segunda-feira, 20 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25545: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (28): Cá se fazem, cá se pagam ?!

 

Contos com mural ao fundo > Cá se fazem, cá se pagam!?

por Luís Graça

 

De repente viste-o de perfil. Reconheceste-o logo. Estava sentado, na sala de espera da consulta de oftalmologia. De telemóvel na mão, como quem aguarda uma chamada. Estranha coincidência, pensaste tu. Já não o vias há anos.  Muito antes até da pandemia (agora há o antes e o depois da pandemia, dá jeito para balizar as nossas memórias da “peste”, do latim “peius”, a pior doença…).

Aproximaste-te dele. Sorrateiramente. Por detrás. E sopraste-lhe ao ouvido:

O Mundo é Pequeno…

Era a nossa senha. Ele reconheceu-te de imediato, e respondeu-te com a contrassenha:

− … e a Nossa Tabanca é Grande!

Deram os dois um “alfabravo” efusivo. Um abraço,  na gíria da tropa ou calão de caserna. Eram dois antigos combatentes do tempo da Guiné. 

− Também tu,  por aqui ?!  − perguntou-te, agradavelmente surpreendido.

− Fui ontem operado a uma catarata… E tu ?

− Diabetes!... – respondeu-te ele, lacónico,  entre o descontraído e o conformado.

− Só te faltava mais essa!

− Sabes como é, com a idade juntam-se todas as mazelas, as do corpo e as da alma.

− Estamos a pagar a fatura da Guiné!

E, de repente, interrompeu-te:

− Olha, espera aí, está na hora da Doutora Glicemia !

Percebeste que ele desviava o olhar para o ecrã do telemóvel, depois de receber um toque, impercetível para ti:

− Ah!, a glicemia!...

− Está a “vermelho”… Tenho que ir trincar qualquer coisa…

Sugeriste-lhe que fosse avisar as meninas, antes de ir comer uma sandocha   ao bar do hospital, logo ali no piso zero. E lá foi ele deixar o recado… para, logo de seguida,  regressar ao seu lugar… Vinha a comer um bolo. Reconfortado, e com ar de quem tinha agora todo o tempo do mundo e podia conversar, enquanto não o chamavam para a consulta.

− Já estou melhor – comentou, sorridente, afável.

E logo ali, tu e ele, recordaram aquele fatídico dia treze de janeiro em que, com um intervalo de duas horas, tinham caído ambos em duas minas anticarro. Às portas de Nhabijões, um gigantesco reordenamento populacional, no Leste da Guiné, perto de Bambadinca.

Duas minas!!!... Ele às onze, tu às treze!... Treze do dia treze, que nem sequer era sexta feira. Mas que foi de azar para vinte e tal homens… Há mais de 50 anos atrás. 1971.

− Um pandemónio! – comentaste tu.

Tinhas vindo no “gosse-gosse”, a toda a mecha, com o teu pelotão que estava de piquete na sede do batalhão, em socorro das primeiras vítimas.

− O vosso soldado condutor, que ia a meu lado, teve morte imediata.

− E tu foste logo helievacuado para o hospital.

Pobre S…, comentaram os dois. Aos vinte e um meses de comissão,  a escassos dois meses de regressar a casa e de, finalmente,  ir conhecer a filha nascida  pouco tempo depois de ele embarcar para a Guiné. 

− E ele a pendar que Nhabijões era um serviço maneirinho, sem grandes sobressaltos...

E ali estava o M…, em carne e osso, que um gajo do PAIGC, ele próprio oficial do mesmo ofício, sapador, quis mandar para os quintos do  inferno. O alferes miliciano M…, especialista em minas e armadilhas, destacado em Nhabijões a chefiar a equipa de reordenamentos. Escolhido só porque tinha frequentado  o curso de engenharia do Técnico!... E era mais velho, três anos, do que a generalidade dos outros oficiais milicianos.

Na altura,  Nhabijões era o maior reordenamento em construção na “Spinolândia”. Era, para mais, uma das “meninas bonitas” do “Caco Baldé”: quando lá passava, tinha que ir meter o bedelho, observar o avanço dos trabalhos.  Mandava poisar o helicóptero, dava dois dedos de conversa com a tropa e os civis (que eram “turras”), e lá seguia ao seu destino.

Spínola adorava andar de heli e todos os pilotos se sentiam honrados em levá-lo a bordo,  a seu lado.

− E sem pedir licença a ninguém!... Afinal, ele era o dono daquilo tudo… − observou o M…

E riu-se com o sorriso, bondoso e ingénuo, que sempre lhe conheceste. E já que estavam em maré de confidências, aproveitou para te contar uma história que tu ainda não sabias.

Depois de algumas semanas  (talvez um mês e tal ou dois) no “estaleiro”, e após a alta do hospital, o HM 241, em Bissau,  apresentou-se ao serviço,  em Bambadinca, sede do batalhão a que ele pertencia. Ainda lhe faltava um ano e tal para a acabar a comissão. 

Bateu a pala ao novo “senhor da guerra”, um spinolista (que não era de cavalaria, mas tinha fama de durão), acabado de chegar da região do Oio, para comandar o batalhão. (O anterior comandante tinha “levado com os patins”, por punição do general, o comandante-chefe.)

O novo tenente-coronel  quis “chegar, ver e vencer”, como o Napoleão. Pôs todo o mundo em alvoroço,  a desgrudar o rabo das cadeiras das secretarias, e ele próprio deu o exemplo, indo com a malta operacional da CCAÇ 12 para o mato para reconhecer o seu setor.

À frente do segundo comandante, major de artilharia, perguntou ao M…:

− E você, nosso alferes, o que é que está aqui a fazer ?!

− É sapador, meu comandante, estava no reordenamento de Nhabijões…− apressou-se  o major a esclarecer.

− Estava ? !... E já não está ?!... Vai já na próxima coluna para Sinchã… (Qualquer Coisa, que o M…  não percebeu.)

− Mas..., o meu comandante dá-me licença ?!... É  que eu acabei de regressar do hospital…

− Apanhou uma mina anticarro – acrescentou o 2º comandante.

O tenente-coronel não quis ouvir mais explicações. Visivelmente irritado com tanta gente de baixa na CCS (Companhia de Comando e Serviços), virou-se para o major e intimou-o:

− Tire-me já daqui este inútil!

E assim foi… No dia seguinte, aproveitando a maré, lá seguiu o M…, ainda convalescente, com guia de marcha,  rio Geba abaixo,  com destino a Bissau. Apanhou o “barco turra”, no cais fluvial de Bambadinca, com ordem de se apresentar no  Batalhão de Engenharia, em Brá.

Reclassificado, passaria depois aos “serviços auxiliares”. Deram-lhe 33,3% de incapacidade…

Perguntaste-lhe depois como é que ele tinha vindo à consulta, já que parecia não estar acompanhado por ninguém.

− Desta vez vim de Uber, mas habitualmente é a minha mulher que me traz de carro. 

E lá ficaram os dois à conversa, rememorando a última meia dúzia de anos em que andaram desencontrados, com a pandemia pelo meio…

Em jeito de balanço de uma vida, o M.., que era beirão, acrescentou, entre embevecido e sarcástico:

− Como vês, uma vida! 80 anos, uma guerra, uma mina que me ia quase matando, deficiente das forças armadas,  professor de matemática no ensino secundário,  reformado, três casamentos, três filhos, três netos… E, agora, a flor de cerejeira que me faltava para compor   o ramalhete: uma diabetes!... E, olha, juro-te que nunca fiz mal a Deus!

− Eu também não, confesso,  mas só pode ter sido por termos feito aquela maldita guerra… Deus, se calhar,  não estava do nosso lado, como nos tinham afiançado.

− Achas ?!... Se assim foi, e como se diz na minha terra, Deus castiga  sem pau nem pedra!

