Queridos amigos,
Fui ao baú buscar alguns instantâneos, explicavelmente associados a acasos felizes, um céu noturno, a quietude de uma praia caracterizada por mar revolto e assombrosos rochedos, uma exposição bem original do desenho de uma das nossas maiores artistas modernistas, Ofélia Marques. O que me deixa particularmente feliz, agora que caminho para a quarta idade, é recordar a estupefação que sempre senti pelas ilustrações de Ofélia, a graciosidade daquelas ternas juventudes, os apaziguamentos domésticos, a criança e os jogos; e depois os retratos dos adultos, da Ofélia omnipresente, e até daquela Ofélia que metia medo aos bons costumes, basta pensar que depois de Eduardo Viana ninguém se atrevia a exibir o corpo de uma mulher nua, mais a mais uma artista. Vale a pena ir conhecer esta Ofélia versátil e ensimesmada, uma menina grande, genial e provocadora.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (160):
Díspares modos de ver, mimoseio para um coração feliz – Reguengo Grande, Praia da Adraga, Ofélia Marques
Mário Beja Santos
Por excelência, a fotografia é uma arte do acaso, incluindo estados de alma, do tempo, e daquela multiplicidade de circunstâncias que nos faz sair da contemplação e querer intervir, congelar/fixar imagens de agrado ou de embevecimento. É uma leitura estrita, confesso, durante anos interroguei-me o que levara a minha mãe a chamar um fotógrafo profissional ao velório da minha avó materna para gravar cena tão lúgubre, nunca me passara pela cabeça ter uma fotografia da minha avó morta. A explicação materna parecia incluir uma reprimenda: “Estas fotografias são para África, a minha mãe tem lá os seus parentes, quer acredites quer não eles ficarão mais satisfeitos em vê-la tal como faleceu do que eu lhes mandar uma fotografia embonecada com uma citação bíblica, quando cresceres verás o que eu estou a dizer.” Tenho para mim que não me chegou ainda a hora desse entendimento, dou-me melhor com as alegrias de certas contemplações, ainda por cima hoje tudo é facilitado pela rapidez com que utilizamos a câmara – é o que se chama o feliz acaso.
É o anoitecer no lugar do Reguengo Grande, concelho da Lourinhã, onde me sinto tão prazenteiro a olhar a terra lavrada onde crescem abóboras, favas e batatas, com fruteiras de toda a parte (ah, a maçã reguengueira, a pera rocha…). Estamos no inverno, ainda há para ali um vestígio do fim do dia, será esmagado pela nuvem gigante portadora do negrume, dentro de minutos os contornos da colina em frente de minha casa apagar-se-ão, restam aquelas lâmpadas do casario, vigilantes pela noite fora. Como gosto de escutar, noite de inverno!
A praia da Adraga fica perto de Almoçageme, esta liga com Colares, descendo, e com o Pé da Serra e Atalaia, quem sobe, abre cainho para o Cabo da Roca, Malveira da Serra, Cascais e Estoril. À hora que cheguei nada daquele mar bravio que açoita esta costa atlântica e que faz tremer os banhistas até à Foz do Arelho. Muitos pintores se sentiram atraídos por este penhasco fendido, permite a imaginação que nos leve a supor que é um elefante a viajar nas águas ou casca de oliveira milenar; não, é uma erosão que vem de tempo antiquíssimos, é, acima de tudo, uma atração da praia, daí estas duas imagens, uma mais próxima a outra mais longe.
É dia de semana, ainda é inverno, andam por aqui alguns residentes e forasteiros; se aqueles rochedos esmagam ou assombram, não menos importante é a falésia com aquela florestação rasteira, tais e tantos são os açoites do vento; há muito por onde passear e no verão, nas certezas da vazante saltita-se entre pedregulhos e rochedos e a pequenada em férias faz castelos de areia. Como são diferentes estas praias tão próximas umas das outras, mesmo acobertadas por falésias e terrenos penhascosos, não há afinidades absolutas entre a praia das Maçãs, a Praia Grande ou a Adraga. Despeço-me chamando a atenção para o pormenor de que esta senhora de cabelo ruivo dá a impressão que vai caminhar para aquela imensa montanha mágica, com a neblina turva à sua volta.
A Fundação Arpad Szenes Vieira da Silva tem patente uma exposição até 2 de junho dedicada a uma escolha de retratos do vasto acervo desta importante artista modernista deposito na instituição, é curadora do evento uma especialista em Ofélia Marques, Emília Ferreira, hoje diretora do Museu de Arte Nacional Contemporânea.
Ofélia Marques é uma das grandes artistas modernistas que se impôs nas décadas de 1930 e 1940. Acolhida com muito agrado no desenho gráfico, em livros e revistas, tendo tido um papel dinâmico e inovador na revista Panorama, ao lado do marido, Bernardo Marques, não há nenhum exagero em dizer que ela faz parte daquele elenco onde se notabilizaram Sarah Afonso, Estrela Faria, Maria Adelaide Lima Cruz, Mily Possoz, Maria Keil, que no campo das artes plásticas do modernismo foram tratadas como figuras subalternas, como ilustradoras. Ofélia impôs-se em inúmeras exposições, que permitem o confronto da sua arte caleidoscópica onde há muito mais que gatos, criançada, flores, fitas, agulhas. Foi uma retratista exímia, o que esta exposição deixa ver, no seu geral, são desenhos muito à volta de ela mesmo, uma personalidade vincada que transcende a linha expressionista, o cuidado com a coisa mundana, pouco interessada em retratos de representação social e muito menos em arranjos decorativos. Retratando-se e retratando outrem, é como se o nosso olhar oscilasse entre um espelho e uma câmara fotográfica a interrogar a geografia interior destes seus retratos, na sua generalidade não saíram de um circuito privado.
O que verdadeiramente me apaixona no desenho de Ofélia é a ambivalência entre o dado formal e a sua pujança lírica; o formal prende-se com o arquétipo da criança ou do gato em ambiente doméstico; a pulsão lírica é nos dadas pelas tensões de uma certa irregularidade do traço, olharmos para muitos destes desenhos e intuir que há algo inacabado. E temos na exposição esta formidável galeria de autorretratos, mas cuidado com o que se vê nem sempre são retratos de Ofélia, são mais encontros dramáticos entre uma certa volúpia que ela pretende desenhar e a forma estilizada, onde não falta por vezes a provocação e um certo gosto pelo escândalo. Até então, só Eduardo Viana pintara a mulher nua, Ofélia pinta três.
E, por último, há esta ritualidades do desenhar imaginário, é como se a Ofélia mulher vive no eterno retorno da sua própria imagem de mulher dá-nos a frescura da criança, por vezes em posturas lânguidas, ela que era acusada por alguns mestres de pintura de ser preguiçosa. O poeta José Gomes Ferreira, que ela retratou, dirá dela que ninguém, entre os artistas do seu tempo pintou melhores retratos de crianças. Talvez tenha faltado neste comentário do grande poeta o aditamento daquelas crianças eram uma pura reminiscência da criança que ela gostaria de ter sido para sempre.
Gostei imenso da exposição, dê por onde der hei de voltar, estes desenhos que vêm agora à luz do dia a criteriosa escolha de Emília Ferreira fazem-me considerar Ofélia Marques a detentora da varinha mágica que transmudou o modernismo em Portugal.
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Nota do editor
Último post da série de 29 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25701: Os nossos seres, saberes e lazeres (634): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (159): Na vila realenga de Belas, no termo de Sintra, já houve Paço Real, estamos perto da Venda Seca - 2 (Mário Beja Santos)