Guiné > Região do Cacheu > Ingoré (junto à fronteira com o Senegal) > CCAÇ 2381 > 1968 > O 1º cabo Teixeira, ainda no início da sua comissão, com duas crianças vestidas com a farda da Mocidade Portuguesa. "Eu, que tanto pensei em fugir, para não participar nesta guerra que conscientemente não queria e que, se não o fiz, foi por causa do sentido de patriotismo que cresceu em mim deste o banco da escola, - éramos um grandioso império que urgia defender de inimigos ambiciosos"....
Foto: © José Teixeira (2006)
Texto do José Teixeira, ex- 1º cabo enfermeiro, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70.
Que motivação a do Domingo Diaz! (1)...
O texto/testemunho do médico cubano Domingo Diaz deu-me que pensar. Como é que um médico especialista, chefe de serviços de cirurgia algures em Cuba - que, apesar de se tratar de um cubano em Cuba, em plena revolução castrista, devia estar com a vida minimamente estabilizada -, [como é que um médico se mete numa coisa destas ?]
Lá como cá e em todo o mundo, um médico é um médico. Eu, sendo apenas um aprendiz de enfermeiro senti bem pela positiva quanto vale ter-se no mínimo um título de enfermeiro, para ser tratado com todo o cuidado, carinho e respeito, tanto pelos colegas e pelos superiores (militares) como pela população. Era o possível (embora pobre) salva-vidas de cada um deles.
Dispõe-se um homem destes a oferecer-se como voluntário, para entrar numa guerra, num país de pessoas, hábitos e culturas estranhas em que o clima era extremamente agressivo. Logo do lado do mais fraco em termos de logística, conhecimentos técnico/tácticos e de material de guerra, falta de apoio de rectaguarda, nas mais diversas áreas como: a alimentação, a segurança, a assistência medicamentosa e hospitalar (Equipamento mínimo exigível, a sanidade, enfermarias, hospitais, etc.).
Não é que nós tivéssemos muita coisa, mas creio que sempre tínhamos algo mais.
Com certeza tinha consciência de que se fosse apanhado pelo Tuga, dificilmente escaparia com vida e podia inclusive criar um conflito diplomático ao seu país, embora o Fidel se estivesse nas tintas para tal coisa.
Sabia, naturalmente, pela experiência vivida pelo povo cubano na Sierra Maestra, na luta encabeçada pelo Fidel Castro para libertar Cuba do ditador Fulgêncio Baptista e da influência nefasta dos americanos, que a força de um povo é tremenda, quando se trata de conquistar a liberdade. Não há barreiras ou limites inultrapassáveis- antes a morte.
Os resultados finais, projectados no tempo, é que poderão não ser os que alimentam o sonho que fez mover tão grandiosa e heróica máquina. Que pena, tantas vidas perdidas!
Teria consciência que apesar das diferenças, em termos de capacidades de luta, estas eram facilmente ultrapassadas pelos nacionalistas, graças ao conhecimento no terreno, pela capacidade de resistência natural às agruras do clima, pelas traições dos autóctenes que se encontravam do outro lado da barreira e sobretudo pela vontade, coragem e força anímica que fazia mover o povo da Guiné.
Mas que coragem! "Que força é essa que te faz estar de mal contigo e de bem com os outros!"...
Pelo texto, ficou claro, para mim, que se ofereceu e partiu como voluntário. A figura épica e espírito internacionalista do médico e guerrilheiro, lutador pelas liberdades, Che Guevara, marcara-o profundamente, ao ponto de deixar tudo e partir para a luta.
O testemunho fala por ele próprio quanto às barreiras, dificuldades e sofrimento que passou para entrar na Guiné, integrar-se e caminhar pelo seu interior, estranho agressivo, sem bases de apoio. Foge aqui, esconde acolá, acode além a um ferido, alimentando-se do que havia, quando havia, matando a sede com a água a que o seu organismo não estava habituado e sem reservas para combater as bactérias ingeridas.
Permite-nos também, a nós, perceber um pouco melhor as dificuldades e barreiras que os nacionalistas da Guiné, os turras tinham de ultrapassar para chegarem até nós, nas emboscadas e ataques aos aquartelamentos. Não tinham vida fácil, apesar de estarem como peixes na água, na sua terra.
Pensando nos missionários, sobretudo os católicos que ainda hoje partem para lugares inóspitos e estranhos, e aos quais o mundo tanto deve, salvaguardando as excepções em que, manipulados pelos sistemas (num passado recente), serviam mais esses sistemas do que o espírito de missão que os animava à partida... Esses, os missionários, têm sempre em vista a salvação da sua alma para um dia chegarem ao céu. Há algo de místico, sobrenatural por trás que os faz movimentar-se; a salvação eterna de si próprio e das pessoas com quem vão contactar e promover sócio e culturalmente. O risco de vida, embora real, é reduzido, pelo menos na actualidade. Mas... partir voluntário para uma guerra nestas condições !
Eu, que tanto pensei em fugir, para não participar nesta guerra que conscientemente não queria e que, se não o fiz, foi por causa do sentido de patriotismo que cresceu em mim deste o banco da escola, - éramos um grandioso império que urgia defender de inimigos ambiciosos.... Eu não o fiz pelo receio de ser apanhado na fuga, preso e tornado voluntário à força para os sítios mais agrestes da guerra, o medo do desconhecido na fuga ao assalto para França...
Aceitei, enfim, o desafio de caminhar pacificamente como o carneiro para o matadouro, pondo a mim próprio a condição de não dar um tiro. Esta ideia tomou força em mim, quando tive a sorte de ser escolhido para ser enfermeiro militar.
O Dr. Diaz apresenta-nos um testemunho rico em todas as dimensões. Confesso que na altura chamar-lhe-ia terrorista como ao Pedro Peralta, mas hoje com a cura que o tempo me facultou, foi um homem corajoso.
O Blogue e seu maestro estão de parabéns.
Creio que seriam de grande interesse continuar a explorar esta oportunidade de conhecermos o lado de lá com o apoio de alguém independente, isto é, alguém que apenas queria ajudar na luta pela emancipação de um povo, sem interesses pessoais e apenas motivado pela solidariedade internacional.
Assim se faz história.
Zé Teixeira
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Nota de L.G.
(1) Vd. posts de 11 de Junho de 2006:
Guiné 63/74 - P950: Antologia (46): Depoimento de médico cubano na guerrilha do PAIGC (1966/67)
Guiné 63/74 - P951: Antologia (47): Um médico cubano no Morés e no Cantanhez (Domingo Diaz, 1966/67)
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