sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2087: Estórias do Zé Teixeira (24): Vítimas inocentes (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)


José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , (1968/70)

Mais uma estória comovente do nosso camarada Zé Teixeira.
Tão fundo lhe tocou este acontecimento que lhe inspirou um pequeno, mas belo poema.

Sabe-se que todas as guerras fazem vítimas independentemente de se ser militar ou civil, homem, mulher ou criança. Toda a gente está sujeita ao acaso de uma bala ou granada perdidas.
O nosso conflito não foi excepção.

No caso vertente, foi uma inocente bebé a vítima de uma guerra, que como todas são injustas e nunca deviam sequer começar.
CV

Vítimas inocentes

Era meu hábito, bater uma soneca depois de almoço, tendo como companhia a minha Maimuna (A bebé que em Mampatá Forreá me fazia companhia diariamente).
Na primeira vez que o tentei fazer, o raio da miúda chorou todo o tempo, obrigando-me a ir perguntar à Ansaro, sua mãe, qual seria a razão para ela não querer dormir comigo. Aconselhou-me a deitá-la junto às minhas costas. A catraia agarrou-me na camisa de um lado e do outro e adormeceu toda a tarde.

Fenómeno estranho, mas natural em ambiente de guerra. Segundo a mãe, à noite amarrava-a às costas, deitava-se e assim dormiam as duas. Era uma forma segura de em caso de ataque, ao fugir para o abrigo, ter a certeza que levava a bebé com ela.

Guiné-Bissau, 2005> Zé Teixeira, não com a "sua" Maimuna, mas com um menino que a fará lembrar.

Mais tarde em Buba, sofremos um violento ataque às cinco da manhã. Alguns feridos na população civil, entre os quais a Suade, mãe de uma bebé que morreu carbonizada.
A jovem mãe chorava inconsoladamente e pedia com insistência que a deixasse morrer, quando eu, com cuidado a tratava dos diversos estilhaços que tinha espalhados pelo corpo, mas sem aparente gravidade de maior. Porque ainda não conhecia o seu drama, eu não estava a entender a razão do seu estado emotivo, que chegou a perturbar-me.

Logo que estabilizei a doente, parei todo o trabalho, apesar de haver mais feridos (ligeiros) à espera e procurei acalmá-la e assim pude ouvir, viver e entender a drama que a consumia.

Tinha por hábito deitar-se a dormir com a bebé amarrada às suas costas, como era vulgar vê-las, as mudjer garandi, ou mesmo as badjudas e badjudinhas (com os manos mais novos) durante o dia, a pilar o arroz.

Alta madrugada deu-lhe de mamar e deixou-se adormecer com a criança a seu lado.

Surgiu o inesperado ataque. Estonteada pelo violento estrondo arrancou para o abrigo e quando repara que não levava a bebé consigo, voltou para trás, mas não chegou a tempo. Uma granada assassina que ia direccionada para o local onde estava o obus, rebentou na crista da sua morança, projectou-a para o chão e carimbou-a com estilhaços.
Quando recuperou, já era tarde. A morança estava num braseiro e a sua bebé lá dentro, carbonizada.

A morte da sua filha tinha-lhe tirado o sentido da vida. Assumia toda a culpa no acontecimento. Se nunca fazia aquilo, mesmo quando se passava algum tempo sem visitas do bandido, havido um ataque uns dias antes, porque o fez naquela noite? Perguntava-se a si própria e chorava, chorava ...

Momentos difíceis que ainda hoje me arrepiam.
Pobre criança, vítima inocente de uma estranha guerra,
Pobre mãe que carregava as culpas que não eram suas.

Descarreguei minha raiva num poema que nesse dia fiz, à sombra do mangueiro que havia na parada, meu companheiro de longas horas, pela sombra e protecção que me dava sem cobrar alvíssaras.

Guerra, Sinal de Morte

Uma granada.
Vinda não sei de onde.
Lançada, não sei por quem.
Rebentou.
... E aquela criança,
Que brincava, além
A morte, a levou...
Na areia brincava...
E sua mãe,
Que seus paninhos lavava.
Estremeceu.
Por triste pressentimento.
Seu olhar volveu.
...Um grito
E desmaiou.
No preciso momento.
Em que seu filho morreu.

Zé Teixeira
______________

Nota do editor:

Vd. Último post desta série de

1 comentário:

Anónimo disse...

Um escritor que denuncia as atrocidades cometidas por militares portugueses na Guiné é Cristóvão de Aguiar.
Acho que a Guiné devia reconhecer esse escritor condecoramdo-o e dando a ler o livro "Braço Tatuado" aos seu filhos...