Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 21 de julho de 2009
Guiné 63/74 - P4717: Efemérides (22): 20 de Julho de 1969, domingo, dia de ronco com manga de chocolate... (José Teixeira, CCAÇ 2381, Buba)
1. Mensagem do José Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70 (*):
Luís: Boa noite. Aguçaste-me o apetite para ir consultar o meu diário e deu nisto.
Efectivamente, foi dia 'di ronco, cum manga di sakalata'.
Quanto ao pato que originou este 'encontro', viu-o passar à distância. Outros se banquetearam.
O Texto do encontro com o colega, já passou no blogue e a parte descrita no Diário também, nas primeira série. A ligação ao dia em que o homem pisou a lua, só hoje constatei.
Abraço fraterno .
Resposta à pergunta 'Camarada, onde estavas no dia em que o primeiro homem pisou a Lua ?' (**)
Do meu Diário > Buba, 22 de Julho de 1969 (*)
Domingo, dia 20, saí para o mato pela tarde a patrulhar a estrada nova e emboscar o IN em seguida. De certeza que fomos seguidos pelo IN, que nos deixou montar a emboscada e abriu fogo de seguida. A nossa reacção foi rápida e os indivíduos calaram-se. Uma granada caiu bem perto de mim mas não feriu ninguém, aliás, nenhum dos meus camaradas foi ferido pelo IN. Apenas o homem do morteiro 60 se feriu na mão com o morteiro. Retirámos silenciosamente sem mais novidades e chegámos a Buba pelas 20 horas onde toda a gente esperava ordens para avançar em nosso auxílio.
Este pequeno ataque não foi pera doce para mim. Quando notei que o camarada do morteiro estava ferido(Tinha a mão rasgada por não ter utilizado o prato e o morteiro ao disparar enterrou-se na terra escorregando-lhe pela mão), passei mensagem que não havia feridos graves e dispus-me a tratá-lo para evitar a hemorragia.
O Comandante na sua pressa de se afastar da zona de perigo, mandou retirar e quando nos apercebemos estávamos a 300/400 metros dos companheiros de luta, com o IN na retaguarda o qual também não se tinha apercebido da nossa situação. Iniciámos uma fuga a alta velocidade. Valeu-os o colega do lança-rockets que se apercebeu e fez passar algumas granadas por cima de nós obrigando o IN a manter-se em defesa.
Tarde de Domingo com sorte...
Trinta e sete anos depois do regresso reencontrei o camarada Nuno Rosa. Para além da grande alegria pelo encontro, selada com um forte e comovido “aperta costelas”, surgiram logo de imediato as estórias do costume. Lembras-te daquele ataque … e daquele… das formigas que nos acordaram de noite … das malditas abelhas… etc, etc.
Algumas das estórias já estavam no sótão da memória, provavelmente cheias de pó. Outras, continuam activas a bailar no consciente, só que há pormenores que nos escaparam. Assim as estórias tomam outra dimensão, talvez mais realista e sobretudo, após este desfiar de flashes por vezes bem dolorosos, acabam por se deslocarem para o sótão, até ao descanso eterno do “guerreiro”.
Estávamos em Buba, no fim do Verão de 1969. O Joaquim Agostinho, com 26 anos devorava etapas na Volta A Portugal. Era o ciclista prodígio, o fora de série que tinha sido descoberto em Torres Vedras. Como o grosso do pessoal da CCaç 2381 era Ribatejano, não se falava de outra coisa na caserna. [Vd. vídeo no You Tube]
Era domingo, mais propriamente dia 20 de Julho. Logo após o almoço, depois de um sábado passado em patrulhamento para os lados da bolanha dos passarinhos, surge nova ordem de mobilizar para um patrulhamento para os lados de Sinchã Cherno e emboscar algures na estrada que se andava a construir até Aldeia Formosa (Quebo), muito perto do local onde cerca de um mês antes tínhamos sofrido uma emboscada, junto a um campo de minas, uma das quais roubou a perna ao Miguel. Este, logo após o acalmar do fogo levantou-se e ... descobriu que estávamos a pisar um campo, onde foram levantadas 27 minas A/P e localizados buracos, tipo campas abertas com cruzes e com papéis escritos do género: "Tugas é isto que vos espera”; “Ida para a vossa terra”, etc.
Houve uma, a primeira. A que ele descobriu, roubou-lhe uma perna. Ali muito pertinho da “curva do Vilaça” ( Quem andou por lá na época, sabe de que curva estou a falar)
Bolsa de enfermeiro às costas, cantil cheio. Os efeitos da velhice não só dava, em resultado das experiências vividas, para um redobrar de atenção e um poder de reacção e desenrasque maior, como também, em certas ocasiões para um aventureirismo exagerado com graves riscos para a pele.
Naquele dia, partimos à desportiva, bem dispostos, bem bebidos, quando muito, chateados pelo quebrar da rotina, pois em Portugal ao domingo não se trabalha.
No primeiro local seguro (?) que encontrámos, montámos tenda, quer dizer, a emboscada, e preparámo-nos para ficar ali o resto da tarde. De repente ouve-se um tiro muito perto e o ruído de algo a cair de uma árvore. Como velhinhos ficámos quietos na expectativa, apenas redobrámos de atenção, e eis que surge um dos furriéis com um magestático pato bravo, com seis/sete quilos, que o mesmo tinha abatido a tiro de G3.
