terça-feira, 17 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25951: (De) Caras (219): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de setembro de 2024:

Queridos amigos,
Sendo completamente inútil tecer juízes moralizantes quanto às razões pelas quais aparecem na Feira da Ladra correspondência privada, ainda por cima comportando, dada a proveniência deste expedidor e deste recetor, compreensíveis melindres, que os herdeiros deviam acautelar, esta correspondência contribui para a compreensão do estudo de mentalidades, estão em causa duas pessoas de formação superior, pode avaliar-se que o expedidor tem noções claras sobre o muitíssimo que é necessário fazer para inverter a evolução da guerra na Guiné e temos aqui uma apreciação sobre os erros praticados, por incapacidade de avaliação estratégica ao nível de Comandos, numa operação que decorreu em junho de 1970, na Península do Sambuiá. Entregarei, como é óbvio, esta correspondência no Arquivo Historico Militar.

Um abraço do
Mário



Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (1)

Mário Beja Santos

Nas minhas deambulações pela Feira da Ladra, tenho entre os meus fornecedores uma senhora que tem sempre na banca coleções de aerogramas, álbuns com oficiais da Armada, imensas caixas com bilhetes postais, fotografias, correspondência avulsa. Nesses sábados em que a visito há sempre um ritual da pergunta se apareceu algo relacionado com a Guiné, aerogramas, cartas, imagens. A resposta é sistematicamente negativa, o correio de guerra é sempre polarizado por Angola e Moçambique. Mas eis que naquela manhã a senhora me acenou e disse tenho ali uma carta que diz ser de Bissau, tenho a impressão que tenho lá mais, veja se lhe interessa, se lhe interessar trago o que encontrar.

Esta primeira carta endereçada a Paulo António Osório de Castro Barbieri foi-lhe escrita pelo irmão, tenente Nuno Barbieri, SPM 0418, tem interesse histórico, por isso se reproduz na íntegra. Caso o leitor pretenda saber quem escreve e quem recebe este documento, basta ir ao Google.

Vejamos, pois, o conteúdo da mesma, a primeira a que se irá fazer referência:

Bissau, 28 de junho 1970

Meu caro Paulo:

De boas intenções está o mundo cheio, no entanto é bem mais difícil concretizá-las. Refiro-me, é claro, aos teus anos que acabam de decorrer, a 23. Partindo do princípio que compreendes o que se passou, deixo de lado este assunto, enviando-te, no entanto, um grande abraço de parabéns, um pouco tardio.

Dificilmente consigo compreender as motivações que levam o pai a ocultar-me determinados assuntos, a não ser aqueles inerentes ao próprio “segredo absoluto”, que de forma alguma podem ser conhecidos de uma pequena minoria. Trata-se, decerto, do segredo dos deuses. Porém, como todos os segredos, mais tarde ou mais cedo acaba-se por se conhecer, senão o seu âmago, pelo menos as suas características mais evidentes. Refiro-me, é claro, ao litígio que opôs, em certa altura o pai ao Spínola.

Como a reforçar tudo isto, acabo hoje de aceitar um prolongamento da minha comissão, não no DFE, será rendido à data estabelecida, mas no Grupo de Acções Especiais do Comando-Chefe. A natureza de segurança deste meio não é suficiente a permitir-me esclarecer-te melhor qual o nosso papel e quais as tarefas a desempenhar.

Suponho, no entanto, que te bastará mencionar o facto de que passarei a estar subordinado ao Comandante Calvão. Talvez o pai te possa esclarecer sobre o assunto…

Estou em Bissau desde o dia 21, pois tive a possibilidade de aproveitar um avião, uma DO que fizera o PCV da Operação Meia Nau. Esta operação, espécie de grande batida à zona do Sambuiá, teve como resultado dois mortos do Exército e três feridos, um dos quais grave. Da parte do IN desconhecem-se os resultados, mas é de prever que os efeitos tenham sido ligeiros ou mesmo nulos.

A operação desencadeada visava uma zona já tradicional, procurando-se atuar sobre o IN, nos seus acampamentos de refúgio. Na realidade, as informações obtidas, umas do Senegal, outras de origens várias, eram absolutamente falseadas, lançadas no intuito de levar as nossas forças a desencadear uma operação de desgaste. Os objetivos entregues às tropas especiais, DFE 12 e DFE 7, revelaram-se inexistentes. Por outro lado, o bigrupo do Sambuiá atuaria sobre o perímetro externo de encercamento da zona, constituído por tropa dos aquartelamentos de três pontos distintos: Bigene, Guidaje e Binta.

Por ironia do destino, coincidência, ou fuga de informações, o IN escolheu a posição mais fraca, a assegurada pela tropa de Bigene. Claro que a pobre companhia de caçadores açorianos, quase exclusivamente armada de G3 e HK, foi completamente cilindrada. Valeu-lhe o helicanhão que em 5 minutos alcançou o local e obrigou à fuga do inimigo. Mesmo assim, as munições foram esgotadas e os resultados estavam definitivamente assegurados.

Ao meio-dia de 21, apenas restava mandar levantar o dispositivo posto em ação e contentarmo-nos com a captura de uma PPSH, já velha e três granadas de morteiro 82.  Graças a todos este esquema, estava em Bissau às 17h desse dia.

Para que possas ter uma noção mais completa da ação, será necessário frisar-te o seguinte: a tropa de Bigene e Guidaje, que recebera a missão de fechar o Sambuiá, foram enviadas, respetivamente, para as bolanhas de Samoje e de Facã – prolongamentos naturais do rio de Talicó (extremo Oeste do Sambuiá) para Oeste e deste. Por pouco que conheças a tática militar, logo te apercebes do erro destas “portas naturais”, aonde o terreno é plano. Claro que quem olha para a carta e desconheça este tipo de guerra, convence-se que a mata entre Facã e Guidaje constitui um tampão à passagem. A isto ponho apenas a pergunta: - Se quiseres penetrar no Sambuiá, sabendo que está a decorrer uma ação, ou de lá retirares, com a aviação na área, não irá escolher precisamente a mata? O arvoredo constitui a melhor garantia de cobertura em relação à observação aérea e para uma passagem fácil apenas é necessário abrir um trilho à catanada. Porém, desde há longa data que se fecha o Sambuiá nas bolanhas de Samoje e Facã!

Tirando estes pequenos acontecimentos, que vão constituindo a nossa guerra e a nossa vida, pouco mais há a dizer-te. Da situação geral da guerra deves estar mais bem informado do que eu, até porque enquadras este conflito dentro do quadro completo. 

Além disso, observas diretamente o nosso meio metropolitano, fator definitivo do conflito. Aqui, apenas chegam rumores adulterados do que se vai passando. Temos, no entanto, que compreender que a guerra dura quase há 10 anos, com todo o significado deste lento arrastar.

Aqui na Guiné, se bem que se esteja a trabalhar bem próximo do problema central, a questão socioeconómica, ainda não se adotaram medidas enérgicas para a solução definitiva. A revolução agrária que deveríamos decretar, no género do que se passa em Cuba, para aceleramento de produção de cana do açúcar, e que faria oscilar profundamente os quadros tradicionais africanos, daria a possibilidade de concretização e de luta à camada jovem africana. 

Assim, dentro destas perspetivas, a criação de campos de trabalho de jovens dos liceus, escolas técnicas e industriais, faria mostrar à população estagnada dos centros, que dispõem de meios de progresso e cultura, que a nossa luta é dinâmica e visa a solução do problema fundamental: o zero económico da província.

Por outro lado, poderíamos aproveitar o estado de guerra para expropriar as companhias monopolizadoras do território guineense. Todos os terrenos que não fossem cultivados, pelo menos nas épocas de melhor rendimento, reverteriam para o Governo da província e constituiriam uma espécie de bolo a dividir pelas populações que os pretendessem e cuja segurança pudéssemos garantir. Constituiríamos, assim, um novo tipo de propriedade, em função do investimento e do empenhamento na produção.

