José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , (1968/70).
Saiu-lhe a sorte grande,
por Zé Teixeira (*)
Os trabalhos da construção da estrada de Buba para Aldeia Formosa decorriam em ritmo acelerado. O estado físico e psicológico dos operacionais das três Companhias de Caçadores (1) envolvidas directamente na segurança do projecto estava em queda livre.
O cansaço provocado pelo vaivém diário na protecção à maquinaria, debaixo de sol abrasador e as constantes investidas do IN em emboscadas, montagem de minas e ataque ao aquartelamento, aliados à deficiente alimentação em resultado de escassez de mantimentos, provocada pelo afundamento de um barco carregado com produtos alimentares, segundo constou, foram quebrando as resistências humanas daquela juventude.
Todos os dias de manhã a fila, à porta do gabinete médico, ia engrossando. As queixas eram de toda a ordem, salientando-se a fraqueza física e o cansaço. Apareciam dores de toda a espécie, as mais estranhas e em todo o corpo.
A minha profunda homenagem de gratidão ao querido amigo Dr. Azevedo Franco, pela forma como soube sempre acolher e como actuou em defesa da saúde dos seus homens. Dispensava atenção e carinho. Ouvia toda a gente, mesmo aqueles que tentavam, através da manha, safar-se. Ele, que nos conhecia bem, algumas vezes lhes deu cobertura, com um ou dois dias de baixa, comentando comigo:
- Aí vem mais um! Já sei o que ele quer.
Para além da medicação apropriada possível, não hesitava em dar baixa sempre que lhe parecia necessário, para salvaguarda da saúde, correndo riscos pessoais, pois a quebra foi tão elevada que chegou a atingir cerca de 50% do pessoal activo.
Como resultado, apareceu por lá o homem do monóculo e pingalim. Juntou o pessoal presente, das cinco Companhias e botou discurso apelando ao sentido patriótico que, segundo ele, nos unia naquele inóspito local, derivando de seguida para a forma de superar as nossas carências alimentares. Voltando-se para o médico insistia:
- Estes homens o que precisam é de umas picas (2), aponta Bruno(3)-. Ao que o Dr. lhe respondeu:
- Frescos, meu Comandante, peixe, carne e descanso é o que esta gente precisa.
Uns dias depois, aparece uma Dornier com dois médicos idos de Bissau para fazerem um levantamento da situação ou seja todos os militares com baixa foram chamados a uma Junta Médica, para apreciar o seu estado de saúde.
Independentemente dos resultados quase nulos desta operação, surgiram outras situações de camaradas a tentar a sua sorte.
O meu prezado amigo Luís, não o Graça, mas outro da CCAÇ 2317 que tinha vindo de Gandembel, chegou à minha beira e comentou:
- Eu queria safar-me uns dias, mas não tenho de que me queixar! Estou cansado de tanta marcha!
Perguntei:
- Nunca tiveste uma doençazita?
- Sim. Tive uma úlcera no estômago, mas curei-a antes da tropa!
- Ainda te lembras dos sintomas e das dores que tinhas?
- Ah isso lembro-me bem. Sei os sintomas todos.
- Então porque esperas? - E marquei-lhe a vez.
Após uma nervosa hora na fila, lá foi chamado. O que se passou lá dentro não sei, mas um quarto de hora depois saiu com uma viagem até Bissau.
Com um ano e pouco de Guiné e oito meses no inferno de Gandembel, nunca mais lhe pus o olho em cima.
Entretanto as nossas Companhias separaram-se, pois a CCAÇ 2317 pouco tempo depois foi para Nova Lamego (Gabu).
O resultado final soube-o há algum tempo atrás, quando o encontrei no convívio da sua Companhia, no qual tive o prazer de estar presente a convite do Idálio Reis, a quem agradeço a cortesia.
Após cerca de um mês no Hospital de Bissau em exames, o médico deu-lhe alta, por não acusar nenhuma doença no estômago. Mas este médico foi de férias e o substituto ao analisar o seu processo e, vendo ali um conterrâneo, perguntou-lhe se era de Lousada e, ao receber uma resposta afirmativa, identificou-se.
Depois de localizados no terreno e nas famílias a que pertenciam, o mesmo médico perguntou-lhe se queria ser evacuado para Lisboa. Ora, não se pergunta a um cego se quer ver, com o devido respeito que tenho pelos invisuais.
Uns dias depois seguia para Lisboa e foi para o Hospital Militar Principal onde ficou uns meses em observações e em exames que davam sempre inconclusivos. Acabou por ser dado como apto a regressar à Guiné e foi colocado na sua Unidade Mobilizadora, à espera de transporte para regressar à Guiné.
O tempo foi passando e com o regresso da sua Companhia foi desmobilizado, entrando na tão desejada peluda.
- E o estômago, como está ?
- Até hoje não me queixo de nada e nunca entrou lá para dentro qualquer mezinho para curar uma doença que não tive, mas que me safou.
Zé Teixeira
ex-1.º Cabo Aux Enf
CCAÇ 2381
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Notas de Z.T.:
(1) Havia ainda uma Companhia de Fuzas e outra de Comandos, estacionadas em Buba, que desenvolviam um trabalho de patrulhamento e protecção indirecta.
(2) Na altura o Capitão Almeida Bruno, seu Ajudante de Campo. Daqui resultou mais um apelido para o Caco, o Aponta,Bruno
(3) POassados uns dias, no barco de produtos alimentares lá veio um grande caixote cheio de medicamentos. Por ordem do médico devolvi tudo a Bissau com a indicação de que não tínhamos efectuado tal encomenda.
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Nota do editor:
(*) Vd. último post desta série> 18 de Agosto de 2007> Guiné 63/74 - P2058: Estórias do Zé Teixeira (20): Fermero ká tem patacão pra pagá, toma minha mudjer.
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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