Contra capa do livro, com selos da Guiné da época colonial...
Guiné > Região do Oio > Porto Gole > CART 1661 1967/68) > Desembarque de tropas, na praia de Porto Gole.
Foto: © Abel Rei (2002). Direitos reservados
Abel de Jesus Carreira Rei – Entre o Paraíso e o Inferno: De Fá a Bissá: Memórias da Guiné, 196/1968. Prefácio do Ten Gen Júlio Faria de Oliveira. Edição de autor. 2002. 171 pp. (Execução gráfica: Tipografia Lousanense, Lousã. 2002).
Notas de leitura > I Parte (*)
por Luís Graça
“Esta é a história verdadeira que eu escrevi; não a história que eu gostaria de escrever”, alerta-nos o autor à guisa de preâmbulo.
Pessoalmente, confidenciou-me que foi também a história possível. Conheci o autor por ocasião do nosso IV Encontro Nacional, na Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, no passado dia 20 de Junho.
O livro é a transposição do seu diário, ou das notas que diariamente ia passando para o papel, durante a sua comissão de serviço na Guiné. Diz-me que é o livro possível porque, pelo meio, havia a figura da PIDE, que ele nunca cita, e de cuja existência nem sequer se suspeita, mas que se sabia ser poderosa e omnipresente, levando à autocensura (tanto dos aerogramas como dos próprios diários que alguns de nós, secretamente, iam escrevinhando)…
Por outro lado, há notas de rodapé, retiradas da História da Unidade, a CART 1661, a que o autor só teve acesso em 1995, através de um exemplar que lhe foi facultado por um camarada açoriano.
E quem é o autor ?
Abel Rei nasceu ainda durante a II Guerra Mundial, em 30 de Março de 1945, na freguesia de Maceira, concelho de Leiria. O pai era operário vidreiro. A família mudou-se para o concelho da Marinha Grande, O Abel começou a trabalhar bem cedo numa mercearia local, mal acabada a escola primária, aos dez anos. Aos quinze era serralheiro civil.
É bem possível que, ainda antes da tropa, o Abel Rei, nascido e criado em meio operário e, em princípio, politizado como o da Marinha Grande, tivesse já as suas dúvidas sobre a legitimidade e a viabilidade da guerra do ultramar/guerra colonial. No seu diário, porém, em nenhuma ocasião o dá a entender, a não ser quando confessa que não se despediu de ninguém, da família e dos amigos, tendo querido “sofrer sozinho: por não saber explicar o que vinha fazer, para onde, e porquê” (p. 22).
Mobilizado para a Guiné, serviu na CART 1661, que passou por Fá Mandinga, Enxalé, Bissá e Porto Gole. Partiu em 1 de Fevereiro de 1967 e regressou em 19 de Novembro de 1968. A companhia teve três comandantes: Cap Mil Art Luís Vassalo Namorado Rosa, Alf Mil Art Fernando António de Sá e Cap Art Manuel Jorge Dias de Sousa Figueiredo.
Depois da tropa, o Abel voltou a estudar, tendo completado o Curso Geral de Mecânica da Escola Industrial.
Citando o prefácio do Ten Gen Ref Júlio Faria de Oliveira, presidente da Direcção Central da Liga dos Combatentes, “ainda bem que o antigo combatente Abel Rei escreveu esta história verdadeira, a qual, em minha opinião, é extremamente interessante e duvido que aquela, que ele gostaria de ter escrito, fosse ainda melhor” (p. 17).
Em geral, são notas diárias, de um, dois ou três parágrafos, que o Abel Rei foi redigindo num caderninho que sempre o acompanhava. A primeira tem a data de 1/2/67 (partida do T/T Uíge, do cais da Rocha Conde de Óbidos) e a última data de 19/11/68 (regresso à Metrópole, também no mesmo navio).
Ao todo, são 178 registos diários, em pouco mais de 21 meses de comissão, mais de metade das quais (53,4%) correspondem aos quatro primeiros meses (de Fevereiro a Maio de 1967). De Junho até ao final do ano, escreveu apenas, em média, 4 vezes por mês… No segundo ano (Jan-Nov 1968), o ritmo da escrita, certamente por cansaço, saturação ou quebra de disciplina, baixou ainda mais: um pouco mais de 3 registos por mês, embora mais extensos, ocupando 4 dezenas de páginas (de 126 a 166) (Vd. Gráfico a seguir).
A escrita é simples, chã, cingida aos factos do quotidiano ao autor, Abel Rei, 1º Cabo da CART 1661, 3º Grupo de Combate. O autor procura ser objectivo e assertivo. As notas de rodopé confirmam, a posteriori, a veracidade e a precisão dos seus apontamentos. Em geral, procura não emitir opiniões ou falar dos seus sentimentos. Há algumas excepções quando, por exemplo, explica a razão por que decidiu escrever um diário secreto:
(…) “Quando parti de casa, com a mochila às costas e uma mala vermelha com as minhas coisas, deslocando-me a pé para o comboio que me levaria a Lisboa, e ao passar o pinhal, donde ainda avistava o meu lugar onde cresci, olhei para trás e despedi-me do meu povoado, dizendo para comigo: até breve!