Os meios de escoamento das riquezas deveriam ser pertença do Governo, de forma a impedir o bloqueio de produtos por parte das companhias. Se a isto somássemos a obrigatoriedade da mobilização civil, por períodos de 2 anos, veríamos, rapidamente, solucionado o problema dos meios técnicos e humanos, isto é, engenheiros agrónomos, engenheiros civis, economistas, etc., que fariam uma comissão dentro do seu ramo de atividade – considerável aumento de interesse da camada civil de metropolitana por estas condições de Ultramar, devido à especialização que este período de tempo necessariamente acarreta.

Além disto, é necessário acelerar a educação na Guiné, quer ao nível juvenil, que em campanhas de educação de adultos, procurando uma lenta conversão de valores, fácil de obter em espíritos simples. Mas, sobretudo, é necessário compreender que não poderemos responder à real e profunda revolução africana de caráter comunista a “tranquilidade das populações”, tão do estilo do defunto Salazar. Alargar-me-ia muito mais sobre este assunto. No entanto, isto é o suficiente para te passar a palavra.

Guiné 61/74 - P25950: (In)citações (261): tudo o que temos pedido é que forneçam professores devidamente acreditados para a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), nas montanhas de Liquiçá, Timor Leste (João Crisóstomo, Nova Iorque)




João Crisóstomo, régulo da Tabanca da Diáspora Lusõfona
e amigo de Timor Leste. Foto: LG (2017)


1. Email enviado por João Crisóstomo, na sequência de comentário ao poste P25944 (*)

Data - 15 de setembro de 2024, 08:51

Caros Rui Chamusco  e Luís Graça,


Nem sempre leio, mas hoje vi, li e tive de desabafar (*) (...). São 01.24 da manhã de 15 de setembro. Não consigo dormir e resolvi buscar o computador, talvez alguma leitura amena no nosso blogue, como as peripécias narradas pelo Jorge Cabral ou outras me trouxessem o sono.

E ao deparar com esta crónica do Rui, resolvi lê-la para “lembrar”; ao fim e ao cabo também cheguei a ir e estive em Timor (em 2017 e 2018), onde , perante a situação de que o Rui me tinha falado e que confirmei, pensei poder continuar a ajudar: a minha experiência e contactos que ainda mantinha desde os tempos da luta pela independência poderiam com certeza ajudar, pensava eu.

Mas hoje, em vez de uma leitura amena, deparei com o contar duma situação que tem sido uma constante desde esses dias em 2018 até hoje. Raiva, tristeza, saudades, frustração, não sei qual deles maior, foi o que experimentei agora.

De alguma maneira quase me sinto culpado, pois que na altura sonhei e falei do muito que se poderia fazer para ajudar aquelas crianças esquecidas e aquelas gentes tristemente ignoradas nas montanhas de Liquiçá; alimentei tantas esperanças ao Rui, ao Gaspar e à Glória e a tanta gente boa em Portugal, e não só, que perante o nosso entusiasmo resolveram dar também a sua ajuda. E de alguns não foi só ajuda financeira como a de oferecerem-se e irem a Timor Leste. E agora passados seis anos ainda continuamos lutando pela mera sobrevivência duma única escola. Como é triste!

Mas como poderia eu, como poderíamos nós esperar tão pouca resposta por parte daqueles que em Timor Leste, em Portugal e em outras partes do mundo (como na Guiné), desta situação e outras semelhantes, se deviam ocupar?

Se razões de consciência, solidariedade e mesmo justiça não os motivam, então que cumpram o dever e obrigações dimanadas pela situação de poder ou de privilégio em que se encontram agora ou tiveram no passado se ainda agora podem ser influentes.

Os deveres inerentes à consciência e solidariedade são deveres permanentes e não devem ser coisas acidentais e temporárias na nossa vida.

Tenho acompanhado outros projectos semelhantes na Guiné e S.Tomé, aqui descritos no nosso blogue. Que são para mim sempre motivos de motivação, não só pelo simples facto de existirem, como pelo facto de serem motivo de tanto interesse por parte de todos nós que por lá andamos e conhecemos o que era e o que ainda é.

No caso de Timor admiro a boa vontade de tantos que nunca lá estiveram mas que inspirados pelo Rui e outros continuam ajudando, persistindo em fazer bem.

Bem hajam! Eu não acredito em milagres, mas, mesmo na minha muita desilusão, ainda teimo em persistir, esperando sempre por um milagre.

João Crisóstomo

PS - Esqueci-me de dizer que tudo o que temos pedido é que, que forneçam professores devidamente acreditados para esta escola, uma vez que agora já há uma escola construída e uma residência para professores nestas montanhas onde as crianças, que são tão timorenses como as crianças que vivem em cidades ou em locais com mais facilidades e que têm sorte de terem pais mais afortunados, parecem ou foram completamente esquecidas. (**)

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segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25949: O nosso livro de estilo (16): O blogue não foi feito para a gente se chatear.. Por isso, às vezes é preciso reintroduzir a moderação ou triagem de comentários





Lisboa > Mosteiro de São Vicente de Fora > Fábulas de La Fontaine > 24 de maio de 2024 > Este antigo mosteiro é um dos sítios mais deslumbrantes de Lisboa, com uma coleção única no mundo inteiro, de 38 painéis de azulejos, ilustrando outras tantas fábulas de La Fonatine (das 200 que o autor escreveu para educação do príncipe). Uma delas é sobre os médicos. 


Fotos (e legenda): © Lu7ís Graça (2024).Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A. Comentar no nosso blogue é fácil ... Comentar (concordar, discordar, criticar, elogiar, complementar, acrescentar,  etc.), em amena cavaqueira, sob o sagrado poilão da nossa Tabanca Grande... é fácil. Ou deveria sê-lo...  

Há vinte anos que constatamos aqui que o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande, todos ou quase todos (os antigos combatentes da Guiné) cá cabendo com tudo o que nos une e até com aquilo que nos pode separar... A única coisa que nos pode separar não são as diferenças mas o conflito manifesto na exposição dessas diferenças sob a forma de opiniões, perceções, experiências, sentimentos, ideias, etc., levando à violência verbal e até ao ódio patológico... 

Razão por que, de tempos a tempos, temos de relembrar alguns pontos do Nosso Livro de Estilo (há gente que nunca o leu) (*)



1. As opiniões aqui expressas, sob a forma de postes ou de comentários, são da única e exclusiva responsabilidade dos seus autores, não podendo vincular o fundador, proprietário e editor do blogue, Luís Graça, bem como a sua equipa de coeditores e demais colaboradores permanentes.

2. Camarada, amigo, simples leitor: Podes escrever no final de cada poste um comentário, uma informação adicional, um reparo, uma crítica, uma pergunta, uma observação, uma sugestão... (De preferência sem erros nem abreviaturas; evitar também as frases em maiúsculas ou caixa alta).

Basta, para isso, apontares o ponteiro do rato para o link Comentários, que aparece no fim de cada texto (ou poste), a seguir à indicação de Postado por Fulano Tal [Editor] at [hora], e clicares...

3. Tens uma "caixa" para escrever o teu comentário que será publicado, após apreciação de um dos editores.  Infelizmente, e ao fim de 20 anos, tivemos que reintroduzir, temporariamente, a moderação ou triagem..

Se tiveres uma conta no Google deves usar essa identificação. Mas também podes entrar como "anónimo": é obrigatório no final da mensagem pôr o teu nome, e facultativamente a localidade onde vives; sendo ex-combatente do ultramar, podes indicar o Teatro de Operações onde estiveste, local ou locais, posto e unidade a que pertenceste. 

Não são permitidas abreviaturas de nomes, siglas, acrónimos, pseudónimos; e muito menos "falsos perfis" (os camaradas da Guiné têm a ombridade de "dar a cara", não se escondendo atrás do bagabaga do anonimato e da cobardia...). 