− Eu também acho que foi castigo!... Mas porra, logo uma mina!... Eh, pá, eu não sou crente, mas tenho as minhas superstições. Na Guiné aprendi a ter muito respeitinho pelos irãs.  É que havia os bons e os maus. O Amílcar Cabral lixou-se porque não soube distingui-los. Eu usava os amuletos como os meus soldados e os gajos do PAIGC!... Sempre achei que mal não fazia, antes pelo contrário...

− Alguém nos rogou uma praga!

− Mas hoje sei, ao menos, quem nos tramou, quer dizer, quem nos pôs as minas, a tua e  a minha, à saída de Nhabijões.

− Sabes mesmo quem foi ?!...

− Sim, sim… E olha que traziam código postal.

Explicaste depois ao M…, quem tinha sido: o Mário Mendes, comissário político (ou comandante de bigrupo ?), e o seu sapador, aproveitando a calada da noite... E com a cumplicidade dos habitantes de Nhabijões,  que nessa manhã não quiseram apanhar a boleia do Unimog da tropa que ia buscar o almoço a Bambadinca… (Estavam a par da marosca, os sacanas!)

Um ano e tal depois, a  malta da CCAÇ 12, o mesmo pelotão que tinha apanhado com a potente mina que estoirou com a GMC, limpou o sebo ao Mário Mendes.

− Num duelo digno dos melhores filmes do Faroeste!

− Então, estamos quites!... Cá se fazem, cá se pagam! – arrematou o M…, em jeito de conclusão.

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Nota do editor:

Último poste da série > 22 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25422: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (27): Melhor ainda do que um bom padrinho, é ter um paizinho...

Guiné 61/74 - P25544: Viagem a Timor-Leste: maio/julho de 2016 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte I: As primeiras emoções e impressões


Lourinhã > Praia da Areia Branca > 2 de dezembro de 2017 > Almoço de um grupo de amigos de Timor-Leste, no restaurante Foz: em primeiro plano, Rui Chamusco e Gaspar Sobral, cofundadores e líderes da ASTIL 

Foto (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Rui Chamusco passou a integrar desde 10 de maio último a nossa Tabanca Grande (*). É cofundador da ASTIL, com a sua conterrânea,  Glória Lourenço Sobral, professora do ensino secundário,  e  com o marido desta, Gaspar Costa Sobral,  luso-timorense que, em Angola, antes da independência, era topógrafo.  

ASTIL é a sigla da Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste, criada em 2015, com sede em Coimbra. Entre outros projetos desenvolvidos pela ASTIL,  destaque-se a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), nas montanhas de Liquiçá (pré-escolar e 1º ciclo) e o apadrinhamento de crianças em idade escolar. (Havia, então, em Boebau,  150 crianças sem acesso à educação.)

O Rui, professor de música, do ensino secundário, reformado, natural do Sabugal, e a viver na Lourinhã, tem-se dedicado de alma e coração a este projeto no longínquo território de Timor-Leste. (A ESFA foi inaugurada em março de 2018: custou então 50 mil dólares, sem contar com muita da mão-de-obra "pro bono")

Regressou há dias, ao fim de 3 meses, de mais uma estadia (a quinta), desde 2016.  (Voltou lá em 2018, 2019, 2023 e 2024.) Falei com ele ao telefone, ainda estava "todo partido" da longa viagem (são mais de 14 mil quilómetros de distância, e uma diferença de 8 horas entre Lisboa e Dili).

Desde a sua primeira viagem a Timor-Leste, no início de maio de 2016, que ele vai escrevendo umas "crónicas" para os membros da ASTIL e demais amigos.  Na minha caixa de correio tenho  recuperar algumas dessas crónicas (de 2018 para cá). Em Dili ele costuma ficar na casa do Eustáquio, irmão (mais novo) do Gaspar Sobral. 

Pedi-lhe, entretanto, cópia das crónicas de 2016, a primeira vez que ele pisou a terra sagrada de Timor Lorosa'e. (Partiu a 5 de maio e regressou a 7 de julho.)

Vamos publicar alguns excertos, dado o interesse documental que têm para os nossos leitores que querem saber mais da história e da cultura dos nossos amigos e irmãos timorenses.

 Viagem a Timor: maio/julho  de 2016 - Parte I: as primeiras  emoções e impressões

por Rui Chamusco 


Descrição pormenorizada – acontecimentos e peripécias dos amigos Gaspar Sobral e Rui Chamusco

Depois de muitos trabalhos de preparação (vacinas, consultas, contactos, marcação de dias da viagem, obtenção de bilhetes e outras coisas mais) eis-nos a caminho: a primeira etapa da consagração do projeto de solidariedade “ uma escola em Timor “. 

As expectativas são muitas, as dificuldades muitas mais, mas a força e o querer que isto aconteça superam qualquer intento de desânimo ou de desistência.

Dia 5, 6 e 7 (quinta, sexta e sábado), maio de 2016 

Fundadores: Rui Chamusco,
Glória Sobral e Gaspar Sobral


Em casa dos amigos Tó Barroco e Mila em Odivelas, pelas 6 da manhã começam os primeiros rumores com os serviços da casa de banho que um a um utiliza, antes de um ligeiro pequeno almoço e da partida para o aeroporto da Portela (Lisboa). 

Às 8.30h começamos o chek-in e o controle de bagagens. Às 11.00h entrada para o avião da British Airways rumo a Londres. Aí permanecemos até às 20.00h, seguindo depois até.ao aeroporto de Singapura durante um percurso de mais de 13 horas de avião.

Chegada ansiada ao mundo indonésio e que ali nos albergou até às 9.00h do dia seguinte, com partida para Dili (Timor) onde chegamos pelas 14 horas, contando com as horas do fuso horário respetivo.

Em Dili descemos da aeronave sob um calor sufocante, tal o grau de humidade da temperatura ambiente. Mesmo assim nada que nos impedisse do grande regozijo de pisar o solo timorense. 

Grande expectativa, depois de cumprirmos as formalidades exigidas, de conhecermos a família do amigo Gaspar que, antecipadamente avisada, estava a nossa espera. Beijos e abraços, com momentos fortes de emoção. É que Gaspar há 16 anos que não visitava à sua terra natal.

Surpresa ou coincidência

Enquanto esperávamos pela realização do check-in Singapura / Dili, surge precisamente à minha frente uma figura conhecida e com a qual em tive contatos há quase meio ano na preparação desta visita a Timor. Nada mais nem nada menos que o frei Padre Fernando Cabecinhas, provincial dos Capuchinhos de Portugal, que vem em visita às comunidades missionárias de Tíbar e Laleia. 

Foi uma alegria imensa de parte a parte pois, para além de recordarmos tempos passados, eu como diretor do seminário menor e ele como aluno, pusemos em dia a conversa sobre a vida de capuchinhos que outrora foram meus companheiros. 

Ficou logo ali delineada uma visita a Tibar, a fim de encontrar e abraçar o Pe. António Pojeira. Por razões de circunstância a visita ficou adiada mas que, logo que possível será concretizada.

Surpresa nº2

Tinha que ser! Por mais voltas que desse a passadeira das bagagens as nossas malas não apareceram. Revisão dos espaços, contatos telefónicos não serviram de nada. À nossa preocupação juntaram-se muitos outros que abnegadamente tentaram resolver a situação, mas o único que nos garantiram é que no próximo sábado (oito dias depois) as malas seriam entregues. A ver vamos!...

Amanhã, domingo, dia 8,  iremos à Plaza de Timor ( supermercado ) a fim de comprarmos algumas roupas, pois o calor húmido que se faz sentir obriga-nos a mudar de trajes com frequência. Entretanto, como diz um ditado timorense, “ nada se perde; apenas se esquece” (Saçan lá lácon; só halu han deit). Que assim seja…

A visita ao cemitério de Santa Cruz

Com a família Soveral como guia, fomos de imediato visitar esta lugar de memórias, e particularmente a campa do pai desta família José Alves Sobral, vítima de doença em 1975. Muita emoção, lágrimas e choro sobretudo por parte do Gaspar. 

