) e que, entretanto, se formara em direito.

− Um longo parto, meu furriel, um longo parto! 
− arremataria o "Peniche", no meio da galhofa geral, se fosse vivo, repetindo a frase que lhe dera celebridade e impunidade: "E eu inda hei-de ficar grávida (sic)... e dar à luz, com a ajuda da ciência!"...

Talvez, o Neves, ingénuo, esperasse ouvir a confissão pública de alguém que, agora, à distância dos acontecimentos e na atmosfera distendida do restaurante do Zé dos Leitões, quisesse tomar partido e se levantasse para fazer um discurso puro e duro sobre a traição dos capitães de Abril, do Spínola, do Caetano e de todos os gajos que andaram a gozar com o pagode. Ou então sobre o trágico equívoco que fora a anacrónica, tardia, guerra colonial, ceifando vidas, gastando cabedais, hipotecando o futuro. Mas, não, nenhum dos presentes levantara o copo de espumante para gritar "Viva ou Morra"!...

 Éramos todos, afinal,  bons rapazes! 
 confidenciou, desalentado,  o Neves para os seus botões...

É que todos faziam ali o  jogo da cumplicidade e da camaradagem, jogo cujas regras tácitas ninguém estava disposto a violar. Porque o momento era único, era mágico, e todos sabiam que nunca mais voltaria a repetir-se esse encontro na Anadia, em 1991, apesar das trocas de cartões e de fotos da família e das promessas de, para o ano, irem comer uma valente feijoada à transmontana e provar a famosa posta mirandesa, para lá do Marão "onde mandam os que lá estão" (assegurava o Azevedo, "agora autarca do poder local democrático" e empresário do setor agroalimentar).

 Para o ano em França de Bragança, camaradas!... São todos meus convidados!

 Eu já lá pus os butes, na França de Bragança, na quinta do Azevedo, e bibu no Porto, que é longe como o carago!... O nosso alferes faz o favor de continuar a ser meu amigo e camarada. 
 ironizou o "Campanhã" que continuava, amiúde, a trocar os vês pelos bês, sentindo que ainda lhe achavam alguma graça, os gajos do Sul, os "mouros". 

No fundo, todos aqueles homens, a caminho do meio século de existência no bilhete de identidade, sabiam que, na vida, há momentos irrepetíveis, pelo que nem os fantasmas, dolorosos, do passado, nem as paixões, ainda mornas, do presente, nem muito menos as inquietações, imperceptíveis, do futuro no século XXI que se aproximava a passos de gigante, deveriam perturbar aquele insólito e fugaz mas inesquecível encontro de umas escassas dezenas (não mais do que trinta!) de ex-combatentes da Guiné, mesmo quando, já no fim do almoço (e depois de uma nova rodada de uísques, de uma Old Parr de 1970, que o "Vagomestre" trouxera de lembrança, daquelas garrafas ainda com a etiqueta "From Scotland with Love For  the Portuguese Armed Forces"), alguém tivera o mau gosto, a bizarria ou o azar de se lembrar de evocar os mortos da Companhia...

 Agora é que foderam tudo, c...! –  exclamou, em voz alta e pose teatral, o  "Campanhã".

Comentava o Neves que nunca conhecera nenhuma alma tão sensível como a dele. Ou melhor: "nenhum actor, nenhum pantomineiro, com lágrima tão fácil como a dele"... Ele e o "Peniche" eram verdadeiros "artistas" da palavra e do sentimento, nunca se sabendo ao certo quando falavam "a sério" e abriam o "livro"...


Fez-se um "minete de silêncio"  (uma infeliz bocarra do "Campanhá") pela memória do "Peniche",  o "bobo da Companhia" e que, na "peluda", ainda chegou a ser  um popular mas meteórico  artista de cabaré.  O Peniche, "ofendido e humilhado", com 4 ou 5 anos de tropa no lombo, de tal modo que  o capitão desistira, logo no início, de lhe dar mais "porradas"....