Se voltares ao blogue, poderás não encontrar logo a mensagem que lá deixaste, a qual precisa do OK do editor de serviço (que deve zelar pelas regras do jogo). Repete as operações acima descritas para visualizar o teu comentário.

4. Escreve com total liberdade e inteira responsabilidade, o que significa respeitar as boas regras de convívio que estão em vigor entre nós: por exemplo,


(i) não nos insultamos uns aos outros;

(ii) não usamos, em público, a 'linguagem de caserna';

(iii) somos capazes de conviver, civilizadamente, com as nossas diferenças (políticas, ideológicas, filosóficas, culturais, étnicas, estéticas, etc.);

(iv) somos capazes de lidar e de resolver conflitos 'sem puxar da G3';

(v) todos os camaradas têm direito ao bom nome, à privacidade, à proteção dos seus dados pessoais (incluindo o nome completo, a morada, o nº de telemóvel, o email, etc.);

(vi) não trazemos a "actualidade política" para o blogue, etc.

Os editores reservam-se, naturalmente, o direito de eliminar, "a posteriori", rápida e decididamente, todo e qualquer comentário que violar as normas legais (incluindo as do nosso servidor, Blogger/Google), bem como as nossas regras de bom senso e bom gosto que devem vigorar entre pessoas adultas e responsáveis, a começar pelos comentários ANÓNIMOS (por favor, põe sempre o teu nome e apelido por baixo), incluindo mensagens com:


(i) conteúdo racista, xenófobo, sexista, homofóbico, pornográfico, etc.;

(ii) carácter difamatório;

(iii) tom intimidatório ou provocatório;

(iv) acusações de natureza criminal;

(v) apelo à violência, física e/ou verbal;

(vi) linguagem inapropriada;

(vii) SPAM, publicidade comercial ou propaganda claramente político-ideológica, ou de cariz partidário;

(viii) comunicações do foro privado, sem autorização de uma das partes.

Excecionalmente, alguns comentários poderão transformar-se em postes se houver interesse mútuo (do autor e dos editores).

Os editores, 13 de setembro de 2024,

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Guiné 61/74 - P25948: Notas de leitura (1727): "A Guerra Colonial: realidade e ficção" (livro de actas do I Congresso Internacional), organização do professor universitário e escritor Rui de Azevedo Teixeira; Editorial Notícias, 2001, com o apoio da Universidade Aberta e do Instituto de Defesa Nacional (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Este I Congresso Internacional sobre a guerra colonial, que se realizou em abril de 2000, no Instituto de Defesa Nacional, em Lisboa, teve uma extensão no Porto, dias depois, onde se organizou um ciclo de cinema e um debate. Num volume de cerca de 500 páginas, a comissão organizadora entendeu debruçar-se sobre duas áreas fundamentais: a realidade (o papel dos militares, a natureza da guerra, consequências físicas e psicológicas da guerra, visão antropológica, etc.) e a ficção (guerra e literatura, guerra e jornalismo e guerra e cinema). Voltaremos ainda ao assunto, mas lembrando ao leitor que muita água passou pelas fontes nos últimos 20 anos no que toca à ficção. Em termos de levantamento desta vasta e diversificada literatura, é de toda a conveniência recordar as obras publicadas por João de Melo, Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes, bem como Margarida Calafate Ribeiro, mas não se pode esquecer o papel pioneiro de Rui de Azevedo Teixeira na sua obra A Guerra Colonial e o Romance Português.

Um abraço do
Mário



A Guerra Colonial: realidade e ficção (livro de atas do I Congresso Internacional) (2)

Mário Beja Santos

O volume "A Guerra Colonial: realidade e ficção (livro de atas do I Congresso Internacional)", teve como organizador o professor universitário e escritor Rui de Azevedo Teixeira, Editorial Notícias, 2001, com o apoio da Universidade Aberta e do Instituto de Defesa Nacional. Participaram dezenas de comunicadores. Na altura em que foi editada, a obra era assim apresentada: “Neste livro, que recusa a tirania da coisa política sobre a História ou a Literatura ou a insidiosa pressão do mediaticamente correto, correm textos de estudiosos da guerra e de grandes guerreiros, de portugueses e estrangeiros (lusófilos, lusófobos e lusófonos), de homens e de mulheres, de nomes consagrados e de novos investigadores da temática da Guerra Colonial ou Guerra do Ultramar. Académicos, militares, académicos militares, escritores, psiquiatras, cineastas, jornalistas, gestores e outros contribuem nesta obra para uma compreensão mais alargada e mais profunda da guerra de guerrilha que, fechando o Império, obrigou a uma definitiva mudança de paradigma da nossa História.”

No capítulo respeitante à natureza da guerra, cabe uma referência à comunicação do coronel David Martelo intitulada O pensamento estratégico das cúpulas militares nacionais nas vésperas da última campanha colonial, há aqui dados que podem pesar para o melhor conhecimento do prelúdio dos eventos iniciados em 1961, vale a pena reproduzir estes parágrafos:
“Em 1956, é nomeado subsecretário de Estado do Exército o coronel Almeida Fernandes. É através dele que entra no Ministério uma nova sensibilidade no tocante aos problemas do Ultramar. De facto, estava o Exército de tal modo fascinado pela integração na estrutura da NATO que tudo o resto parecia secundário. Havia planos de transferência de tropas entre as parcelas portuguesas no mundo, mas apenas para reforço do teatro de operações europeu. A evolução da situação internacional impunha, pelo contrário, que se previsse o reforço dos territórios ultramarinos com forças metropolitanas. Almeida Fernandes apercebe-se das gravíssimas vulnerabilidades do aparelho militar. A reorientação do esforço de defesa não iria, no entanto, revelar-se tarefa fácil. Salazar opinava de que havíamos atingido já há muito uma exagerada percentagem de encargos com as Forças Armadas, percentagem essa que não podia ser de forma alguma ultrapassada.

Iniciado o primeiro mandato de Américo Tomás, Salazar efetua uma ampla remodelação do governo e é nomeado ministro da Defesa o general Júlio Botelho Moniz. Sem grandes surpresas, Almeida Fernandes ascende a ministro do Exército, entrando para as suas anteriores o tenente-coronel Costa Gomes. A nova equipa do ministério do Exército vai, então, rever o dispositivo das forças terrestres em Angola. Num estudo elaborado em abril de 1959, era claramente mencionado que tudo se conjugava para que num prazo mais ou menos breve sermos confrontados com situações mais difíceis do que as anteriores, em especial no que tocava aos territórios ultramarinos; havia que se proceder a uma análise, corajosa e realista da nossa política militar em ordem a, com ainda maior urgência, corrigir e preparar adequadamente o aparelho militar. Não existia ou era insuficiente uma estratégia verdadeiramente nacional, em particular que tivesse em vista o emprego do nosso potencial militar na segurança dos territórios ultramarinos.

Em meados de 1959, desloca-se Angola uma missão militar destinada a recolher o máximo de dados respeitantes à reformulação do dispositivo e ao levantamento de estruturas viradas para resposta a uma agressão do tipo não convencional. Na sequência dessa missão e de outras que, entretanto, se deslocaram aos demais territórios, os representantes do Exército concluíram, com evidente moderação, que as necessidades ultramarinas destes ramos das Forças Armadas se cifrariam num total de 18 companhias de caçadores e algumas poucas unidades de reconhecimento, sapadores, intendência e saúde. Com a aquisição do armamento e equipamento orgânico dessas unidades, o programa proposto implicaria uma despesa calculada em um milhão e quinhentos mil contos.