A mim impressionou-me imenso o facto de se verem ainda em várias campas (também do sr. Sobral) as marcas dos tiros que no ataque de 12 de Novembro de 1992 o exército indonésio disparou e matou mais de 200 timorenses. 

De seguida fomos de karreta até à zona habitacional da família, em Ailok laran – aldeia da Ribeira Maloa, também conhecido por suco de Bairro Pitê (nome do administrador que lhe deu o nome). 

Muita gente à espera do Gaspar e do malae (português), que sou eu. Irmã, irmãos, cunhadas, filhos, sobrinhos, vizinhos, amigos… um corrupio de gente e sobretudo de crianças que, em face dos visitantes, tudo querem ver e saber. 

Um ambiente stressante mas que sabe bem. Todos se desfazem em simpatia, mesmo que a linguagem falte. Vendo e ouvindo os seus clamores e as suas histórias até às tantas da noite, mesmo que caindo de sono. O tempo é pouco para tanta vida pujante. Só crianças à nossa volta são treze. Ou seja, crianças e adultos da família Sobral são mais de 20 pessoas a fazer serão.

A vida e o bem estar desta gente

Há 14 anos que Timor é independente, com órgãos próprios de governação. Muita coisa já foi feita mas muito mais há que fazer. Tenho o privilégio de estar a viver com as pessoas do povo e não em hotel. Isto permite-me embarrar-me, comer e beber, cantar, tocar, estar com eles à conversa, escutar as ânsias e anseios das pessoas quiçá mais desprotegidas. Nada que possa alterar as características deste povo que nasce, vive e morre com o sorriso sincero nos rostos.

 Hoje observei as três crianças do Anô que iam ser batizadas. A mais pequena, que nem dois anos tem, desfaz-se em sorriso impossível de descrever. Como não ficar ligado a esta gente? Não há nada que pague esta oferta.

Faltam muitas condições de conforto e de bem estar a que um europeu está habituado. Mas sobram valores e relações humanas que são riqueza e património deste povo. 

Destaco em particular o valor da família. Viver em família é um processo natural. Na família Sobral todos são de todos, não há portas nem barreiras, os maiores cuidam dos mais pequenos, o respeito dos mais velhos está garantido com o beijo e reverência (beija e encosta a cabeça na mão do adulto), gesto repetido todos os dias ao fazer o cumprimento. 

Tenho a sorte de já ter entrado no coração desta gente. Sou tratado como o Ti Rui ou, melhor ainda, como irmão Rui. Nada melhor que me possam oferecer do que esta fraternidade voluntária.

A empatia com a natureza

Aqui nada se perde. O aproveitamento da natureza é feito com respeito pela mesma, que tudo nos dá. É mãe… Ervas, plantas, aves, animais pessoas tudo aqui convive numa perfeita harmonia e promiscuidade. Sem agressões, com mútuo respeito. Gostaria que assim fosse em todo o mundo. Não se estraga, não se abusa. Não se vive em opulência, serve-se o necessário, chega para toda a gente. 

Que bom saborear os pratos típicos tradicionais! Sedok (arroz com feijão fore), mostarda em planta, papaia, folha de abóbora, betal, areca, calai, etc… etc… que para além de alimentação se utilizam também com fins terapêuticos. A envolver este cenário há um jardim natural bem conhecido dos residentes pelos seus nomes e utilidades. 

Um verdadeiro hino ao Criador.

A vontade enorme de aprender português

Quase todos os dias me deparo com crianças que, servindo-se de um manual escolar, tentam fazer os trabalhos de casa seja onde for, até em cima da campa da avó Felismina Sobral. Posso confirmar que estas crianças têm avidez de saber. A ler, a cantar, sozinhas ou em grupo mas quase sempre em português. É por isso que não posso ficar indiferente. 

Com a guitarra do irmão Eustáquio tento ensinar canções através do melhor processo de aprendizagem: lendo em voz alta, mandando repetir, tocando a melodia, fazendo os gestos, acompanhando… O resultado está à vista. Estão gostando tanto que já dizem: “ quando irmão Rui for embora a gente vai chorar”. Derretem-me literalmente o coração…

Hoje de manhã, dia 8, fui encontrar a Adobe, uma das filhas do Eustáquio, quase deitada no chão de mosaico sobre um livro e a soletrar palavras em português. Não aguentei mais. Chamei o pai e a mãe e propus-lhes: ” Eu gostava de ser padrinho desta menina. Apoiar os seus estudos e seguir o seu desenvolvimento. Aceitam?” 

De imediato foi dado o consentimento. Um beijo e um abraço selaram este acordo. De agora em diante procuraremos o que for melhor para a Adobe.

Dia 10 (terça-feira): encontro informal com ex-combatentes da resistência

Quase podemos dizer que, desta gente que habita o bairro, não há ninguém que direta ou indiretamente não tenha estado envolvida com a invasão indonésia. A casa que habitamos da família Sobral foi totalmente destruída e arrasada. Hoje está reconstruída.

Igual sorte tiveram as casas em redor. De modo que é muito fácil encontrar testemunhos e antigos combatentes normalmente afetos à Fretilin. Todos têm a sua história mas destaco em particular alguns ex-prisioneiros que com coragem e inteligência aguentaram e escaparam (sobreviveram) às torturas infligidas.

Abeca Sobral, homem de estatura franzina que o vento pode levar, relata que na prisão era torturado com socos no estômago que, segundo ele,  só por milagre não o mataram.

Diz que à frente das grades da prisão passou alguém de cujas botas se desprendeu um pequeno papel (recorte de revista ou jornal que ainda hoje guarda consigo e que me foi mostrado) que habilmente conseguiu obter e onde estava (está) escrita uma oração a Santo Exposito. Diz Aveca que esta oração lhe deu a força necessária para resistir a tudo: “davam-me socos no estômago e nada sentia; parecia que estavam batendo em borracha”. 

Aveca está vivo, com a sua família no bairro Ailok laran, como a maioria dos irmãos e com um cargo de funcionário público na administração do Estado: chefe de serviços no registo predial de Dili.

Eustáquio (alcunha de João Moniz Sobral), outro dos irmão que nos alberga, é taxista e conta que ele, a mãe, os irmãos tiveram que fugir e se refugiar na montanha durante três anos. Caminhavam de noite e de dia escondiam-se. 

Numa certa noite uma tempestade de chuva se anunciava. A mãe e os filhos procuravam refúgio para se albergarem do mau tempo. Foi então que a mãe lhes diz: “vamos para aquela casa que ficaremos a salvo”. Aí descansaram até de manhã e, surpresa das surpresas, quando acordaram não viram casa nenhuma. A mãe, já falecida, e os irmãos ainda presentes testemunham que isso foi verdade. Milagre talvez, mesmo que os psicólogos e psicanalistas digam que foi alucinação coletiva. Ouvir para crer, é o que nos resta… 

No entanto quero salientar a convicção de quem passou por isso e relata o acontecimento. O final desta fuga não foi feliz. Acabaram por ser apanhados pelas forças indonésias que os reportaram para Dili. Já na sua terra (arredores de Dili) constataram com tristeza que a casa de família tinha sido completamente arrasada e queimada. O Eustáquio prometeu que iria recuperá-la, o que hoje em dia é jáum facto.

Felisberto é um dos vizinhos do casal Sobral, foi preso pelos indonésios que o levaram para uma prisão na Indonésia. Já na cela bem apertada teve de socorrer-se da sua imaginação para se poder livrar dos calabouços. Quem não quiser ler feche os olhos porque o que vem a seguir nem todos os estômagos suportam. O Felisberto teve uma ideia de merda. Foi ao balde para onde fazia as necessidades, e com as mãos cobriu a cabeça de merda. Uma, duas, três vezes…até que os responsáveis da prisão o consideraram maluco e o libertaram. Dizem os vizinhos que ele ficou mesmo afetado, não regula bem. Ainda agora o avistei no seu território.