A isto chama-se brincar em serviço, pelo que, levantámos de imediato a emboscada e partimos para outro sítio algures mais à frente.
Sem saber que estávamos a cair para a boca do lobo, lá nos colocámos de novo em posição de combate. Agora sim, um pouco abandalhados. O homem que levava o prato do morteiro 60 não ficou junto ao homem que o levava e o municiador do lança-roquetes trocou o lugar por mim. O Nuno com o seu colete de roquetes estava preocupado, pois faltava-lhe o municiador, o qual também trazia uma fornada de granadas. Ao comentar a sua preocupação eu respondi-lhe:
- Não te preocupes que se os turras atacarem eu minicio-te.
O IN que estava emboscado um pouco à frente, deixou-nos pousar e aproximou-se com cuidado (Creio mesmo que se avançássemos mais uns cem metros, tínhamos caído no seu campo de mira).
De repente o ambiente aqueceu com o IN a cair em cima de nós com toda o seu potencial de fogo, ao qual se segui a nossa resposta rápida. Uma das primeiras roquetadas IN foi rebentar numa árvore por cima da minha cabeça. Os seus estilhaços barreram as folhas das árvores e este vosso camarada procurou de imediato um lugar mais seguro. O roqueteiro bem olhou para trás, à minha procura, mas eu tinha voado para junto de uma árvore, mais segura.
Acabado o desafio, um autêntico Porto/ Benfica de que resultou um empate, ambos os contendores pensaram em fugir, o que foi a minha sorte.
Chega-me a informação de que há um ferido. Logo me aproximo e verifico que o homem do morteiro não hesitou em enviar umas morteiradas, colocando o cano do morteiro na terra mole, de que resultou ter ficado com um rasgão na mão, pois o morteiro ao enterrar-se pelo impacto, pela terra dentro deixou marcas. Passo a palavra de que há um ferido ligeiro e logo ali me disponho a fazer o tratamento como era o meu dever, ficando connosco outro camarada, com G3, mas sem munições.
O alferes é que não esteve com meias medidas e decidiu retirar de imediato. Acabado o tratamento, logo verifico que estávamos sozinhos. Duas hipóteses, ou ficar quietos, aguardar algum tempo e depois regressar a Buba, ou correr atrás dos camaradas que iam a 300/400 metros algures na mata!
Como já era fim de tarde, resolvemos procurar seguir os colegas, que entretanto, para mais rapidamente se afastarem, seguiam já na estrada que se avistava ao longe. Até porque ouvíamos ruídos e vozes por perto (penso que era o IN a afastar-se, caso contrário podiam ter feito ronco e apanhar-nos à mão ou enviar-nos para casa no sobretudo de madeira).
O nosso roqueteiro, o Nuno Rosa, relembrou-me agora, que na altura teve um pressentimento de que estava a ser seguido e olhou para trás. Três dos seus camaradas vinham lá longe. Então ajoelhou, colocou as últimas granadas, pois, como bom ex-comando, nunca gastava todas as munições que levava, e, bateu a mata que ficava à nossa retaguarda, impedindo o IN de qualquer veleidade.
Os outros camaradas continuaram apressadamente o seu caminho com o alferes à frente e o Furriel a sonhar com o arroz de pato, que nunca mais largou.
Assim ficaram quatro homens desarmados, no meio da mata; um morteiro sem granadas, um roqueteiro sem roquetes , um atirador sem munições e um enfermeiro sem arma (há muito que a dera a guardar ao quarteleiro) num fim de tarde domingo que toda a gente queria calmo e pacífico.
Quando em 2005 tive oportunidade de voltar à Guiné, estive muito próximo deste lugar, mas confesso que nada me veio à memória.
Obrigado, Nuno, por teres partilhado esta aventura comigo.
Quarenta anos depois, verifico que nesse dia o mundo esteve em festa. Uma festa bem diferente da que eu vivi, que nem pato tive para comemorar e só muito mais tarde soube que os americanos tinham imitado os portugueses de antanho e como, para descobrir já não havia mares, foram aos ares e encontraram a Lua.
Zé Teixeira
_________
Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 14 Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi.
Vd. último poste do Zé Teixeira > 12 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4673: O mundo é pequeno e o nosso blogue... é grande (15): Ingoré e Gandembel na feira de Custóias, Matosinhos (José Teixeira)
(**) Vd. poste de 20 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4713: Efemérides (17): 20 de Julho de 1969... O dia em que o primeiro homem pisou a Lua (Rui Felício, CCAÇ 2405, Samba Cumbera)
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1 comentário:
caro camarada
Ao ler o teu relato desse dia mau para os MAIORAIS procurei nos meus apontamentos e tentei localizar onde estaria e cheguei à conclusão que estava a fazer segurança à maldita estrada que tantos camaradas nossos levou.
Estáva-mos ambos no mesmo local só que em pontos opostos.
Eu em MAMPATÀ,Vocês em BUBA.
Um abraço
Mário Pinto
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