Enfrentando as maiores resistências por parte do governo central, a reforma militar dá, ao iniciar-se a década de 1960, os primeiros passos reveladores de uma reorientação do esforço militar. É criado o Centro de Instrução de Operações Especiais destinado a preparar quadros para as operações de contrainsurreição. Em maio de 1960, é a vez da Força Aérea iniciar a sua presença em Angola. Em fevereiro de 1961, a poucos dias do início da onda do terrorismo, os primeiros meios aéreos recolhem-se à pista do Negage.
Estas medidas não satisfaziam as necessidades expressas pelos mais altos responsáveis da Defesa, Almeida Fernandes haveria de recordar mais tarde esses tempos, afirmando que houvera um completo imobilismo do presidente do Conselho, perante os instantes apelos que lhe fizera.

No centro das preocupações do ministro situava-se a falta de equipamentos para distribuir às unidades que tivessem de recorrer ao Ultramar. Essas forças não dispunham de meios para se moverem e se estacionarem ou mesmo pernoitarem em pleno mato, nem mesmo armas ligeiras modernas para enfrentar as ameaças previstas.

O ano de 1961 traz consigo a concretização das ameaças que se haviam pressentido no passado recente. Ao desvio do paquete Santa Maria segue-se um grave incidente na Baixa do Cassanje, em Angola como protesto contra o cultivo obrigatório do algodão e o atraso no pagamento de salários, trabalhadores nativos revoltam-se contra a presença dos europeus. Tratando-se de uma rebelião localizada numa pequena área, é possível às poucas Forças Armadas do Exército presentes em Angola, apoiadas por meios aéreos, reprimir os protestos dos agricultores.

A 4 de fevereiro, na capital angolana, elementos independentistas levam a efeito ataque contra instalações prisionais e forças de Polícia de Segurança Pública, provocando diversos mortos e feridos. Poucos dias volvidos, o comandante da Região Aérea de Angola, brigadeiro Pinto Resende, informa o Chefe-de-Estado-Maior da Força Aérea de que tirara da revolta dos algodoeiros e dos incidentes de Luanda as seguintes conclusões:
‘Que a cultura obrigatória do algodão é extremamente antipática aos pretos e que é ilegal;
Que os concessionários, que são os ricos, só têm benefícios e não são afetados pelas contingências das culturas; enquanto os agricultores que são pobres, os desgraçados burros de carga dos pretos, são quem arrosta com todos os prejuízos’.

Depois, referindo-se a uma carta que o CEMFA lhe solicitara estas informações, Pinto Resende concluía: ‘Concordo inteiramente com o que diz na sua carta; não estamos dispostos a morrer para servir ganâncias e egoísmos dos senhores que têm responsabilidades no regime político em que vivemos […] A solução para este problema, se é que existe, é, evidentemente, uma solução político-económico-social que seja amparada pelas Forças Armadas, e nunca uma solução armada para manter as coisas como elas estão, que são de evidente promessa de sucessivo agravamento.”


Tudo irá ser revertido depois do chamado golpe Botelho Moniz que merecerá a José Manuel Homem de Melo a seguinte frase: “Afastemos, de vez, a concessão que procura impor manu militari a nossa presença no mundo. Portugal terá tudo a seu favor (história, missionação, razão, etc.). Seria trágico tentar ficar ao sabor da única coisa que não tem – a força!"

Salvato Trigo, reitor da Universidade Fernando Pessoa, interveio na conferência falando de Factos, equívocos e fictos da guerra colonial de Angola:
“Depois de construir a sua doutrina contra-insurrecional e de redelinear as suas Forças Armadas, Portugal encarou severo constrangimento de erguer um exército e de mantê-lo nos necessários níveis. A metrópole apresentava um frágil e limitado potencial de homens para este empreendimento. Se existia um elemento de chauvinismo nos anos iniciais, em 1966 este patriotismo estava bastante desgastado e, em 1968, Portugal teve de enfrentar o problema de identificar as fontes desse potencial simplesmente para fazer a guerra prosseguir. Em teoria, através do período de 1961 a 1964, o conjunto de machos aptos fisicamente com idades entre os 20 e os 24 anos era adequado. Havia, contundo, outros fatores a influir. Havia a imigração clandestina. Portugal, com uma população, na altura, de perto de 9 milhões de habitantes, tinha uma população expatriada avaliada em 3 milhões.

A duração da guerra requereu à metrópole que aumentasse os efetivos de 48.832 homens em 1961 para um máximo de 70.504 em 1968, permanecendo mesmo abaixo deste número para o restante tempo de guerra, fazendo-se, contudo, esforço para manter este nível máximo. Para conseguir tal, o Exército foi forçado a implementar duas práticas não atrativas. Em 1968, o período de incorporação de 2 anos foi efetivamente alargado para 4 através de um novo diploma que obrigava a 2 anos de serviço em África. Em 1971, tomou-se uma medida adicional baixando a idade de incorporação de 20 anos para 18.

A metrópole de Portugal tinha uma população de quase 9 milhões de habitantes, em contraste com uma população somada de 12 milhões aquando da guerra. Esta distribuição pareceria indicar que, proporcionalmente, 60% do potencial humano do Exército seria recrutado localmente. Esta via foi, de facto, a que o Exército escolheu. Em 1966, 30% do potencial humano veio das colónias e gradualmente subiu até à área dos 50% em 1970, permanecendo neste nível daí para a frente.

As limitações de basear em populações domésticas ameaçou os esforços de guerra. Desde o início das guerras em 1961 até à sua conclusão em 1974, o número de pessoal na organização do Exército principal aumentou de 49.422 para 149.090, um incremento médio anual de 11%. As necessidades de Portugal em recrutar sempre em números cada vez maiores foram consequências de dois fatores: a expansão da atividade da guerrilha de Angola para a Guiné e, por fim, para Moçambique, e o uso crescente de militares para a expansão da atividade psicossocial.

Transferindo os seus esforços de recrutamento para o Ultramar, Portugal conseguiu quatro importantes ganhos: primeiro, aliviou a pressão de recrutamento na metrópole com os consequentes benefícios no sentimento público; segundo, os africanos portugueses que tinham o maior interesse no êxito das guerras e, portanto, a mais alta motivação para uma conclusão de sucesso, iriam, agora, à primeira vista, dar o seu quinhão de esforço na luta; terceiro, a política de africanização introduziu rendimentos na colocação de potencial humano, uma vez que os recrutados europeus, com o seu maior saber técnico e educação, foram desviados para tarefas mais complicadas, enquanto os seus correspondentes africanos, com a sua educação irregular e carências gerais de saber técnico, foram empregues em tarefas de maior esforço; quarto, usando tropas africanas reduziu-se, sobretudo, os custos do potencial humano, uma vez que era menos caro recrutar e treinar uma soldado no palco de operações do que fazê-lo em Portugal, com o custo adicional de o transportar para África.

Portugal mobilizou cerca de 1% da sua população para lutar me África e não podia aguentar o escoamento do potencial humano doméstico. Numa base percentual houve mais pessoas em armas que em qualquer outra nação, excetuando Israel. A mobilização de Portugal seria equivalente aos Estados Unidos terem 2,5 milhões de homens no Vietname em vez de 500 mil. Comparando a outros países, só cerca de 19% das forças francesas na Indochina eram tropas locais. Na Argélia eram 33%. Quanto aos EUA no Vietname, eram de 29%. Assim, embora o uso de tropas recrutadas localmente não fosse um conceito recente, Portugal ergueu-o a um novo nível. Em nenhum caso tais tropas foram empregues numa extensão proporcional à que Portugal usou em África e poucas situações atingiram os números absolutos de Portugal. Por último, e em contraste com outras contra-insurreições, estas tropas provaram ser muitíssimo leais.”

Mensagens de Natal, Moçambique, imagem retirada da RTP, com a devida vénia
Guerrilheiros do PAIGC deslocando-se num carro blindado na Guiné-Bissau. Imagem retirada da Casa Comum, Mário Pinto de Andrade, com a devida vénia

(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 9 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25925: Notas de leitura (1725): "A Guerra Colonial: realidade e ficção" (livro de actas do I Congresso Internacional), organização do professor universitário e escritor Rui de Azevedo Teixeira; Editorial Notícias, 2001, com o apoio da Universidade Aberta e do Instituto de Defesa Nacional (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 13 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25940: Notas de leitura (1726): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1874) (20) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25947: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte IX: De novo em Catió... P*rra, deixem-me comer o petisco em paz!