José Sobral, já falecido, também foi preso pelos indonésios e,  segundo contam os irmãos, foi sujeito a uma série de perguntas em linguagem Bahasa da qual ele nada entendia. Pelo sim pelo não decidiu responder sempre sim com aceno de cabeça. Cada resposta, cada sessão de pancadaria.

Enfim estes e outros testemunhos são para entender o que esta gente sofreu por  quererem continuar a ser portugueses. O amor e a paixão por tudo o que se relaciona com Portugal é impressionante.

Dia 10 (terça feira) – Viagem em microleta até Dili rumo à escola de Taibessi

Como já relatei anteriormente decidi apadrinhar uma menina do casal Eustáquio/Aurora e seguir o seu percurso. Adobe está no 4º ano de escolaridade na Escola Farol.

Devido ao seu interesse pela língua portuguesa procuramos uma escola de referência onde Adobe possa aprender corretamente o português. Indicaram-nos a escola de Taibessi para onde nos dirigimos em microleta

Bem atendidos pelo porteiro timorense e pelas duas professoras que nas suas salas lecionavam , expusemos a situação que não foi logo resolvida porque a professora coordenadora –Teresa Nora – já não estava. Por contato telefónico foi marcado encontro no dia seguinte às 8.00 horas. Esta viagem teve a particularidade de entrar na microleta com uma cabeçada estrondosa que me ativou as ideias, e uma grande chuvada ao chegarmos a casa em que os chinelos de dedo no pé são a melhor solução para não molhar os sapatos.

Não posso deixar de registar o grande jogo de futebol a que assisti no largo da casa Sobral: seis miúdos do bairro, sem camisa, descalços e com os calções a cair jogavam  desalmadamente sob chuva intensa com dribles impressionantes, fintas e defesas corajosas, em que o único interesse é o jogo pelo jogo, sem árbitros, sem limites de campo, sem faltas. Um verdadeiro jogo de amigos e de convívio.

Dia 11 (quarta feira) – De novo rumo a Taibessi

Eram 7 horas da manhã e já estávamos prontos para o arranque. Foi então que avistei o Eustáquio com a sua mota e dois capacetes. Só então compreendi que um era destinado para mim. 

Nunca pensei correr a cidade de Dili em mota. Eustáquio a conduzir, eu atrás do condutor e a Adobe à frente lá fomos de novo a caminho de Taibessi. Muito bem recebidos pela professora Teresa Nora. que compreensivamente resolveu o problema. A Adobe vai ficar na Turma B do 4º ano e hoje mesmo fomos tratar do boletim de transferência á escola de Farol. Amanhã iremos de novo entregar os documentos solicitados para conclusão do processo.

Dia 12 (quinta feira)

Dito e feito! A Zinigia (Adobe) já está na Turma do 4º ano B. Foi logo integrada na aula de ginástica. Mais uma vez realço pela positiva a forma amável e interessada da Professora Teresa Nora, bem como do professor da Turma. Orgulho-me da classe profissional a que pertenço, embora na reforma.

Noite atribulada deste dia 12!

 A partir das 3 horas da manhã tive de sair da cama e ir para o exterior porque o amigo Gaspar (raios o partam!... ) resolveu pôr-se à conversa vom o mano Eustáquio. Mais parecia um monólogo que um diálogo pois só ele é que pregava. Irritado com as sua baixas frequências, tomei a decisão de me livrar desse ruído perturbador e fui sentar-me no canto mais sossegado do recinto. 

Dormi um pouco mas os mosquitos (melgas) começaram a zunir, pelo que me levantei de mansinho na intenção de regressar à minha tarimba. Azar dos azares, todas as portas estavam fechadas. Daqui até o sol raiar foi um pandemónio de mudança de cadeiras, de posições, de pensamentos de revolta e eu sei lá que coisas mais. Sei que não foi por mal, pois pensavam que eu já estaria dentro, mas lá que custou a passar a noite custou.

 Hoje mesmo vou tentar recuperar a energia pois este santo corpinho ficou todo amassado das andanças da noite.

Viagem em Táxi

Mais uma experiência de viagem, em táxi, do mano Eustáquio à escola de Taibessi.

Pensando que seria melhor do que o transporte de ontem, tenho de concluir que, apesar das confusões de trânsito, a viagem de mota foi mais segura e agradável. Estranhei que o carro andasse, mesmo a cair aos bocados, mas lá fomos ao nosso destino e chegamos sãos e salvos a casa.. 

Tantas dificuldades materiais que esta gente suporta, mas nada que os impeça de chegar onde querem chegar. Cada um tenta desenrascar-se como pode, mesmo que para isso seja necessário dar um murro no carro para que uma porta se abra.

Aqui é assim: oficinas e mecânicos pouco se vêem. Cada um tenta ser mecânico à sua conta. Por isso não é de admirar que os carros e as motas estejam tão mal tratados. O que importa é que andem, porque de comodidades ninguém esteja à espera. Se o motor não arranca empurra-se, pois mão de obra é coisa que aqui não falta. E viva o desenrascanço!...

Mais uma vítima (política) inocente

Hoje o Gaspar estava atónito a pensar no que o irmão (Eustáquio) lhe contara. Um amigo foi interrogado (talvez por alguém das secretas indonésias, pelos vistos realidade existente em Timor), se conhecia o Gaspar Sobral. Como negou que o conhecia,  levou tanta pancada que o deixaram cego. 

O Gaspar,  profundamente chocado e desconhecedor do acontecimento,  manifestou de imediato a vontade de conhecer esse senhor e de lhe agradecer ter-lhe salvo a pele. Parece que este episódio e esta procura pelo Gaspar remonta aos tempos da Expo Sevilha, onde Gaspar e mulher (Glória Sobral, que é ntaural do Sabugal) participaram ativamente na manifestação Pró Timor contra a Indonésia.

Postal de Timor

Gostaria de uma pincelada poder descrever o que por aqui se passa mas não é nada fácil prescindir de pormenores que constantemente nos atraem pela positiva ou pela negativa.

Dalguns já dei conta mas muitos mais afloram sempre que ouvimos alguém. Por exemplo,  o fosso existente entre a classe política e o povo. Sabiam que um assessorde ministro ganha 5.000 dólares enquanto que um contínuo do ministério no escalão máximo ganha 200$? 

As estruturas do Estado e da Igreja são as mais vistosas da cidadea classe média vive em bairros na periferia onde o desenvolvimento e as condições sociais deixam muito a desejar. Existe lixo espalhado por todo o lado e a sensibilidade para a preservação e limpeza do ambiente é coisa de futuro. Muito caminho há a fazer…

O trânsito é intenso e bastante desordenado. Mesmo assim condutores de toda a classe de veículos manifestam grande destreza e habilidade pois o número de acidentes é pouco relevante. Os produtos locais chegam a todo o lado, ainda que não haja carros e câmaras de frio que acondicionem os materiais. Todos os dias, a toda a hora, são músicas e reclames a anunciarem o que se vende: carnes, peixes, hortaliças, sementes, água, roupas, bugigangas, cada vendedor com o seu estilo e meio próprio. Mas o que mais me chamou a atenção, pelos sons que produziam, eram dois leitões pendurados em vara levada ao ombro, que se desfaziam em gemidos apelando a socorro. Dói de ver, mas é assim a cultura deste povo.

Hoje, dia 12, véspera da Senhora de Fátima, anunciam-se procissões noturnas por todo o lado. O sentimento religioso deste povo é grande e creio que sincero. Crianças e adultos todos trauteiam melodias portuguesas a Nossa senhora bem conhecidas. Nas casas, nos carros, nas mikroletas avistam-se imagens de santos e santas que nos fazem crer estar numa grande igreja. Não têm medo nem vergonha de mostrarem a sua fé e aquilo em que acreditam. Fé ou religião… Mas quem somos nós para criticar ou julgar a convicção dos outros? Respeito meus senhores!...

