terça-feira, 12 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4330: Bibliografia de uma guerra (44): Memórias de um Prisioneiro de Guerra, de António Júlio Rosa (M. Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (*), ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70, com data de 27 de Abril de 2009:

Carlos e Luís,
Conforme o combinado, fiz a recensão do livro do António Júlio Rosa para a nossa bibliografia.

Com abraço,
Mário


Memórias de um prisioneiro de guerra

Beja Santos

As três guerras em que participámos em África, entre 1961 e 1974, não só definiram a identidade do país que hoje somos como deixaram marcas indeléveis nos que combateram, nos que se estropiaram, nos que vieram traumatizados pelas diferentes manifestações de horror que qualquer guerra comporta. Porque matamos, vemos e ouvimos morrer, porque fechámos os olhos ao nosso camarada que exalou o último suspiro ao nosso lado ou, mais remotamente, porque ficámos prisioneiros ou alguém desapareceu à nossa volta e veio a ficar refém do inimigo. Tivemos poucos prisioneiros de guerra e as suas histórias devem ser conhecidas.

António Júlio Rosa, nascido em Abrunhosa-a-Velha, povoação do conselho de Mangualde, parte com vinte anos para Mafra, tem o sétimo ano de liceu, vai frequentar o curso para oficiais milicianos. É um jovem tímido que regista a magnificência do Convento de Mafra, vai ao cinema da vila ver os filmes musicais de Giani Morandi, sentiu gosto na preparação física, no fim da recruta foi para Escola Prática de Artilharia, em Vendas Novas, tirar a especialidade. Também não desgostou da atmosfera do quartel, da actividade física e das marchas finais. Em Vendas Novas fez 21 anos. Depois, é colocado em Leiria, no Regimento de Artilharia Ligeira n.º 4.

Em Outubro está mobilizado para servir na Guiné, embarcará no dia 10 de Dezembro de 1967 no “Alfredo da Silva”. Em 3 de Fevereiro, de 1968 cairá nas mãos de uma força atacante do PAIGC que viera flagelar Bissássema, perto de Tite. O relato deste calvário constitui as “Memórias de um Prisioneiro de Guerra”, por António Júlio Rosa, Campo das Letras, 2003.

É um depoimento que cativa pela sua singeleza e simplicidade, é um abrir do coração para relatar páginas de um tempo vivido entre a ignomínia e a expectativa de um regresso a Portugal. Trata-se de um relato comedido, de quem teve tempo suficiente para ajustar a contabilidade de um tempo paradoxalmente vazio, onde se montava a engrenagem de uma fuga e se esperava um quase milagre de um regresso, fosse qual fosse o pretexto.

António Júlio Rosa foi em rendição individual, foi bem acolhido pelo Batalhão de Tite, gostou do seu Comandante de Companhia, o Capitão Miliciano Costa, juiz de profissão. Começou a descobrir a guerra local, os riscos, os usos e costumes, fez os primeiros patrulhamentos, até que chegou a hora de ocupar Bissássema. Recebeu como missão ir com o seu pelotão e mais dois de milícias (um de Tite e outro de Empada) conquistar e ocupar Bissássema, então ocupada pelo inimigo.

Ocupar Bissássema não parecia ser muito difícil. Tratava-se de uma tabanca de onde as forças do PAIGC tinham desaparecido sem deixar rasto, os 70 homens entraram sem problemas e logo começaram a construir abrigos e planear um sistema defensivo, durante dias foi um enorme movimento de enxadas, pás e motosserras, já que era bastante grande a área para defender. Pela meia-noite começou um ataque do PAIGC, meia hora depois o tiroteio parecia ter acabado. Foi esperança de pouca dura, pois logo a seguir começou um novo ataque, a força do PAIGC entrou dentro do quartel lançando granadas e semeando o pânico. Abalado com a explosão de uma granada, António Rosa e dois soldados foram apanhados à mão. Na madrugada do dia 3 de Janeiro de 1968 ele passou a prisioneiro de guerra e levado para a Guiné-Conacri.