 


Guiné > Região de Tombali > Ilha do Como >Ilustração, in "Tridente - Memórias de um Veterano", de António Manuel Constantino Vassalo Miranda @ 12Fev2007, 29 pp. (Disponível em formato pdf, no Portal UTW - Dos Veternos da Guerra do Ultramar
https://ultramar.terraweb.biz/Livros/AntonioVassalo/OpTridenteAntonioVassalo.pdf) (com a devida védia...)


1. Estamos a publicar algumas das memóras do ex-alf mil art, José Álvaro Carvalho, membro  nº 890 da nossa Tabanca Grande:

(i) tem 85 anos, sendo natural de Reguengo Grande, Lourinhã;

(ii) com 26 meses de tropa, acabou por ser moblizado para o CTIG por volta da primavera de 1963 (não conseguimos ainda  apurar a data);

(iii) foi render um alferes de uma companhia de intervenção, de infantaria, sediada em Bissau (QG/CTIG) (não conseguimos ainda identificar qual); 

(iv) irá cumprir mais uns 26 ou 27 meses, no TO da Guiné, entre o primeiro trimestre de 1963 e o início do segundo semestre de 1965;

(v) passou por Bissau, Olossato, Catió e a ilha do Como, aqui já a comandar um Pel Art, obus 8.8 (a duas bocas de fogo), com que participou, entre outras, na Op Tridente (jan-mar 1964);

(vi) no CTIG era popularmente conhecido pelo seu nome artístico, "Carvalhinho" (cantava o fado de Lisboa e tocava guitarra); em Bissau, chegou a fazer espetáculos com o alf médico Luís Goes (que cantaca e tocava o "fado de Coimbra"); 

(vii) tornou-se também amigo dos então alferes milicianos 'comandos' Justino Coelho Godinho e Maurício Saraiva (já falecidos), quando se estavam a organizar os Comandos do CTIG (ofereceu-se para os "comandos",mas náo foi aceite);

 (viii) o José Álvaro Almeida de Carvalho (seu nome completo) publicou em 2019 o "Livro de C", Lisboa, na Chiado Books (710 pp.) ("C" é o "nickname" pelo qual o pai o tratava); 

(ix) é empresário reformado, trabalhou também como quadro técnico em  empresas metalomecânicas como  a L. Dargent Lda; aqui foi  diretor do departamento de trabalhos exteriores, e sócio minoritário (fez, por exemplo, a montagem da superestrutura metálica e cabos de suspensão da ponte na foz do Rio Cuanza em Angola).


2. Voltando às memórias do José Álvaro Carvalho (*), estamos agora em 1964, em Catió, no BCAÇ 619, 1964/66, onde ele está destacado com um Pel Art 8.8 a duas bocas de fogo,  e vai participar em grandes operações no setor de Catió ("Tridente", "Broca", "Macaco", "Tornado" e "Remate"). A sua atuação operacional, comandante do Pel Art,  valeu-lhe, em 1967, uma Cruz de Guerra de 3ª Classe.

O alferes Carvalho esteve em dois meses na Ilha do Como, no àmbito da  Op Tridente (jan-mar 1964). 

 
Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - 

Parte IX:  De novo em Catió... P*rra, deixem-me comer o petisco em paz!


O calor e a humidade transformavam corpos saudáveis em coisas moles difíceis de descrever.

Havia dias que o alf mil art Carvalho tinha regressado à sua sede [ em Catió] e não entrava em operações.

Os oficiais do batalhão para onde fora destacado  [ BCAÇ 619] tinham menos
um ano de guerra do que ele, pelo que não conseguia adaptar-se aos temas das suas conversas que passavam por preocupações carregadas de ansiedade para si já distantes.

Todo o tempo que passara no mato em operações, tanto no primeiro ano, como oficial dum pelotão infante – a companhia para onde viera em rendição individual, embora constituída por pessoal de artilharia, por necessidade, fora destinada a operações de infantaria enquanto que agora, ali no Sul, comandava um pelotão indígena independente de artilharia com 2 obuses de 88 milímetros, anexo a um Batalhão de Cavalaria - tinha-lhe retirado a paciência para ouvir opiniões afastadas da realidade, que não lhe apetecia contradizer.

Deste modo quando não se encontrava em operações, levantava-se cedo, mandava formar o pelotão e levava-o para a mata com tractores reboques de obus, alguns machados e pás.
Passavam toda a manhã a cortar árvores cujos troncos eram rebocados para o quartel e serviam para reforçar a paliçada que o rodeava, construir paióis para as munições, ou ainda reforçar os existente que eram constituídos por um buraco quadrangular no chão coberto ao nível superior por várias camadas de árvores em cruz, sendo a última camada coberta de terra. A entrada era formada em rampa com passagem para um homem.

Depois disto o pessoal ia almoçar e passava a tarde a descansar. Ele almoçava sozinho porque desencontrava as horas do almoço para esse efeito. Em seguida deslocava-se ao estabelecimento dum sírio, que tinha uma esplanada com 2 mesas de ferro debaixo duma velha árvore.  Sentava-se numa e o sírio, por ser esse o costume, trazia-lhe 4 cafés e 4 cálices de anis, que bebia calmamente para depois se enfiar a dormir no seu quarto até, não havendo qualquer emergência, Deus o acordar.

Nestes dias sentia-se particularmente bem e às vezes até jantava com os outros oficiais ou pelo menos ia até ao tosco bar da messe jogar pocker ou bridge

Este era um desses dias mas com uma particularidade acrescida. Tinha chegado para um dos oficiais com quem mais convivia, um frasco de farmácia de 3 litros em vidro, com trouxas de ovos. A mãe também lhe enviava de quando em quando uma lata de banha com lombo de porco assado lá dentro. A alimentação era escassa no que se refere a alimentos frescos e a guloseimas ou petiscos. As famílias enviavam para o quartel general encomendas deste género que eram por sua vez levadas para a sala de operações militares no aeroporto e, quando os pilotos de avião ou helicóptero tinham alguma missão que os faziam passar nas zonas indicadas no endereço,  levavam-nas.

O oficial das trouxas de ovos, que habitualmente convidava para comer o lombo de porco que a mãe lhe enviava, sentiu-se na obrigação de lhe retribuir, convidando-o para saborear a delícia recebida. Estas ceias eram destinadas a pequenos grupos com mais afinidades e realizavam-se depois de os outros se deitarem uma vez que tais mimos por natureza pequenos não chegavam para todos.

Naquele dia, após as cartas, ficaram a aguardar que todos se retirassem. Foi então trazido o frasco ainda acondicionado da viagem, servidas as bebidas de acompanhamento: whisky e cerveja. 

Mas pouco depois, começaram a ouvir-se metralhadoras a norte, no mato a dispararem para o aquartelamento. Eram metralhadoras lentas de 12mm e pistolas metralhadoras de 9 mm que se distinguiam pelo “Pec-Bum! Pec-Bum! Pec-Bum!” mais lento e mais pesado para as primeiras e mais vivo rápido e menos forte para as restantes. O ruído de “Pec” era originado pela passagem da bala e o “Bum” pelo seu disparo. Por isso se ouvia primeiro o PEC e depois o BUM!

Logo em seguida foram apagadas as luzes e a noite ficou mergulhada na escuridão, constantemente interrompida por very-lights – foguetes disparados para o ar que caíam lentamente com grande poder de iluminação.

A povoação era atacada em média 2 vezes por semana. Eram ataques sem grande perigo e não duravam muito mais do que uma hora.

Nestas situações não lhe tinha sido destinado fazer nada, uma vez que as granadas de artilharia eram caras para repelir ataques de pouca importância e que se destinavam a flagelação e desgaste. Quanto aos outros oficiais, cada um tinha a sua função.