Dia 13, sexta feira – O reencontro com as malas e a visita a Tíbar

Como diz o ditado timorense “as coisas não se perdem; apenas se esquecem”. Finalmente chegaram as nossas malas. Por onde andaram ninguém sabe mas, logo que se avistaram, os donos até sorriram. Foi uma alegria enorme poder tocar-lhes, abri-las e confirmar que nada faltava, mesmo tendo sido abertas. A simpatia dos funcionários do aeroporto foi imensa, (claro que houve gorgeta!), tudo facilitando para que a nossa alegria fosse completa.

Do aeroporto dirigimo-nos para Tíbar, visitar a comunidade de Capuchinhos que aí está radicada. Outra enorme alegria ao poder abraçar o meu amigo Pe. António Pojeira,colegas de seminário e de fraternidades durante bastantes anos. Foi uma conversa para recordar vivências e episódios das nossas vidas em comum, reforçada pelas intervenções do caro amigo Pe. Fernando, provincial do capuchinhos em Portugal e pelas intervenções adequadas do amigo Gaspar, seu irmão chaufer do táxi e sobrinhos Anô e Rosana que tanto nos ajudaram na recuperação das maletas e outras démarches.

A chegada ao pátio foi como já se esperava: uma curiosidade enorme em ver e ouvir o acordeão e depressa se transformou no “pátio das cantigas”. Toda a criançada acudiu deimediato e as canções já aprendidas desfilaram pelas gargantas de todos os presentes:saia velhinha, as pombinhas da Cat’rina, o mar é lindo e mais modas de que esta gentemuito gosta. Deu bem para suar… Logo a seguir tanta chuva, tanta chuva de que não hámemória no meu cérebro.

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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Conta solidária da Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste (ASTIL)

IBAN: PT50 0035 0702 000297617308 4

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P25543: Notas de leitura (1693): "Quando os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", por Tony Tcheka (nome literário de António Soares Lopes Júnior); Editorial Novembro, 2022 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
Foi com imensa alegria que estive com o Tony Tcheka, ele honrou-me participando na sessão de lançamento de Rua do Eclipse. E deu-me este livro extraordinário "Quando Os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", quatro contos, todos eles invulgares, habituados como estamos a ver os portugueses a falar da tropa africana que combateu do lado português e foi execrada por quem se comprometera honrá-la, como manda a reconciliação; habituados que estamos a ver os portugueses a abordar o 25 de Abril na Guiné, é completamente inesperado, e merece ser saudado com ambas as mãos esta prosa ousada, desmistificadora, que só me parece possível a quem viveu todas estas situações de um fim de Império e sonhou pôr-se ao serviço do seu país, que tanto o dececionou. Como escreve o editor, Tony Tcheka é o escritor da madrugada, do dia inicial inteiro e limpo, com os pés e o coração divididos entre Lisboa e Bissau.

Um abraço do
Mário



Tony Tcheka, um corajoso denunciador de segredos e mentiras (1)

Mário Beja Santos

A obra intitula-se "Quando os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", o seu autor é o jornalista e escritor Tony Tcheka (nome literário de António Soares Lopes Júnior), nascido em Bissau em 1951, Editorial Novembro, 2022. É muito mais do que uma surpresa literária, ficamos assombrados com a ousadia deste guineense que rompe com mitos, palavras de ordem e dogmas de fé em que a política bissau-guineense é exuberante. 

Como escreve Pires Laranjeira no prefácio, “Trata-se de um livro corajoso, com seus contos estéticos, contos-ensaios, contos-testemunhos, contos-de-casos sociológicos – e – ontológicos, para ler de um fôlego e entrar numa área da vida guineense que a literatura nunca tocou, a dos guineenses que assumiam identidade portuguesa e dela não queriam abdicar, mesmo mergulhados em grandes infortúnios. Com conhecimento, compreensão e ternura contando a amargura de destinos malparados. Em última instância, todo o livro aborda o Estado-Nação formado por competências antigas e modernas, herdadas das colonizações (dos impérios antigos do oeste africano e do oeste europeu) e da revolução independentista, em que o valor consuetudinário continua a ter muita força e a revigorar na terra branku”.

Não é uma prosa de lamber as feridas, não há aqui qualquer manipulação a tirar esqueletos do armário, são contos de quem experimentou duas realidades, a colonial e a independentista, esventra agora os tiques, sopesa os arquétipos de cada uma das situações, e expõe a dura realidade de como o 25 de Abril de Portugal e a independência da Guiné-Bissau revolveram mentes, expuseram contradições e paradoxos, fomentaram silêncios imperativos, forjaram golpes de Estado indocumentados e interditos de discussão pública, montaram cavalas, os ajustes de contas mais ignóbeis, o que Tony Tcheka nos vem dizer é que os cravos vermelhos chegaram ao Geba e os vencedores mostraram uma total inabilidade em gerar uma reconciliação após tão dolorosa guerra, fratricida e divisora.

É arrepiante a leitura do primeiro conto Pekadur di Sambasabi, esta Sambasabi é uma tabanca onde depois do 25 de Abril regressa o seu filho de nome mais notável, Capiton Basinho Bikas ou Alferes Mon di Ferro. Logo o seu nascimento dá que pensar, ele veio ao mundo mas morreu o seu irmão gémeo. Nos anos em que decorreu aquela guerra, as suas façanhas galvanizavam os serões, até se esquecia o seu verdadeiro nome, João Bicanka Sory Bá. Quis ser enfermeiro, houve mesmo promessa de padre missionário, sonho gorado. Alistou-se no Gabu, os seus feitos heroicos deram condecorações. 

E um dia aconteceu o 25 de Abril, andou por reuniões, tudo lhe parecia estranho, sentia não ter lugar naquele espaço novo em reconfiguração, estava a viver num cenário jamais pensado. Esteve na reza na Mesquita Grande de Pilum, depois foi rezar o Pai-Nosso e o Credo na Sé Catedral de Bissau. Confuso com tudo quanto aqui se passava, voltou à terra natal, à sua tabanca acolhedora, bem no Leste recôndito da Guiné. Em Sambasabi, o Capiton discorre todo o fio daquela memória, o poder dos ancestrais, o despotismo do progenitor, o não ter tido oportunidade de estudar, ter-se tornado num destemido combatente, voltava agora pronto a trabalhar a terra, tem uma plantação frondosa com bananeiras, laranjais, mangueirais. O seu passatempo guarda-o numa sacola, histórias aos quadradinhos.

Tony Tcheka é luminescente a descrever-nos a sua infância no Leste, a sua formatação militar, o seu património religioso. Na tropa, começou por baixo, guia e batedor, fez recruta em Bolama, foi depois selecionado para um curso especial, ainda pertenceu a uma unidade especial de comandos que viria a ser a génese dos comandos africanos. Ele e os seus homens eram um verdadeiro caterpillar de limpeza, ganhou estatuto de figura mítica. Agora, tudo acabou.

Em Sambasabi recebe uma visita inesperada, é alguém que vai em fuga, um fuzileiro guineense de nome Musna Na Faiõe, avisa-o de que é tempo de perigos, chegaram os ajustes de contas, Capiton decide ficar, tem uma explicação: 

“Se não posso fugir de mim mesmo, como e porquê fugir dos outros? Se não me reencontrar aqui onde tenho o meu umbigo enterrado, jamais serei eu. São muitos anos à procura de mim mesmo”. 

E apareceram 30 guerrilheiros, vieram-no buscar, ficará detido no quartel de Mansoa, conversará com um amigo, Djondjon di Nha Maria Benta, falam da literatura aos quadradinhos, desabafa: 

“Sou um homem a quem na adolescência arrancaram a alma. Nunca me encontrei. Pensei ter despertado, mas não. Não pude viver os meus sonhos. Nunca fui eu. Nesta vida, fui o que os outros de mim fizeram”.

Tony Tcheka não necessita de falar dos fuzilamentos nem das patranhas que foram inventadas de uma sublevação absurda de tropa especial e outra, o mais ridículo de tudo é que nenhum daqueles homens não detinha uma só arma, uma só bazuca, uma só granada. E desses fuzilamentos que mais pareciam aplacar o descontentamento interno forjando um inimigo fantasmático que atrasava o progresso do país, passa-se para quase o tempo presente. 

