
Queridos amigos,
Foi uma chegada a Vila do Porto, com pompa e circunstância. Faz-se uma boa caminhada entre casario e lavoura, segue-se uma longa descida até dar com um largo e um belo convento, na Rua do Cotovelo, pergunta-se pela biblioteca, sugere-se que vá à Casa dos Fósseis, é aí que se dá o milagre da ressurreição dos vivos, quando me sentar no Museu Municipal, umas centenas de metros mais abaixo, a começar e ler um livro ali comprado A Ilha de Gonçalo Velho há uma chamada telefónica do sr. João a dizer que o pai descobriu o sr. José Braga Chaves, este pede contacto imediato, do imediato se chega à fala, e estes dois amigos, um que foi aspirante oficial miliciano e o outro seu soldado recruta, se vão abraçar e encontrar frequentemente durante aquela curta estadia, cada um tem uma história para contar, mas o mais importante foi o que se passou nos Arrifes e em Ponta Delgada, onde firmaram amizade, onde este mariense, conhecido como o mestre do karaté consertou um dedo repuxado na clínica do dr. Furtado Lima, intervenção cirúrgica que paguei em prestações suaves, e onde amigos queridos acolheram o convalescente, todos já partiram para as estrelinhas, nós ainda cá ficámos a luzir. E a viagem por Sta. Maria continua.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (178):
Regresso aos Açores, às ilhas do grupo oriental – 7
Mário Beja Santos
Recordo que durante a viagem até ao aeroporto de Sta. Maria me senti enfurecido por não ter devidamente tratado a questão do ciclo da laranja, uma riqueza que brindou ilhas açorianas particularmente nos séculos XVIII e XIX, e que uma sucessão de pragas extinguiu. No ponto mais alto do Museu Municipal de Vila Franca do Campo falou-se exatamente da laranja, que se deu muito bem nestes solos de origem vulcânica, formados por basaltos, tufos, traquites, lavas e pedra pomes. A chamada laranja doce foi cultivada especialmente em S. Miguel, mas também na Terceira, Faial e Pico. Gaspar Frutuoso fala deste citrino em quase todas as ilhas do arquipélago, com exceção da Graciosa, Flores e Corvo, o principal mercado para onde se exportava laranja era o Reino Unido. Paciência, voltarei à questão quando aqui voltar, juro a mim próprio.
Busco alguma documentação para me orientar, é uma brochura intitulada Sta. Maria para pessoas curiosas: nesta ilha encontram-se fósseis marinhos raros com milhões de anos e as suas jazidas fossilíferas, com relevância internacional, são um verdadeiro laboratório ao ar livre; a extração do barro foi durante muitos anos uma atividade económica de relevo na ilha e a intensidade das trocas comerciais entre Vila do Porto e Vila Franca do Campo levou a que fossem geminadas; Sta. Maria serve de habitat à ave mais pequena da Europa: a Estrelinha de Sta. Maria. Arrumados os tarecos no hotel, faz-se uma longa caminhada até se chegar a Vila do Porto, pergunta-se onde é o Museu Municipal, uma solicita senhora manda seguir em frente, olhe, depois daquela igreja, siga pelo passeio da direita, passa pelo convento e a Câmara, mais adiante tem a Casa dos Fósseis, aí lhe dizem como vai chegar rapidamente ao museu.
E assim foi, dá-se com o largo, ainda todo engalanado, uma ermida aberta com a imagem do Senhor Santo Cristo, uma bela talha, uma réplica da imagem guardada no Convento de S. Francisco em Ponta Delgada.
O sr. João é um jovem muito amável, vejo-o empolgado em mostrar-me o acervo legado de Dalberto Pombo, é nos explicada a riqueza dos fósseis e aquela particularidade que distingue Sta. Maria das demais ilhas, submergiu alguns milhões de anos, veio depois à superfície, assim se explica como uma parte da ilha é bastante plena (foi aí que se construiu o aeroporto de Sta. Maria, durante a Segunda Guerra Mundial) outra parte com bastante relevo e muito declivosa. Perguntou ao sr. João onde é a conservatória, ele questiona se venho comprar, não venho comprar nem vender, meu caro senhor, pretendo saber se está vivo e aqui reside José Braga Chaves, dei-lhe a recruta nos Arrifes, em S. Miguel, ficámos grandes amigos, por vicissitudes da vida há muitas décadas que não sabemos um do outro, tenho por ele uma profunda estima. O sr. João responde que ele deve ser parente do pai, o pai tem apelido Braga, dê-me o seu telemóvel, vou conversar com o meu pai, a ver se lhe vou dar uma boa resposta. Quanto ao Museu Municipal é só descer esta rua, do lado esquerdo.