Continuou sentado e a beberricar as bebidas até que o ataque terminou, o sossego voltou, acenderam-se as luzes, os seus companheiros regressaram e continuaram os preparativos para comerem o desejado manjar.

Quando já prontos para comer, de novo se ouviram as metralhadoras inimigas. Foram outra vez apagadas as luzes, cada um seguiu para o seu posto e ele continuou a beberricar. Não era normal haver ataques sucessivos e começou a pensar se por qualquer capricho do destino, aquilo não teria alguma coisa a ver com as trouxas de ovos.

Ficou assim sozinho, sentado no bar a remoer calúnias até que de novo o ataque terminou e tudo regressou à normalidade precária habitual da situação. Os companheiros regressaram. Os pratos foram distribuídos, as resplandecentes trouxas de ovos começaram a ser distribuídas e novamente se ouviram metralhadoras inimigas a alvejar o aquartelamento.

Achou que era demais. Já tinha entretanto bebido o suficiente para tomar atitudes pouco prudentes. Levantou-se, dirigiu-se á caserna, chamou o pessoal atribuído a um dos dois obuses do pelotão, mandou os municiadores trazerem munições, para o seu estacionamento, - um abrigo escavado até á altura do tubo do obus com acesso através de trincheira junto ao posto de sentinela que o guardava a um dos cantos do quartel - e logo de seguida disparou 70 granadas em tiro direto para a mata a leste do quartel com diferenças de direcção de alguns graus o que cobriu toda essa zona.

Durante duas semanas não houve ataques de flagelação ao aquartelamento.


(Seleção, revisão / fixação de texto, título e substítulo, parênteses retos: LG)

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Nota do editor:

Último poste ds série > 8 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25921: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte VIII: Uma voltinha de Alouette II

domingo, 15 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25946: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (35): "O Paquete"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"

O Paquete

O Paquete entrara no serviço de urgência, inchado como um tonel, tenso como um balão a que só faltava o alfinete para estoirar. Fígado, pulmões, ventre de pandeiro, tudo estava encharcado como uma esponja por um coração entupido. Sem ar, como se morresse afogado ou, dentro da linguagem médica, como peixe fora de água, insuficiência cardíaca grave, insuficiência cardíaca descompensada, anasarca, os vários termos para rotular o sofrimento atroz de um jovem sem culpa, igual a tantos outros que jogam ténis.

Socorrido na primeira fase de compensação e um tanto aliviado, é internado para estudo. De manhã, veio fazer um ecocardiograma.

O Paquete tinha vinte e seis anos e uma cara aciganada, morena de si e roxa da cianose. Começara a trabalhar como moço de trolha aos treze anos, vergado ao peso da tábua e do balde. À força de cachaços, lá se erguia quando aninhava com o abafa. Nunca alguém o levara ao médico.

Não tive coragem de colher a sua história antes desta idade, a história da sua infância. A meio do exame, disse-me o Paquete, a medo e quase em segredo: “Sr. Doutor, estou à rasca para mijar. Deixe-me ir mijar, pelas almas.”

No meio de tais máquinas, perante aquela gente de bata branca que ele nunca vira mais gorda, o sofrimento da sua vida levava-o a pensar que pedir para mijar era quase um crime.

O Paquete tinha uma gravíssima estenose mitral com severa insuficiência mitral e tricúspide e um coração do tamanho de uma melancia. Estava numa fase inoperável, a rebentar pelas costuras. Se operado fosse, tudo não passaria de remendo em calças a desfazeremse.

Sem a mínima ideia do que se passava, ele submetiase, humilde, desconfiado, medroso como sempre acontecera em toda a sua vida. Tinha medo de que lhe pusessem a tábua à cabeça ou o balde na mão. E com aquela falta de ar! Ele que sempre pedira para o deixarem respirar um pouco, antes do peso de outra tábua e de outro balde.

O Paquete nunca fora ao médico e nunca ninguém lhe dera a mão para se erguer. Todos lhe esfacelaram o coração e a vida até rebentar! Pobre Paquete! Pobre barco tão frágil!

Com as lágrimas nos olhos, saí do hospital e escrevi esta história de hoje, de há séculos. Escrevi-a em especial para os meninos e jovens que brincam, que jogam, que sonham e que vão ao médico.
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Nota do editor

Último post da série de 8 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25922: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (34): "Canção de Natal"

Guiné 61/74 - P25945: Por onde andam os nossos fotógrafos ? (24): Victor Condeço (1943-2010), o ex-fur mil mec armamento, CCS/BART 1913 (1967/69), que documentou como ninguém o quotidiano da linda vila de Catió - Parte III



Guiné> Região de Tombali > Catió > CCS do BART 1913 (Catió 1967/69) > Álbum fotográfico de Vitor Condeço > Catió - Quartel > "Foto nº 25 - No novo Bar de Sargentos em 1968. De pé os Fur Mil Pires, Mendonça, Laurentino (do serviço Foto Cine de Bissau), Condeço e Cabrita Gonçalves; em baixo o Teixeira e o Gil".



Guiné> Região de Tombali > Catió > CCS do BART 1913 (Catió 1967/69) > Álbum fotográfico de Vitor Condeço > Catió - Quartel > "Foto nº 18 - Os Fur Mil Viriato Dias e Mendonça no varandim do velho edifício da messe de sargentos".



Guiné> Região de Tombali > Catió > CCS do BART 1913 (Catió 1967/69) > Álbum fotográfico de Vitor Condeço > Catió - Quartel > "Foto nº 11 - O Fur Mil Vitor Condeço sentado na raiz do Poilão, tendo por fundo o edifício do comando".  



Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Vila > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Foto 8 > No centro da Rotunda, da esquerda para a direiuta, tyrês furriéis miliciano, o primeiro, de cujo nome não me lembro, o Cabrita Gonçalves e oV. Condeço, com casas tipicamente coloniais por fundo"


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (Catió, 1967/69) > Catió - Porto exterior > Foto 3 > "Cais do porto exterior de Catió no Rio Cagopere. Da esquerda para a direita, os  fur mil Cabrita Gonçalves, Machado e Mendonça,  e o civil sr. Barros.



Guiné > Região de Tombali > Catió >CCS / BART 1913 (Catió, 1967/69)  > Rio Ganjola na cambança para o Destacamento, o militar em primeiro plano é o srgt  Gaio, do Pelotão de Morteiros 1209



Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Porto Interior > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Foto 7 > "O porto interior de Catió., no rio Cadime, fazia parte dos nossos passeios de Domingo".



Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Porto Exterior > Álbum fotográfico do Victor Condeço> Foto 2 > "Lancha de Fiscalização Canopus no porto exterior de Catió, no rio Cagopere, afluente do Cobade. Da esquerda para direita no cais, o fur mil Machado, o civil sr. Barros e o filho, o fur mil Victor Condeço, e o fur mil Viriato Dias; em cima o fur mil Mendonça, um marinheiro africano e o Comandante da lancha".




Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Porto Interior > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Foto 8 >" Porto interior de Catió no rio Cadime, em dia de reabastecimentos. Em primeiro plano o fur mil Condeço em passeio dominical, no porão o sarg Dias e outros trabalhavam"

Foto (e legenda): © Victor Condeço (2010).Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 



1. São  fotos do álbum do nosso querido e saudoso amigo e camarada Victor Condeço (Vitinho, para os amigos de Catió),  um dos históricos da nossa Tabanca Grande: sentou-se à sombra do nosso poilão em 3/12/2006. 

Era natural do Entroncamento.  Não o conheci pessoalmente Falei com ele, ao telefone, algumas vezes, uns meses antes das morte o levar.  

Era uma homem discreto, afável e prestável, que colaborou connosco, de diversas maneiras, e que adorava o nosso e seu blogue.