Já estamos em 2017, o septuagenário de Musna Na Faiõe, sentado na sua casa de construção precária, na zona da Amadora, assiste a uma notícia da RTP-África, é o protesto de uma centena de membros da Associação de Antigos Combatentes, filhos e familiares das Forças Armadas Portuguesas, frente à Embaixada de Portugal em Bissau, reivindicando o cumprimento do acordo celebrado depois do 25 de Abril e não cumprido. O antigo fuzileiro pega no telemóvel e liga para um camarada das matas da Guiné, fala-lhe da notícia, mas qual cumprimento de acordo, quem se dignou a respeitar tanto sacrifício consentido e sangue derramado? 

“Nós somos os mortos-vivos navegando num rio sem água. E o que somos nós hoje? Digo-te já: Entrudos! Fomos promovidos a entrudos… Sem esperar por qualquer reação, num gesto brusco Musna Na Faiõe desligou o telefone, enterrando-se no velho cadeirão”.

O leitor que se prepare para mais, como nos adverte o editor, temos pela frente “um entrelaçamento de culturas; aprendemos com os dialetos, as lendas, as tradições e os costumes, desta narrativa histórica romanceada, que nos adverte para o quanto é necessário ‘pensar o passado para compreender o presente e idealizar o futuro’”.

Se Tony Tcheka já nos surpreendera por ser o estro mais flamejante e dolorido desta impenitente Guiné-Bissau, revela-se nesta obra um artista de mil prodígios.

Tony Tcheka
Antigos combatentes das Forças Armadas portuguesas na Guiné Bissau, Global Imagens, com a devida vénia
Lançamento do livro “Quando os cravos vermelhos cruzaram o Geba”, de Tony Tcheka, no Centro Cultura Português em Bissau, maio de 2022

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 17 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25536: Notas de leitura (1692): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1850 e 1851) (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25542: Os 50 anos do 25 de Abril (23): Hoje, na RTP1, às 21:01, o 6º episódio da série documental, "A Conspiração", do realizador António-Pedro Vasconcelos (1939-2024)


1. Passa hoje, na RTP1, às 21h01, o 6º episódio (de 9) da série documental "A Conspiração". Os  episódios anteriores (de 1 a 5)  podem ser vistos ou revistos na RTP Play. O 1º episódio ("A semente revolucionária") foi emitido em 24 de abril de 2024.

Sinopse: 

A última obra de António-Pedro Vasconcelos. Conhecemos os ícones, as músicas e os locais emblemáticos do 25 de Abril 1974. Mas como surgiu a Revolução que mudou o destino de Portugal?

"A Conspiração", série documental realizada por António-Pedro Vasconcelos, é o resultado de uma meticulosa investigação que conta com depoimentos exclusivos de protagonistas que conseguiram concretizar em menos de 24 horas, o que em 48 anos muitos outros não haviam conseguido. Desde as reuniões secretas aos personagens-chave, é-nos revelado o extraordinário processo conspirativo que começou no verão de 1973 e que culminou na madrugada de 25 Abril de 1974, com o derrube do Estado Novo e a conquista da liberdade. O resto, como dizem, é história. (*)

Episódio nº 6 |  Episódio 6 de 9

A chamada "Kaulzada" é abortada e ultrapassa-se, assim, mais um momento de perigo para o Movimento de Capitães. Mas, em Janeiro de 1974, na província de Manica, em Moçambique, os colonos são confrontados, pela primeira vez, com a existência da guerra naquele território. 

Sucedem-se graves confrontos na Cidade da Beira, em que a população agride e culpabiliza os militares. Estes acontecimentos vêm acelerar a consolidação e politização do Movimento, que começa a preparar um programa político de base. (**)

Fonte: RTP > Programa > TV (com a devida vénia...)

Próximas emissões: 20 Mai 2024, 21:01 RTP1 | 20 Mai 2024 21:01 | RTP Internacional | 22 Mai 2024 15:00 | RTP Internacional Ásia | 23 Mai 2024 01:00 RTP Internacional América

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(**) Últimoposte da série > 16  de maio de  2024 > Guiné 61/74 - P25533: Os 50 anos do 25 de Abril (22): Do Precedido Ao Sucedido (António Inácio Correia Nogueira, ex-Alf Mil da CCAÇ 16 - CTIG, 1971 e ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 3487 / BCAV 3871 - RMA, 1972/74)

domingo, 19 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25541: O Cancioneiro da Nossa Guerra (21): Os Gandembéis - Canto I, Estrofes de I a XI (CCAÇ 2317, Gandembel, Ponte Balana e Nova Lamego, 1968/69)



Leiria Monte Real > Palace Hotel Monte Real > 26 de Junho de 2010. V Encontro Nacional da Tabanca Grande > A paixão do teatro e da Guiné juntaram o João Barge e o Carlos Nery (n. Funvchal, 1933).... "Os Gandembéis", poema de autoria coletiva (mas com forte contributo do poeta João Barge, 1944-2010), escrito em 1969, retrata a epopeia da CCAÇ 2317 em Gandembel e Ponte Balana.

Infelizmente o João Barge iria morrer uns escassos meses depois, no príncipio de dezembro de 2010.(*)





Monte Real, Palace Hotel, 26 de Junho de 2010 > V Encontro Nacional  da Tabanca Grand3e > O saudoso João Barge (1944-2010), ao meio, com o Idálio Reis (à direita, segurando uma cópia das letras de "Os Gandembéis", o Cancioneiro de Gandembel, uma paródia de "Os Lusíadas", Canto I / 27 Estrofes, Canto II / 16 estrofes, Canto III / 8 estrofes e Canto IV / 11 estrofes) (**).

Do lado direito, o camarada Eduardo Moutinho dos Santos, ex-capitão miliciano (que comandou a CCaç 2381 "Os Maiorais", 1968/70),  hoje advogado e antigo presidente da Mesa da Assembleia Geral da ONG Tabanca Pequena (Matosinhos).

O João, já o conhecia, superficialmente, de um dos primeiros convívios da Tabanca do Centro. Natural de Aveiro, foi professor no Instituto Politécnico de Leiria. Agora, o que não imaginava é que ele era também um dos homens-toupeira de Gandembel e um dos dois famosos letristas de "Os Gandembéis".

  

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2010). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 


Idálio Rodrigues F. Reis,
hoje eng. agr. ref.,
foi alf mil at inf, CCAÇ 2317 / BCAÇ 
2835 (Bissau, Bula, Mansabá,
 Guileje, Gandembel, Ponte Balana,
Aldeia Formosa, Buba,
Nova Lamego e Cansissé,
jan 68/ dez 69)

1. Não há nada parecido, até agora,  com a letra de "Os Gandembéis", dentro de "O Cancioneiro da Nossa Guerra"... É uma magnífica paródia de "Os Lusíadas", a obra-prima da  nossa literatura.

Arte, mestria, drama, tragédia, epopeia, humor de caserna!... Jã há muito que o dissemos: esta ma obra-prima mete o Cancioneiro do Niassa a um canto (sem desprimor para os anónimos autores, dos 3 ramos das forças armadas, da base de Metangula, que escreveram as letras das cerca de 4 dezenas de canções que integram o cancioneiro moçambicano).

Sabemos, pelo "cronista" da CCAÇ2317, o Idálio Reis, que estas estrofes foram  escritas, ou ou melhor, ultimadas, em 1969, já não no calor da batalha de Gandembel / Balana (abr 68 / jan 79), mas na retaguarda, na região de Gabu, para onde a companhia acabou a sua comissão de serviço no CTIG, em finais de nov 69)... 

Em todo o caso, ainda os bravos de Gandembel / Ponte Balana cheiravam a pólvora, a sangue, a suor e 
a  lágrimas:

(...) "Em Gandembel, tanta tormenta e tanto dano,
Tantas as vezes a morte apercebida,
No arame farpado, tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida;
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida ?
Que não se arme e se indigne o céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno. (...)