Primeiro, o estupor da captura, a confusão de partir dentro do mato denso, o chegar a uma base inimiga e ser fechado numa pequena casa de mato. Depois, os primeiros interrogatórios, António Rosa ainda tenta ocultar o posto, será depois denunciado pela carteira com o bilhete de identidade militar que levava no seu saco de campanha. Em seguida, uma nova marcha passando por diferentes acabamentos, novos interrogatórios, em que o prisioneiro vai descobrindo que os guerrilheiros recebiam apoios dentro das povoações onde operavam as tropas portuguesas.

Ele escreve: “O Vicente, um dos chefes da base, mostrou-nos, como muito orgulho, tabaco Marlboro e sabonetes Lux que a irmã lhe tinha enviado nos últimos dias da povoação de Tite. Aquela sua irmã era esposa do Jamilo, o proprietário do único café existente na povoação da sede do meu batalhão. Se enviavam encomendas, também era certo, mas não sabido, que forneciam todo o tipo de informações acerca da nossa tropa. Naquele teatro de guerra, como é que poderíamos saber quem nos apoiava verdadeiramente?”.

Novas marchas forçadas, os prisioneiros vêem à noite a iluminação de quartéis portugueses nesta região Sul, atravessam o corredor de Guilege, terão percorrido cerca de 200 km a pé em 6 dias, atravessaram a fronteira, subiram para uma camioneta e chegaram a Boké. É aqui que conversam com Nino, então comandante da zona Sul, e daqui partiram para Conacri onde foram recebidos por Amílcar Cabral. Mais tarde, partiram daqui para a prisão de Kindia onde o alferes Rosa vai encontrar Lobato, um piloto da Força Aérea que ali estava há 4 anos como prisioneiro.

Foi assim que começou a vida de cativeiro, com tempos mortos, algum ódio e muita hostilidade dos guardas. O alferes Rosa conhece o furriel Vaz. Será com Vaz e Lobato que Rosa vai começar a gizar um plano de evasão. Kindia era uma prisão para gente considerada perigosa. Os três começam a estudar as possibilidades de se evadirem, pensaram em fugir de avião, furtarem uma viatura, fugir a pé. Os dias passavam lentamente, havia tempo para ponderar todos os pormenores para ter sucesso em alcançar de novo a Guiné. E em 3 de Março de 1969 o plano de fuga é posto em prática. Inicialmente, tudo correu muito bem, internaram-se na floresta, passaram perto de aldeias, comeram fruta, viveram todas as privações possíveis. Ao fim de 6 dias, foram capturados. Desta vez não foram para Kindia mas para Conacri. Inicia-se agora um novo período (de vinte meses) de cativeiro.

Novos ódios, novos interrogatórios, chegam notícias da família, António Rosa vem a saber que já não é filho único, acabara de nascer um irmão. António Rosa regista no meio deste tratamento duríssimo a boa educação de Vasco Cabral que sempre os tratará com cortesia, em todas as circunstâncias. Na noite de 21 de Novembro de 1970, no decurso da operação “Mar Verde”, os prisioneiros portugueses na Guiné-Conacri irão ser libertados e transportados em navios de guerra até aos Bijagós e daqui para Bissau. Farão a viagem num avião militar DC6 até Lisboa.

Segue-se o regresso a Abrunhosa-a-Velha, mais tarde em Mangualde António Rosa irá leccionar Educação Física e depois tirará o curso de professor no Instituto Superior de Educação Física. Irá efectivar-se na Escola Secundária D. Dinis.

António Rosa exerceu o dever de memória. Ele e todos os outros prisioneiros que participaram em experiências de amargura e elevado conflito, merecem-nos esta narrativa de um sofrimento que não pode ser iludido ou ignorado.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4269: Agenda Cultural (11): Ciclo de Encontros Guerra Colonial: Realidade e Ficção - Alverca do Ribatejo (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 25 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3936: Bibliografia de uma Guerra (43): 14.º Volume da Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (V. Briote)

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