Falou-se pouco da guerra. E de mortos e feridos. E de minas e armadilhas. E de colunas logísticas. E de emboscadas. E de operações. E de ataques e flagelações ao quartel e aos destacamentos da Companhia, que era de quadrícula. E de prisioneiros e de interrogatórios de prisioneiros... 

Enfim, havia um lado "sujo" da guerra que ninguém queria relembrar, pelo menos naquela hora e lugar. E o Neves, surpreso, descobriu que, nestes convívios, a generalidade da malta só queria falar afinal das coisas boas da guerra, as tainadas, as bezanas, os desenfianços, as bajudas, as lavadeiras, as anedotas...

Por outro lado, nenhum destes "bravos da Guiné" fora condecorado por feitos em combate, à exceção do "Campanhã" que, esse, sim, tivera uma cruz de guerra do Spínola depois de, "em luta corpo a corpo", ter "limpo o sebo" a um roqueteiro do PAIGC que, atrás de um bagabaga, se preparava para arrancar a cabeça do Azevedo. 

Esta foi, pelo menos, a versão do "Ranger" que, sendo o segundo comandante da companhia e o comandante da operação, fez o relatório do sucedido e foi, em abono da verdade, advogado em causa própria... (Sendo embora um bom operacional, gostava sempre de ficar bem na fotografia!...)

O "Campanhã" fazia parte da 2.ª secção do 1.º Grupo de Combate, que era comandado justamente pelo "Ranger" Azevedo. O "Campanhã", que era reconhecidamente um grande operacional, um "chanfrado dos cornos" (sic), também manteve sempre essa versão oficiosa que alguns, talvez "com dor de corno", consideravam no mínimo "fantasiosa"... 

O Neves lembrou que não podia confirmar ou infirmar os factos que ocorreram nessa operação. Estava com paludismo nessa ocasião, safou-se desse embrulhanço mas não de outros, que não foram melhores. Era o comandante da 3.ª secção.  

O Neves era o único furriel do 1.º pelotão. Os outros dois foram mais espertos do que ele, e procuraram outros ares. Não apareceram no convívio, para conforto dele e tranquilidade do seu espírito. Claro que o Neves, mal humorado, também fez questão de dizer, alto e bom som, não tinha mesmo vontade nenhuma em revê-los, sobretudo ao Pires, que desertara, aproveitando a licença de férias na metrópole, em 1970, segundo notícia que lhes dera depois o capitão, e que deixara a malta toda  "descolhoada" (sic)... Nada o fazia prever, nem nunca ele tinha dado a entender que o poderia fazer... Para a rapaziada que veio com ele, de Santa Margarida, o Pires era o exemplo do mais que improvável desertor: um gajo certinho, pouco ou nada falador, amigo do seu amigo, que sabia "fazer as  coisas pela calada"...

De qualquer modo, o Neves sempre achou que a cruz de guerra, "com mais ou menos água benta da caldeirinha do padreco do Azevedo", ficava bem no peito do bravo "Campanhã".

Ao que parece, a 1.ª secção do 1.º pelotão já estava na "zona de morte" de um grupo IN emboscado, com o Azevedo e o guia  à frente. O "Campanhã", que vinha com a 2.ª secção, na curva do trilho, viu de relance, de perfil,  o tubo do RPG2 a sair do bagabaga, com a granada pronta a disparar.

 Parecia um c... das Caldas, a sair do forno, a passo de caracol. Só tive tempo de gritar: Todos pró chão, seus c...!', e disparar uma rajadada, a matar, sobre o vulto que estava, de pé,  por detrás do bagabaga. Despejei-lhe um carregador sobre o tronco, visto de perfil...


Não terá havido nenhuma luta corpo a corpo. Mas quem conta um conto, acrescenta-lhe sempre um ponto... O "Campanhã" recuperou apenas o RPG2 com a granada e salvou a secção do Azevedo de um massacre. Este ficar-lhe-ia reconhecido para o resto da vida... Ainda hoje são amigos e o "Campanhã" é visita da sua casa em Bragança... No relatório, redigido e assinado pelo Azevedo, "o IN teve várias baixas, uma confirmada e 2 estimadas, pelos rastos de sangue"... 