(Os Gandembéis, Canto II, Estrofe I. In: REIS, Idálio; A CCAÇ 2317, na guerra da Guiné: Gandembel / Ponte Balana, ed. autor,. s/l, 2012, pág. 209)

Não temos dúvidas que isto foi escrito por gente com talento (literário), cultura, sensibilidade e... muitos dias de sofrimento e de insónias!!!

Quem foram os seus autores ? O Idálio Reis esclareceu algumas das nossas dúvidas, em mensagem datada de 10 de março de 2012 (**):
 
(...) "Quanto aos Gandembéis, obviamente que sabia da sua existência, mas só consegui obter uma cópia, já em período posterior aos meus apontamentos no Blogue. Como referes, é uma obra-prima. Está lá a história da Companhia, inclusive a do Bigode Reis, que pela Guiné toda faça espanto, de RDMs e recusas singulares, de Gandembel as terras e do Carreiro os ares. E há um fundo de verdade, nestas palavras.

"É uma obra que o apaziguador tempo de Nova Lamego proporcionou. Os seus autores, são anónimos e humildes. De todo o modo, faço-te a revelação: um deles, foi o malogrado e inesquecível João Barge, um filólogo de escol, e que decerto seria a única pessoa capaz de emprestar tanta arte e sensibilidade à sua pena.

"Ainda que tivesse surgido em Gandembel, nos finais de outubro/princípios de novembro [de 1968], e num período em que se vivia já numa situação de mais alívio, teve a ajuda de um dos pioneiros da Companhia, um ex-furriel que ao tempo já era professor primário." (*) (...)

O nosso blogue já tinha dado a conhecer ao mundo, uns anos antes, em 2007,  "o suplício de Sísifo" de Gandembel na série Fotobiografia da CCAÇ 2317 (***)...

Esta republicação, agora na série "O Cancioneiro da Nossa Guerra" (****), é uma homenagem a todos os "homens de nervos de aço", os "homens-toupeira",  que construiram e aguentaram, heroicamente, Gandembel, e muito em particular à memória do João Barge (1944-2010), que foi professor em Leiria, primeiro do ensino secundário (Escola Secundária Rodrigues Lobo, Leiria) e depois do ensino superior politécnico (Instituto Superior Politécnico de Leiria).  (Haveremos entretanto de descobrir quem foi o  coautor da letra, o furriel miliciano que era professor primário; merece também o nosso apreço e homenagem.)



Guiné > Região de Tombali > Gandembel  (vd. carta de Guileje, 1956, escala 1/50 mil)> CCAÇ 2317 (Abril de 1968/Janeiro de 1969) > 1968 > Não confundir "Os Gandembéis" com o "Hino de Gandembel"; e apropósito,  será este o misterioso autor da letra (e da música) do Hino de Gandembel ? 

Podemos imaginar que sim... Aí está o homem-toupeira, o homem de nervos de aço de Gandembel/Ponte Balana, fazendo da pá de trolha a viola de baladeiro, e ensaiando as primeiras notas e o primeiro verso do Hino de GandembelÓ Gandembel das morteiradas, /Dos abrigos de madeira / Onde nós, pobres soldados, /Imitamos a toupeira.(...). 

Um hino que o Idálio Reis e os seus camaradas da CCAÇ 2317 irão transformar mais  em Hino da Alegria  por ocasião dos seus convívios anuais...

Foto (e legenda): © Idálio Reis (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


OS GANDEMBÉIS > Canto I (Estrofes, de I a XI)


I
As armas e os barões assinalados
Que, da Ocidental praia Lusitana,
Por sítios nunca dantes penetrados
Passaram ainda além do Rio Balana,
E em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
Entre gente remota edificaram
Novo Reino que depois abandonaram;


II
E também as memórias gloriosas
Daqueles heróis que foram dilatando
A Fé, o Império e as terras viciosas
Do Olossato e Mansabá andaram conquistando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando;
Cantando espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar engenho e arte.


III
Cessem do Corvacho e do Azeredo
As conquistas grandes que fizeram;
Cale-se do Hipólito e do Loredo (1)
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto os que não tiveram medo
A quem Nino e Cabral obedeceram.
Cesse tudo o que a antiga musa canta
Que a dois três dezassete mais alto s’ alevanta.


IV
Por estes vos darei um Maia fero,
Que fez ao Moura e ao Calças tal serviço.
Um Nunes e um Dom Veiga (2), que de Homero
A Cítara para eles só cobiço;
Pois pelos Dois pares dar-vos quero
Os de Gandembel e o seu Magriço;
Dou-vos também o ilustre Goulart,
Que para si em Minas não tem par.


V
E, enquanto eu estes canto, e a vós não posso,
Bigodes Reis, que não me atrevo a tanto, (3)
Tomai as rédeas vós, do Grupo vosso:
Dareis matéria a nunca ouvido canto.
Começai a sentir o peso grosso
(Que pela Guiné toda faça espanto)
De RDMs e recusas singulares
De Gandembel as terras e do Carreiro os ares.(4)


VI
E, o que a tudo, enfim, me obriga
É não poder mentir no que disser,
Porque de feitos tais, por mais que diga,
Mais me há-de ficar ainda por dizer.
Mas, porque nisto a ordem leva e siga,
Segundo o que desejais de saber,
Primeiro tratarei da larga terra
Depois direi da sanguinosa guerra.


VII
Partiu-se de manhã, c’o a Companhia,(5)
De Guileje o Moura despedido,
Com enganosa e grande cortesia,
Com gesto ledo a todos e fingido.
Cortam as viaturas a longa via
Das bandas do Carreiro, no sentido
De ir construir um quartel
Na inóspita e desabitada Gandembel.


VIII
Já na estrada os homens caminhavam,
O intenso capim apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Nas viaturas as minas rebentando;
Da negra missão os soldados se mostravam
Decididos; e os aviões vão apoiando
A coluna com muita acrobacia
Porque no mais não passa de "fantasia".


IX
As roquetadas vêm do turra e juntamente
As granadas mortíferas e tão danosas;
Porém a reacção não consente
Que deem fogo às hostes temerosas;
Porque o generoso ânimo e valente,
Entre gentes tão poucas e medrosas,
Não mostra quanto pode, e com razão:
Que é fraqueza entre ovelhas ser leão.


X
Da bolanha escondida, o grão rebanho,
Que pela mata foi aparecido,
Olhando o ajuntamento lusitano
Ao soldado foi molesto e aborrecido;
No pensamento cuida um falso engano,
Com que seja de todo destruído.
E, enquanto isto no espírito projectava,
Já com morteiros e canhões atacava.


XI
E uma noite se passou nesta rota
Com estranha emoção e não cuidada
Por acharem da terra tão remota
Nova de tanto tempo desejada.
Qualquer então consigo cuida e nota
No inimigo e na maneira desusada,
E como os que na errada missão creram
Tanto por toda a Guiné se estenderam.


(Continua)

(Revisão / fixação de texto: IR / LG)
___________

Notas de IR/LG:

(1) Cap Eurico Corvalho, comandante da CART 1613 (Guileje, 1967/68), falecido a 22/12/2011. 

 Cap Carlos Azeredo, cmdt da CCAV 1616 (BCAV 1879, que esteve no Olossato. 

Quanto ao Hipólito... Presumimos que fosse o ten cor inf  Carlos Barroso Hipólito, cmdt do BCAÇ 2834 ( Bissau, Buba e Aldeia Formosa, jan 68 / nov 69)

Quanto ao Loredo... Não descobrimos ninguémcom este apelido, podendo ser erro de transcrição. (Seria Moreno ou Loreno ?... Mas Loredo rima com medo...)

