terça-feira, 6 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5057: Notas de leitura (27): Os Heróis e o Medo, de Magalhães Pinto (Beja Santos)



Segunda parte da recensão do livro "Os Heróis e o Medo", de Magalhães Pinto, enviada pelo nosso camarada Mário Beja Santos (*), ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70, em mensagem com data de 29 de Setembro de 2009.





Meus bravos, de que cor é o medo ?
Beja Santos
(Continuação)

O romance “Os heróis e o medo” de Magalhães Pinto (Âncora Editora, 2003) tem uma estrutura singular mas terá sido porventura redigido apressadamente, não tendo havido circunstância para explorar a fundo o recorte dos personagens e dar consistência à temática da heroicidade, que o autor promete enunciar como primeira prioridade.

Os diferentes figurantes vão sendo concentrados em Santa Margarida, daqui partirão para a Guiné, ainda na primeira metade dos anos 60, Arnaldo Schultz é governador. Em pinceladas largas, temos um tenente-coronel de formação conservadora, para quem a Pátria nunca se discute. Aos poucos, o seu mundo familiar entra em revolução: um filho prisioneiro na Índia, que se irá demitir do Exército e sair de Portugal; uma filha contestatária que se enamora de um jovem opositor do regime, que será castigado, enviado para a Guiné, exactamente para a unidade comandada pelo pai da sua namorada; a redacção principal cabe a Mário que vai tarde e a más horas para esta comissão, cria amizades com Álvaro e Manel. Depois de um estágio à volta de Bissau, partem para Mansoa, os Águias vão fazer operações no Morés. A narrativa tem, pois, os condimentos que permitem ao obreiro do romance aprofundar aquilo que se propõe: como se mede o heroísmo, como se manifesta? No teatro de combate, o que leva um ser humano a exceder-se ou a tolher-se? Magalhães Pinto refugia-se na polpa do troar das armas, no sangue à vista, não tira consequências dos estados de alma. É pena, temos aqui um bom território de combate e cidadãos identificáveis que nunca pretenderam alcançar a heroicidade. Nos casos em que ela lhes tomou o destino, a expressão literária é confusa e incompleta. Mas como a matéria-prima é muito rica, recomendamos a Magalhães Pinto que se afoite a rever este livro de alto a baixo, poderá aqui haver uma grande surpresa para a literatura da guerra colonial.

As tropas do batalhão de Mansoa, com companhias espalhadas por Mansabá, Bissorã e Olossato, estão de regresso do Morés, Álvaro rabiscou mais um dos seus poemas que Mário lê. É uma tropa exausta, tiveram duas baixas que estão na capela de Mansoa. Ao nível do comando, já há tensões, o major Glória Marques desabafa ao comandante Soveral que esta guerra não conduz a nada, os militares estão a pagar o tratamento injusto das populações pelos colonizadores. O autor aproveita para nos descrever a vida social em Mansoa com o seu clube de futebol Os Balantas, o círculo social das mulheres de alguns oficiais e sargentos, a mulher do administrador civil, as filhas do dono do tasco, as idas ao cinema, o restaurante de Emília Sá.

É nisto que se dá um violento ataque ao destacamento de Cutia. Sai uma coluna de socorro quando se percebe que estão cortadas as ligações e a situação no fortim parece aflitiva. Na noite escura, os faróis das viaturas desenhavam fantasmas na margem da picada. É a descrição mais poderosa do romance de Magalhães Pinto, a do ataque a Cutia. Tudo começa com o “pof” inconfundível de uma granada de morteiro a sair do tubo, depois o assobio em crescendo dos projécteis a cair no destacamento, a que se seguiu a fuzilaria das costureirinhas. No pandemónio que se vive dentro do destacamento, manobram-se quatro metralhadoras pesadas, mas o fogo inimigo parece nascer do chão, não distante do arame farpado, quem está dentro de Cutia sente o cerco, os guerrilheiros avançam para as fieiras de arame farpado. É o momento de heroísmo de Manel, ele pressente que os guerrilheiros podem chegar aos abrigos, a seguir seria o caos. Assim vai agir um herói sem medo: “Desceu o que restava das escadas da torre, chamou dois dos nativos e disse-lhes para virem atrás dele, carregando cada qual um cunhete de granadas de mão. Afrontaram o fogo a peito descoberto. Friamente, o Manel avançou, destemido e seguido pelos dois nativos, para o inimigo. Arrancava raivosamente, com os dentes, o grampo de segurança das granadas, segurando a cavilha, punha-se de pé e deixava-se tombar para a frente, arremessando as granadas na direcção dos adversários com o impulso da queda. Berros agora mais frequentes indicavam o sucesso da acção suicida. Empolgados pela acção do seu comandante, os soldados saíram dos abrigos e carregaram. Disparando incessantemente. O fogo do lado de lá foi abrandando, cada vez mais longe da cerca, agora. Alguns minutos depois, a parecerem horas, o silêncio voltou, quebrado por alguns gemidos aqui e além. Acalmada a trovoada, as rãs voltaram a coaxar”. Morreu o Miragaia, com o rosto meio desfeito por um estilhaço de morteiro.

