quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3767: Estórias do Zé Teixeira (35): O Lisboa - E seu irmão que morreu no desastre do Cheche (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

1. Mais uma estória de José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, que nos foi enviada no dia 2 de Janeiro de 2009:


O LISBOA
E seu irmão que morreu no desastre do Cheche

Pela alcunha se pode calcular que o Ferreira era natural de Lisboa. Simples e humilde. Casado e com filhos. Picheleiro de profissão, Atirador por missão. Tinha uma relação muito boa com a avó. Suponho que foi ela que o criou na sua meninice

O Lisboa viciou-se na batota, já na Guiné, creio eu. Era um dos que, recebido o Pré no fim do mês, desaparecia. Só os víamos, no refeitório e nas saídas para o exterior. Acabada a grana ficava na pendura até ao fim do mês seguinte. Um ambiente de guerra também fomenta este tipo de formas de estar na vida.

Um dia ou noite, não sei bem, já em Empada, numa situação de desespero, levantou a parada demasiado alto. Jogou a aliança de casamento e lerpou. O Paraquedista, alcunha dada a um camarada que tentou as alturas e veio cair na tropa macaca, agarrou a aliança com ambas as mãos e passados oito dias, continuava a afirmar que a tinha ganho no jogo, era dele e ponto final.

O Lisboa bateu a várias portas na tentativa de quem interviesse para recuperar a aliança. Como resposta tinha um conselho - aprende a ter juízo. Ele bem choramingava, mas de nada lhe valia.


O Oliveira (vaguemestre), eu, o Lisboa e o El Gonzalez, ainda periquitos em Ingoré

Bateu-me à porta. Hesitei, porque o Paraquedista não era flor de bom cheiro. A forma de ser e estar na vida deste homem não me convidava a uma relação amistosa, mas aceitei o desafio.

Após várias insistências de minha parte, atirou, enraivecido, a aliança do camarada para o chão, rosnando que se ele lhe repetisse a cena, nunca mais lhe devolveria o anel.

Naturalmente que o Lisboa se aproximou de mim numa relação de camaradagem de quem está longe dos seus e encontra um amigo.

Seu irmão mais novo, cerca de um ano depois, também foi parar à Guiné. Estavam ambos em zonas de elevado grau de guerrilha. Nas matas do Boé ou para os lados da mata do Cantanhez, o diabo que escolhesse.

Um dia soube-se do desastre de Cheche no Corubal (*), quando se procedia à retirada da Companhia que se encontrava em Madina do Boé. Quando apareceu a listagem dos mortos neste drama, houve alguns curiosos que foram ler os nomes na expectativa de localizar alguém conhecido, suponho.

- Ouve lá oh Lisboa, está aqui um gajo que deve ser o teu irmão, pelo nome …

Era mesmo. Calculem o estado em que ficou o pobre do Lisboa. O seu irmão morrera afogado no Rio Corubal, uns dias antes, quando integrava a Companhia que fora apoiar a retirada dos mártires de Madina do Boé.

De quem se havia de lembrar o rapaz, para desabafar as mágoas, do Teixeira.

Momentos dolorosos que acompanhei de perto e que me abalaram profundamente. Com ajudar numa situação destas ? Que soluções para mitigar a dor, a quem não tinha pais e agora via desaparecer o irmão?

Eu sabia que havia uma Lei que possibilitava aos mobilizados que tivessem irmãos na guerra, serem desmobilizados, desde que o requeressem por escrito.

De imediato fiz seguir um requerimento para o Comandante Chefe. Uns dias depois chegou um rádio a dar instruções para o Lisboa seguir de imediato para Bissau com destino a Lisboa. Nesse mesmo dia a DO do correio passava. Foi só reservar o lugar e o Lisboa nem teve tempo de se despedir.

Boa sorte Lisboa, te desejei e continuo a desejar, sem saber por onde andas.
Zé Teixeira
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3671: Estórias do Zé Teixeira (34): O meu conto de Natal (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

Notas de L.G.:

(*) Sobre o desastre do Cheche, no Rio Corubal, no âmbito da Operação Mabecos Bravios, e sobre Madina do Boé, vd. os postes publicados no nosso blogue (1ª e 2ª série):

17 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIX: Antologia (7): Os bravos de Madina do Boé (CCAÇ 1790)

2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé (5 de Fevereiro de 1969)

8 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXX: A retirada de Madina do Boé (José Martins)

3 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCV: Madina do Boé: 37º aniversário do desastre de Cheche (José Martins)

12 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXVI: O desastre do Cheche: a verdade a que os mortos e os vivos têm direito (Rui Felício, CCAÇ 2405)

7 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P853: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (10): A retirada de Madina do Boé

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1292: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (Parte I)

15 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1370: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (Parte II)

21 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1388: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (III parte)

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