(2) Cap Inf Jorge Barroso de Moura, cmdt da CCAÇ 2313 (hoje tenente general reformado); Alf Mil At Inf Mário Moreira Maia; Fur Mil At Viriato Martins Veiga; Sold apont metralhadora Jerónimo Botelheiro Nunes (presume-se), cujo municiador morreu a 28/3/1968, nas imediações de Guileje

(3) Alf Mil At Inf Idálio Rodrigues F. Reis (hoje, eng agron ref, membro da nossa Tabanca Grande, residente em Cantanhede); Fur Mil At Inf Mário Manuel Goulart.

(4) Carreiro= Corredor de Guileje, corredor da morte...


(5) Depois de passar, na IAO,  por Mansabá e Olossato (de 15/2 a 15/3/1968), a CCAÇ 2313 seguiu de LDG para Cacine, e esteve em Guileje por pouco tempo (aí fazendo colunas logísticas para Gadamael e cortando cibes). 

A 8 de Abril de 1968 foi destacada para Gandembel, com a missão de construir um aquartelamento de raíz. Mas a 28 de março, tem os seus dois primeiros mortos, o Domingos Costa (Olival/Vila Nova de Gaia) e Manuel Meireles Ferreira (Pópulo / Alijó). A 8 de abril participa na Op Bola de Fogo

Esclarecimentos adicionais do Idálio Reis, emcomentário ao poste P9695:

Luís, quanto aos Gandembéis, é o seguinte:

(i) "Cessem do Corvacho e do Azeredo..." 

O saudoso Eurico Corvacho da CART 1613, e o Azeredo e Leme, tenente-general, ex-Chefe Militar do Presidente Mário Soares, e que se atravessou nos itinerários da Guiné em 2 sítios: no Olossato, comandando uma Companhia de Cavalaria, e em Aldeia Formosa, aquando do retiro de Gandembel, como comandante de um COP, já com a patente de major.

(ii) "Cale-se do Hipólito e do Loredo..." 

Este Hipólito refere-se ao comandante do BCAÇ 2834, Carlos Barroso Hipólito, mais afamado que o do meu BCAÇ. 2835, e com a particularidade de serem 2 Batalhões formados à mesma altura e na mesma unidade mobilizadora - o RI15. 

Quanto ao Loredo, diz respeito ao 2º comandante do meu Batalhão, de nome Cristiano da Silveira e Lorena. Por evacuação do Comandante inicial, Joaquim Esteves Correia, chegou a comandar o Batalhão durante um prolongado tempo, até à chegada do TC Pimentel Bastos (o nosso Pimbas), que se viu afastado do comando de um Batalhão mais recente que o nosso )o BCAÇ 2852), por imposição de Spínola, e que regressaria connosco a caminho da Metrópole.


(iii) "Por este vos darei um Maia fero..." 

Trata-se de Mário Moreira Maia, alferes da minha Companhia, hoje advogado no Porto. Era o alferes mais antigo, pois que era de uma incorporação anterior à nossa. Substituiu já mesmo no findar da IAO em Santa Margarida, o camarada Moutinho, que passados apenas 3 meses viria a constituir a CCAÇ 2381. De sublinhar que este Moutinho, nada tem a ver com um dos seus comandantes de Companhia - o Moutinho dos Santos.

De referir ainda, que o comandante da CART 1689, do Alberto Branquinho, também era Maia, mesmo Moreira Maia, mas este é tenente-general a residir no Porto.

(iv) "Que fez ao Moura e ao Calças tal serviço..." 

Este Moura, é Jorge Barroso de Moura, que comandou a minha CCAÇ 2317, hoje tenente-general. O Calças, é o já citado major Lorena, pois que era apelidado do Calcinhas, talvez porque o uso sistemático dos calções, era o que mais se coadunava com o seu porte físico.

(v) "Um Nunes e um Dom Veiga..." 

Este Nunes, com desgosto, não sei de quem se trata. O nome que foi aflorado, não é de todo. E não me é lícito fazer quaisquer suposições. Já quanto ao Dom Veiga, trata-se de um dos furriéis da Companhia e do meu grupo, Viriato Martins Veiga (homem que andou por Coimbra, e que há anos lhe perdi completamente o rasto).

3 de abril de 2012 às 19:47 
 

(*) Vd. poste de 7 de deembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7399: In Memoriam (66): A morte dolorosa de um dos últimos homens a chegar a Gandembel, o ex-Alf Mil João Barge (1944-2010)

Mensagem de Idálio Reis (...) O Barge chega a Gandembel, em rendição individual, para substituir o Francisco Trindade, atingido gravemente por uma mina anti-pessoal no fatídico local de Changue-Iaia. Estava-se em meados de Outubro de 1968, quando um estudante de Coimbra quase a finalizar o seu curso, chega àqueles aterradores confins de África.

Tendo sido bem recebido por todos, soube adaptar-se com enorme senso ao seu grupo de combate. Felizmente que a situação geral de Gandembel/Ponte Balana havia melhorado substancialmente, graças à acção notável que os pára-quedistas tinham conseguido levar a efeito.

Nos outros lugares, Buba e Nova Lamego, o João Barge haveria de continuar com a sua CCAÇ. 2317, até esta acabar a sua comissão. E a ele, faltava-lhe contar os últimos meses, agora em Bissau e entregue à parte logística de envio de víveres para as forças de quadrícula disseminadas pela Província.

No Gabú, onde a guerra se nos arredou em definitivo, relembro a sua intensa azáfama em preparar as últimas cadeiras do curso, que após o seu regresso definitivo, haveria de concretizar muito rapidamente.

Só nos viemos a reencontrar há cerca de 3 anos, já ele estava aposentado após um desempenho brilhante como Professor do Instituto Politécnico de Leiria. E a partir daqui, íamo-nos encontrando ainda que esparsamente, e uma das últimas vezes em que o instiguei a estar presente, foi ao último convívio da Tabanca Grande. Aqui, uma malta contemporânea de Buba, com o Carlos Nery a merecer justa honra de capitanear, viríamos a preencher uma mesa em franca confraternização. (...)

 

(****) Último poste da série > 18 de maio de  2024> Guiné 61/74 - P25538: O Cancioneiro da Nossa Guerra (20): Nemíades e bolanhíades, as "ninfas" ao estilo camoniano imaginadas pelos "Cobras" da CCAÇ 2549 (Cuntima, Nema e K3 Farim, 1969/71), do ex-cap inf Vasco Lourenço

Guiné 61/74 - P25540: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (18): "Mas a senhora, quem é?"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Mas a senhora, quem é?

Passei frente à loja onde se deu o crime e lembrei-me… - Mataram o meu filho, Sr. Doutor, e ele está aí. Isto dizia a voz rouca do outro lado da linha.

Pousei o telefone e desci imediatamente à urgência, que ficava no rés do chão. A primeira maca, que vi no corredor, tinha um corpo coberto com um lençol.

Levantei a ponta do lençol e vi logo que era ele, o filho do Sr. José. Tinha um botão de sangue coalhado acima da clavícula na parte esquerda da base do pescoço.

O Sr. José foi porteiro do prédio onde vivi no tempo em que os meus filhos eram crianças. Ainda hoje lá permanece a mesa em que ele sentava, muitas vezes, o mais novo.

Viviam, ele e a D. Amélia, numa casinha rasteira escondida numa das ilhas da rua do Bonjardim.

Muitas vezes os encontrei na rua, tristes, abatidos, mas muito amigos, sempre de braço dado.

A última vez que os vi, o Sr. José não me reconheceu. A doença começara, há muito, a comer-lhe a mente, até ficar vazia. A D. Amélia tomou as minhas mãos entre as suas e disse-me com as lágrimas nos olhos:
- Sofremos muito com a morte do nosso filhinho, Sr. Doutor, sofro muito com a doença do meu marido e com a minha, mas há uma coisa pior que tudo, que me atravessa a alma e quase me arranca o coração do peito. É quando ele, coitadinho, sentadinho na beira da cama, e eu lhe digo, Zezinho queres um chazinho quentinho, com umas bolachinhas, e ele me responde:
- Mas a senhora, quem é?

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Nota do editor

Último post da série de 12 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25512: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (17): "Uma moedinha, por favor"