Tem 6 dezenas de referências no nosso blogue.  14 anos depois, estva na  altura de revisitar o seu álbum, com belíssimas fotos da linda vila de Catió, e dos arredores (Canjola, Cufar..:),  meticulosamente organizadas por áreas temáticas e e devidamente legendadas...  Estão dispersas no nosso blogue.

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Nota do editor:

Postes anteriores  da série  > 25 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25880: Por onde andam os nossos fotógrafos ? (22): Victor Condeço (1943-2010), o ex-fur mil mec armamento, CCS/BART 1913 (1967/69), que documentou como ninguém o quotidiano da linda vila de Catió - Parte I

12 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25937: Por onde andam os nossos fotógrafos ? (23): Victor Condeço (1943-2010), o ex-fur mil mec armamento, CCS/BART 1913 (1967/69), que documentou como ninguém o quotidiano da linda vila de Catió - Parte II

Guiné 61/74 - P25944: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - XII (e útima) Parte: A minha casa é o mundo e qualquer dia estarei de volta...




Timor Leste > Liquiçá > Manatti > Boerbau > Escola de São Francisco de Assis (ESFA)

Fotos:  © Rui Chamusco (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Esta é a última crónica desta série... No dia 16 de junho de 2018 o Rui Chamusco regressou  a Portugal...  Foram cinco meses de estadia, iniciada em 25 de janeiro do ano da graça de 2018. 

O  luso-timorense e seu amigo Gaspar Sobral foi o seu companheiro de viagem.  Ambos são cofundadores e dirigentes da ASTIL (Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste), criada em 2015, com sede em Coimbra (onde o Gaspar e a  Glória vivem; a Glória é da Malcata, Sabugal).
 
O Rui é membro da nossa Tabanca Grande desde 10 de maio último. Natural da Malcata, Sabugal, vive na Lourinhã onde durante cerca de 4 décadas foi professor de música no ensino secundário. 

Em Timor (onde já foi cinco vezes, desde 2016), o Rui continua a  dedicar-se de alma e coração aos projetos que a ASTIL tem lá desenvolvido, nas montanhas de Liquiçá, e nomeadamente a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), em Manati / Boebau, no município de Liquiçá.

Em Dili ele costuma ficar em Ailok Laran, bairro dos arredores, na casa do Eustáquio (alcunha do João Moniz) , irmão (mais novo) do Gaspar Sobral,
 


O "malaio" (estrangeiro) Rui Chamusco
e o seu companheiro de vaigem, o luso-timorense
 Gaspar Sobral.

Foto: LG (2017)



II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL)


XIII (e Última) Parte -   A minha casa é o mundo e qualquer dia estarei de volta...

Dia 09.06.2018, sábado - Verdadeiros heróis...


Não posso deixar de descrever o que acabo de presenciar. O Cesáreo acaba de chegar de Liquiçá. Vejam só! Ontem de manhã foi para a horta, que fica mais ou menos a dois quilómetros no fundo da encosta, a apanhar folhas de “malus” (a folha de uma trepadeira que se cultiva em Timor Leste, pois faz parte do ritual cultural timorense mascar o betel: folha de malus+areca+cal). Ele mais o cunhado Augusto, apanharam duas sacas grandes cada um, subiram-nas às costas até cá acima e, às dezanove horas, já noite, ei-los prontos a partir, a pé, por entre montanhas e vales a caminho de Liquiçá, a fim de entregarem a colheita que um amigo se encarregará de vender.

Perguntei-lhe qual a distância a percorrer, e ele respondeu: “mais ou menos cinquenta quilómetros”. Ou seja, ida e volta cinquenta quilómetros. Descalços ou de chinelos, por veredas e atalhos, enfrentando os perigos do caminho: escorpiões, serpentes ou, na melhor das hipóteses, nada. Hoje, às oito horas da manhã, estão de volta. 

Tudo correu bem, mas imagino o cansaço e com certeza a fome com que devem estar. Eles fazem-me lembrar heróis de outros tempos que, em Malcata e nas terras fronteiriças se dedicavam ao contrabando, transportando odres de azeite e outros produtos que, sem descansar, percorriam também mais ou menos cinquenta quilómetros, correndo sérios riscos de serem apanhados e espoliados pela guarda fiscal (em Portugal) e pelos “carabineros” (na Espanha). 

Por quantas dificuldades não têm os pobres de passar para garantirem o seu
sustento e o das suas famílias. Sou testemunha viva da indigência destes pobres, onde qualquer cêntimo faz a diferença. Em casas térreas quase reduzidas a paredes e telhado, umas em colmo e palapa outras em blocos de cimento e telhados de zinco, gera-se a vida que, através de muitas dificuldades se vai construindo com muito amor, em corpos franzinos mas resistentes. Aqui, todo o ser vivo tem direito a usufruir do espaço caseiro.

Ontem à noite, enquanto tomávamos o café na casa do Cesáreo, andavam a nossos pés cães, galinhas e até uma porquinha. Faltam condições básicas, sobretudo de higiene, mas nem por isso as crianças e os adultos deixam de sorrir e de dar ao visitante tudo o que têm. Ai se os ricos dessem,  não tudo o que têm,  mas ao menos o que lhes sobra!...Como este mundo seria melhor...

As carências são muitas. Dinheiro é coisa que não têm, mas eles sabem que é com o
dinheiro que tudo se compra: café, arroz, cigarros, etc... Por isso, são frequentes os
lamentos e os pedidos. “Ti Rui ajuda?”. Ou então as crianças que se aproximam de ti, te estendem a mão e dizem: “Ossan! Ossan”; “dolar!”

Porra! Não haverá por aí, em Timor ou em qualquer parte do mundo, alguém que possa e queira ajudar estes pobres?

“Pobres dos pobres / São pobrezinhos / Almas sem lares / Aves sem ninhos.” (António Crreia de Oliveira)

Dia 10.06.2018, domingo - Continuação


Ontem à noite, em conversa de amigos com o Cesáreo, ousei perguntar-lhe: “Quanto ganhas cada vez que vais a Liquiçá levar as sacas de “malus”?” Ao que ele me respondeu: “Depende, Tiu Rui. Se é no verão (estação atual) quinze a vinte dólares; se é no inverno vinte a vinte e cinco”.

Já viram isto? Um homem passa um dia inteiro para recolher duas sacas de “malus”; percorre a pé montes e vales durante nove horas enfrentando as adversidades do caminho; chega a casa todo estoirado de cansaço apenas com 15 dólares no bolso...

Senti vergonha de mim próprio e de muitos mais que, ganhando mais do que precisam, esbanjam o seu dinheiro em coisas supérfluas e inúteis.. Prometi que o iria ajudar, mais que não seja arranjando padrinho ou madrinha para um dos seus três filhos.

Pois é! Uns nascem e vivem em berços e casa doiradas; outros nascem e vivem em
presépios e casa de palha. Que desigualdade social, em Timor e em muitas partes do
mundo. Cidadãos cujos salários mensais oscilam entre os sete e os dez mil dólares
(deputados, ministros, doutores, etc...); cidadãos cujo salário esporádico não passa dos trinta a quarenta dólares. Não acreditam? Então venham cá ver!...

Por mais que o Evangelho nos console dizendo-nos que “os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros”, é muito difícil resignar-se e aceitar pacificamente a situação.. Melhor seria que houvesse repartição da riqueza, conforme as necessidades de cada um. Como dizia o poeta António Aleixo: “Se fosse toda a riqueza / Distribuída com razão / Matava a fome à pobreza / E ainda sobrava pão.” 

Mas quem tem a coragem e agir? Como podem os poderosos, os ricos baixar na sua condição? Cada vez compreendo melhor a frase do Evangelho: “Pobres sempre os tereis convosco”. Porque a capacidade de ser pobre depende muito do coração e da vontade de cada um.

Arrepiante!...

Estou de frente ao monte, do outro lado da ribeira de Laoeli, pensando no relato que me fizeram em Ailok Laran, da cena horripilante passada há doze anos em Hatohoulau, e que passo a descrever.