Aqui arribei, tenho os pés moídos, a curiosidade pelos livros está sempre desperta, compro Ilha de Gonçalo Velho, por Jaime Figueiredo, instalo-me num cadeirão estofado, fico a saber que a ilha mede cerca de 17 km e tem uma superfície de 97 km2, dista 780 milhas de Lisboa e 2285 de Nova Iorque. Há as costas de arribas e alcantis, furnas e grutas, cheias de sedução e mistério, é o caso da furna de Santana e a do Romeiro. Estou nesta leitura da origem vulcânica, nos filões sedimentares de calcário miocénico quando toca o telefone, o senhor está cheio de sorte, o meu pai sabe muito bem de quem o senhor está a falar, esse senhor é o mestre do karaté, telefonou-lhe logo, o senhor Chaves está em pulgas, pediu para lhe dar o número de telefone, agradeço-lhe tudo sr. João, não agradeça, volte sempre, já que gostou do museu, ligo para o Zé Braga Chaves, são duas vozes exaltadas, taramelas, soluços, estou no Museu Municipal, pois eu dentro de minutos vou aí, tal como aconteceu, os dois velhos correm um para o outro, o rececionista do museu, sabiamente, mesmo cheiinho de curiosidade, afasta-se de uma cena íntima, temos a sábia prudência de voltar a 1967, aos marienses que não puderam passar o Natal na sua terra, a festa que se pôde organizar, as prendas para os soldados do pelotão, as senhoras de Ponta Delgada até foram buscar o comandante militar e a mulher para a festa que decorreu numa garagem toda forrada de criptomérias, o Botas a fazer de Pai Natal e a dar embrulhinhos às crianças, até houve missa cantada e depois um repasto especial. Fomos a um café onde pedi uma Kimba de maracujá, falámos depois das nossas guerras e é nisto que o Zé me pergunta por quanto tempo venho, qual o meu programa, só tenho programa amanhã de manhã, então vamos já buscar o carro e começar a conhecer a ilha, assentámos que eu sou o Mário e ele o Zé, então fica assim, a emoção é de tal ordem que me escusam de perguntar qual foi exatamente o itinerário percorrido, o que recordo é que saímos de Vila do Porto por uma estrada que levava a Praia Formosa, casario aqui, casario acolá, muito oceano à vista, na minha inocência perguntei-lhe se aquela enseada de Praia Formosa tinha a ver com São Lourenço, naquele outubro de 1967 o Carvalho Araújo aportou em frente a São Lourenço, ali se descarregou mercadoria, tivemos oportunidade de vir a terra num barquinho, ficara agradado. O Zé respondeu-me que amanhã o passeio seria até à baía de São Lourenço, mas olhe que há grandes diferenças, pronto lhe respondi que ainda bem, a minha grande alegria é ver como toda esta região medra e se dignifica. É pá, explica-me lá porque te chamam mestre do karaté. E ele explicou.
Um belo pormenor da Costa Norte, o casario lá no sopé do rochedo. Pouco dei pelas ribeiras, parece que no verão desaparecem, pelo que li há duas em direção a Vila do Porto; a ribeira de Aveiro despenha-se sob a forma de cascata, há uma outra, a do Salto que lança as suas águas por detrás da Ponta Negra, e também Sta. Bárbara que desemboca nas Lagoinhas. Há também ilhéus, irei ver o do Romeiro, a tal baía gigante na entrada de São Lourenço.
Fica-me a impressão que não longe do Farol da Maia se desce até esta vista impressionante do que foi uma fábrica de aproveitamento do óleo do cachalote, o que mais me impressionou foram os tons da cor da água, aquele impressionante enrugado da corrente e contracorrente, olha-se de cima para baixo e até dá para imaginar um mundo desaparecido mergulhado em águas tão cristalinas.
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 2 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26107: Os nossos seres, saberes e lazeres (652): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (177): Regresso aos Açores, às ilhas do grupo oriental (6) (Mário Beja Santos)