Magalhães Pinto que já inventara um Wiriamu, põe agora um torturador, Xerifo Camará a espancar um prisioneiro, trata-se de um interrogatório que nós sabemos ser inverosímil: “O fula tinha o seu gabinete de trabalho instalado na torre da água do quartel. Um prisma oco, quadrangular, com dois metros de aresta na base, coroado no topo, a uns bons seis metros de altura, por de um depósito de cinco mil litros. Da barra de ferro atravessada no seu interior, bem lá no cimo, por debaixo do depósito, para dar consistência à construção, pendia, dobrada, uma corda roliça, já sebenta, de cor indefinida, armada em nó corredio numa das extremidades. Quando algum prisioneiro, moralmente mais forte, resistia à sessão de palmatória, era conduzido ao depósito, para o tratamento especial do Xerifo”. É um interrogatório de uma brutalidade sem limites. Mário ainda lhe leva água e o prisioneiro responde-lhe: “Tu vai morrer no Chão de Papel, branco...”. E não resistiu ao sofrimento. Estabelece uma grande amizade entre Mamadu e Mário, o primeiro fora salvo pelo segundo. Mais tarde Mamadu fugirá para o mato, o romance culminará com o reencontro dos dois, no momento em que o Mário está a terminar a sua comissão.

O romance prossegue com a ceia de Natal, um espectáculo organizado entre militares, Zé António, que viera castigado para a Guiné vai morrer na explosão de uma mina anti-carro, mais um problema graúdo na vida do comandante Soveral. É quando a comissão de serviços está no fim, que Mário realiza o seu último patrulhamento, na emboscada está Mamadu. E num dado momento ambos estão de armas apontadas, numa promessa de morte. É Mário quem dispara, aproxima-se e vê com horror que a arma de Mamadu estava travada. Mamadu pagara com a vida a vida que devia ao português. E assim termina o romance: “Vazio, sonâmbulo, ajoelhou-se e tomou o corpo inerte nos seus braços, abandonada toda a precaução a si mesmo jurada. Abraçou-o. Afagou-lhe a carapinha, enquanto deixava correr, rosto abaixo, duas lágrimas redentoras. Apenas duas. Tinha já passado a época das chuvas”.

Não se discute a sinceridade deste testemunho de Magalhães Pinto, é mesmo de supor que se trata de autobiografia com laivos de pura ficção. Haverá tudo a ganhar em refazer-se a obra, superficial em momentos culminantes, pouco expressiva sobre a essência do heroísmo, em que até o próprio medo sai mal tratado. Todas as guerras têm heróis, medos, desabafos, perdas e redenções. A notabilidade é tratar estes sentimentos e emoções numa atmosfera plausível e na inteireza da condição humana. É o que se espera da revisão ou da sequência deste “Os heróis e o medo”

Este livro fica a património do blogue.
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Nota de CV:

Vd. poste de 5 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5052: Notas de leitura (26): Os Heróis e o Medo, de Magalhães Pinto (Beja Santos)

1 comentário:

Antonio Graça de Abreu disse...

Diz o Mário Beja Santos que "é mesmo de supor que se trata de autobiografia com laivos de pura ficção. Haverá tudo a ganhar em refazer-se a obra, superficial em momentos culminantes, pouco expressiva sobre a essência do heroísmo, em que até o próprio medo sai mal tratado".
Quer dizer, o livro é mesmo muito mau.
Assim se vai fazendo a nossa História, daqui a 50 anos fomos todos nós, todos nós, repito, um bando de criminosos.
Um abraço,
António Graça de Abreu