Numa visita que a família de Ailok Laran fez à família da parte da mãe Felismina
Sobral, aconteceu que um dos primos residentes, talvez minado por ciúmes ou outro sentimento qualquer com traços de esquizofrenia, atacou violentamente, à catanada, o primo Abeka. Por sorte não lhe acertou na cabeça, pois seria morte certa, mas sim no braço direito. O Abeka perdeu os sentidos, e foi de seguida transportado ao colo de diversos familiares pela montanha abaixo, até encontrarem transporte para Liquiçá, onde foi assistido. Dizem os que presenciaram a cena que, apesar da profundeza e da dimensão do golpe, não havia quase sangue nenhum. Pudera! O Abeka só tem quase pele e osso...

Uns dias depois de me relatarem o acontecimento estive com com a vítima e perguntei-lhe se era verdade o que me tinham contado. Mostro-me então a cicatriz no braço direito, prova evidente da veracidade dos factos.

Quanto ao agressor, nada a fazer. “Ele é doente. De vez em quando tem destas coisas”.

Enfim, esta gente tem uma capacidade de perdão incrível. Como diz o Bartolomeo: “Se Cristo perdoa porque é que eu não devo também perdoar?”


Dia 11.06.2018, segunda feira  - Regresso
 a Dili

Sim. Estava previsto para hoje, mas não da forma que se deu. Como não havia “motor” disponível nem em Ailok Laran nem em Boebau, decidiram que eu regressasse em transporte público: anguna até Liquiçá e anguna até Ailok Laran.

E como só fui informado pelas sete horas, tive que me apressar em arrumar a trouxa para que às oito horas estivesse pronto, porque a anguna do João chegaria a essa hora.

E tudo estava pronto quando de repente procurei a carteira e não a encontrei. Entrei em pânico, pois nela estavam todos os meus documentos e o dinheiro à ordem, e recusava-me a partir sem tão preciosa propriedade. Toda a gente em alvoroço, procurando por tudo o que era sítio, e eu convencido que tinha sido roubado.

Cabecinha louca de velho descuidado! O Bôzé conseguiu encontrá-la entalada entre
duas caixas de papelão. Dei-lhe um abraço e uma recompensa, e pusemo-nos em
marcha. Destinaram-me o banco ao lado do condutor, o senhor João, pai do Tito e da Tita, crianças que frequentam a nossa escola. Mas como me querem proteger, o Cesáreo e o Laurindo fizeram questão de me acompanhar na viagem. Não querem que aconteça algo de errado ao Tiu Rui. Obrigado amigos!...

E que dizer desta viagem? O percurso até Liquiçá foi o melhor dos que já fiz. Nem
motor, nem carro têm a segurança e a comodidade da anguna, mesmo que de sobressalto em sobressalto. Claro que conta muito a perícia do condutor, que fazendo este caminho duas vezes ao dia, conhece bem todos os buracos, curvas e contra curvas, paragens, clientes e sei lá quanta coisa mais.

A viagem em microlete de Liquiçá a Ailok Laran foi maçadora. Um veículo com a
capacidade de 9 lugares transporta o dobro, mais as fartas bagagens (cachos de bananas, feixes de lenha, galos e galinhas, sacos diversos, mochilas, etc...). Leva os clientes e os seus pertences às ruas e becos onde parece não passar, e toda a gente ajuda a quem entra e a quem sai. Valha-nos ao menos esta boa convivência e entre ajuda. Ao meu lado direito, bem encostadinha, porque assim tem de ser para caber toda a gente, vinha uma menina 11 a 12 anos com um galo ao colo, que quase me debicava o pernil, gostasse ele da carne do “malai”. 

De entrega em entrega chegamos ao nosso destino, depois de quatro horas de viagem num percurso de mais ou menos 50 quilómetros.

E a vida recomeça em Ailok Laran, até à reta final da nossa segunda estadia em terras timorenses.

Dia 14.06.2018, quinta feira  - Encontro 
inesperado

De tarde fomos a Liquiçá entregar a lista das crianças que já se inscreveram na escola de São Francisco (62, aproveitando a seguir uma ida à uma praia de Liquiçá). Também aqui os porcos javalis eram banhistas. Mas eis quando que, sem ninguém esperar, chega um carro com quatro senhores lá dentro. Pronto nos apercebemos, e eles também de que éramos portugueses, estabelecendo-se logo um diálogo de conhecimento mútuo. 

Porque estamos em Timor, quem somos, o que fazemos. Pois sabem quem esteve connosco em mável conversação? Isso mesmo: os músicos do grupo musical Virgem Suta , Jorge Benvinda, Nuno e Tiago que, contratados pela Embaixada de Portugal vieram abrilhantar as celebrações do Dia de Portugal. Hoje mesmo, à noite, vão dar o último concerto no bonito espaço do Mercado de Dili. E amanhã, tal como nós, regressarão a Portugal.

Coincidências ou não, a verdade é que já há muito tempo que aprecio este grupo e a sua forma de fazer música. Talvez em Portugal a gente se encontre informalmente ou em espetáculos organizados. Agora que é o tempo das cerejas poderei dizer que, em jeito de despedida, foi “a cereja em cima do bolo”.

15.06.2018, sexta feira - Na embaixada 
de Portugal

A audiência foi marcada para as 15.00 horas, precisamente a hora em que fomos
recebidos pelo sr. Embaixador de Portugal Dr. José Vieira e pela sua assistente, Dra. Daniela Araújo. 

Para além de ser uma visita de cortesia e de despedida, fomos agradecer o seu apoio ao nosso projeto - lembro que esteve presente na inauguração da escola - o objetivo da visita era sobretudo a entrega de documentação relativa à escola, à Astil e à Astilbm, elaborada pelo colega de trabalho Gaspar. Com simpatia e diplomacia disponibilizou-se para apoiar e acompanhar o nosso projeto dentro das competências e possibilidades da embaixada, e depois de o Gaspar e o embaixador teceram diversas considerações, saímos airosamente do espaço que nos protegia.

“Talvez voltemos no final de ano”, disse eu, ao que o sr.embaixador manifestou o seu contentamento.

Por aqui me fico nas minhas crónicas da segunda estadia em Timor. Sei que esta noite ninguém vai dormir devido ao jogo de futebol Portugal / Espanha, que aqui começa às quatro horas da manhã.

Já em Portugal vos darei conta de algum episódio que durante a viagem de três dias
seja digno de registo.

Cá estamos de novo em Portugal, depois de cinco meses em Timor. Como se diz, “o
bom filho à sua casa torna”. Mas como desde há muito tempo eu defendo que a minha casa é o mundo, qualquer dia estaremos de volta a Timor.

Queremos agradecer a todos os que nos desejaram boa via e boas vindas. Esperamos entretanto encontrar-nos. Teremos muito gosto em estar convosco para partilharmos ainda mais as nossas vidas, e em concreto a nossa segunda estadia em terras do sol nascente. A propósito quero informar-vos de que, no próximo dia 19 de Julho, haverá uma sessão cultural, no auditório da Câmara Municipal do Sabugal, cujo tema será “Diálogos sobre Timor Leste”, pelas 21.00 horas. Esperamos encontrar-mo-nos por lá.

Tudo faremos para que esta sessão valha a pena.

Obrigado pelo vosso apoio e colaboração

Com um Grande Abraço,

Rui e Gaspar

(Seleção, revisão / fixação de texto, título e subtítulos: LG)

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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25931: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte XI: Não sei explicar o que nos prende a esta gente...

Guiné 61/74 - P25943: Parabéns a você (2311): Manuel J. Ribeiro Agostinho, ex-Soldado Radiotelegrafista da CCS/QG/CTIG (Bissau, 1968/70)

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Nota do editor

Último post da série de 11 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25932: Parabéns a você (2310): Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 (Gadamael e Quinhamel, 1970/72)