O Neves recordou, para um grupo mais restrito, à mesa, o gozo interior, e o ar sereno, do "Campanhã", quando recebeu, de peito inchado, a cruz de guerra e o capitão lhe voltou a pôr as divisas de 1.º cabo, no 2.º ano da comissão, já o "nosso primeiro" tinha seguido para a grande escola de cabos de guerra de Águeda...

 Tenho pena que esse 'cão grande'  (sic) já não esteja aqui entre nós... Fazia questão de lhe enfiar a cruz de guerra pelo cu acima e depois mandar-lhe uma traulitada direta à caixa dos fusíveis ... - disse-me ao ouvido do Neves, no gozo. 


Naturalmente que o amigo (e camarada de pelotão) desculpava-lhe este lado de fanfarrão a que também têm direito os heróis de guerra. Aliás, também, naquele tempo, não havia assim tantos heróis de guerra por metro quadradao: o "Campanhã" fora um deles e o Azevedo nunca chegara a sê-lo, com muita pena dele.

O Neves ainda voltou a um um outro convívio da companhia, já no virar do milénio... E num deles reencontrou o capitão, então já coronel, na situação de reforma. Ter-se-á emocionado, o antigo capitão, quando evocou as trágicas circunstàncias em que foi morto o primeiro homem da Companhia, logo nos dois primeiros meses de Guiné... Estavam emboscados, de noite, quando há um militar que sai da sua seção para ir "arriar o calhau" (sic), sem dizer nada a ninguém e quebrando a rigorosa disciplina imposta... No regresso, ao ouvir restolhar o capim, o capitão instintivamente disparou uma rajada... Teve uma agonia horrorosa, o pobre soldado, durante quase uma hora, sem possibilidades de ser helievacuado... 

− "Herói ou santo", parece que era o lema de vida do Azevedo, já do seu tempo de menino e moço. Nunca foi uma coisa nem outra, e soube, entretanto, que infelizmente já morreu há dois anos, em 2011... E o nosso "Campanhã", também infelizmente, está em Custóias, à espera de julgamento.  Foi um choque para todos nós a revelação da sua vida dupla.  Uma vida madrasta.  Esperemos poder voltar a abraçá-lo, de novo, o mais 
breve possível.  Quero crer na sua inocência. 

De resto, o Neves nunca mais estivera com nenhum deles, o "Ranger" e o "Campanhã",  depois do convívio na Anadia, em 1991. E também não tinha podido ir, no ano seguinte, a França de Bragança, como ele escrevera, em email enviado ao organizador do convívio de 2013, no Porto.

No discurso, de improviso, que fez no Porto, à hora dos brindes, nesse convívio de 2013, o Neves (que não era dado a tiradas patrioteiras) disse tudo o que achava que se podia dizer sobre estes encontros de saudade, dos ex-antigos combatentes da Guiné:

Em verdade, nenhum destes heróis existiu. Nem poderiam ter existido: afinal, essa guerra nunca existiu e, se  chegou a existir, nós perdemo-la, justamente por falta de heróis improváveis como o "Campanhã" ou grandes combatentes como o nosso "Ranger", que nem sequer foram reconhecidos. De qualquer modo, honra e glória para eles!... Mas, em boa verdade, não foram heróis, não se consideravam heróis... Foram portugueses que apenas cumpriram o seu dever para com a Pátria, que está sempre acima de qualquer regime político, souberam fazer a guerra mas também a paz. E nós todos, aqui presentes, neste convívio, não passamos afinal de bons rapazes que, agora, no ocaso da vida, se juntam para  beber uns  copos,  conviver e matar saudades do tempo perdido. Mas ficámos  amigos, isso sim, ficámos amigos para sempre, citando o nosso saudoso "Ranger".

© Luís Graça (2007). Última versão, revista e melhorada: 19/7/2023.
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Nota do editor:

(*) Postes anteriores da série:


26 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24433: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (2): Que Alá te proteja dos teus amigos, que dos inimigos cuidas tu!

8 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24379 Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (1): À porta do IPO, à espera de Deus e de remédio para as suas obras imperfeitas.