“Estas foram as despedidas possíveis, pois não tive coragem de dizer absolutamente nada a ninguém antes de partir. Quis sofrer sozinho: por não saber explicar o que vinha fazer, para onde, e porquê ?
“ Espero apagar a minha solidão, escrevendo o meu dia a dia enquanto Deus me der forças e saúde para tal” (4/5/1967 – Navio Uíge, pp. 21/22).
É pena a edição do livro não ter tido revisão de texto. Para além de alguns erros de ortografia e gramática, a pontuação poderia e deveria ser corrigida e melhorada.
Um título enganador
O inferno? Seguramente, para o Abel e os seus camaradas, o inferno foi Porto Gole, Bissá, Enxalé, pela dureza das condições de vida, nos dias de paz e nos dias de guerra… Paraíso ? Não sei se o autor se refere à breve estadia, no início da comissão, em Fá Mandinga, onde a guerra só se antevia ou pressentia, ao longe… Há também momentos, de alguma felicidade, passados em Porto Gole, à beira rio, ajudando a esquecer as praias atlânticas da infância e da adolescência do autor (Praia da Vieira, São Pedro de Moel…).
A 7 de Fevereiro de 1967 o autor segue com os seus camaradas da CART 1661, a caminho de Fá (Mandinga), em LDG, rio Geba acima… até Bambadinca. Chegados na véspera a Bissau, os militares foram directamente transbordados para a LDG, sem terem posto um pé em terra firme.
O autor escreve que se levantaram às 3 da manhã. Chegaram a Bambadinca às 13h. Dali seguiram em coluna auto para Fá (Mandinga). Comeram a primeira refeição quente às 10h das noite. Parece, pois, poder concluir-se que a viagem da LGD, até Bambadinca, terá levado no mínimo 6 a 7 horas. No meu tempo (1969/71), já não tenho ideia das LDG subirem o Geba Estreito até Bambadinca. Em geral, ficavam no Xime, donde se seguia em coluna auto para as todas as principais localidades da zona leste (Bambadinca, Bafatá, Nova Lamego, Piche, Contuboel, Galomaro, etc.).
Em Fá (que tem "a melhor água da província") não se vê a guerra (de perto), mas “sonha-se com ela” (12/2/67).
Chega, entretanto, o primeiro correio da família e os primeiros jornais da terra (16/2/67). A 18, começa o treino operacional da CART 1661 cujos grupos de combate seguem para o Xime, onde está sediada a CCAÇ 1550 (subunidade que esteve em Farim e Xime, de 20/4/66 a 17/1/68).
Sobre a estrada Xime-Bambadinca, escreve o autor:
“O percurso é péssimo e perigoso. Costuma ser muitas vezes armadilhado com minas pelo inimigo, mesmo perto do quartel, contando-se já vários mortos e viaturas destruídas. O chão é picado cuidadosamente em todo o percurso e todos os dias” (20/2/67, p. 30). Aqui, no hall de entrada da Zona Leste, eis a guerra que já se sente ou pressente…
A 23/2/67, o Abel Rei tem o seu primeiro contacto com a guerra. A tabanca fula, em autodefesa, de Dembataco (minha velha conhecida…) tinha sido atacada e incendiadas algumas moranças. Há dois mortos entre a população: uma mulher e uma bajuda. O ataque foi repelido, apenas com mausers, que estavam distribuídas à população civil e às milícias (23/2/67).
A 24/2/67, o 3º Gr Comb, do Abel Rei, segue para a Enxalé, de LDM (Lancha de Desembarque Média). Está aqui aquartelada a CCAÇ 1439, madeirense (que passará por Xime, Bambadinca, Enxalé e Fá, durante a sua comissão, de 2/8/65 a 18/4/67). No dia seguinte, vai até Porto Gole, buscar “homens vindos de uma operação, que tinha começado oito dias antes, nas matas do Sará, e onde estiveram com mais companhias, batendo a zona, que é povoada de forte terrorismo” (sic)…
(É curioso, o autor nunca se refere explicitamente ao PAIGC, não usa sequer termos como guerrilha ou guerrilheiros, fala explicitamente em inimigo, elementos inimigos, turras, terroristas, de acordo com a designação da época, em que era comandante-chefe e governador geral da Guiné o Gen Arnaldo Schulz, um militar que não estava preparado para a guerra de guerrilha, dando primazia à reconquista e controlo do território em vez da luta político-militar e a acção psicossocial junto das populações, sob duplo controlo ou vivendo em áreas que o PAIGC considerava como “libertadas”).
Ficamos a saber que nesta mata [de Sará] foi capturado “um importante hospital militar” (…), “composto do mais moderno equipamemnto, e duma variedade extraordinária de medicamentos” (25/2/67, p. 34).
O baptismo de fogo
Um mês depois, temos as primeiras referências à comida que se come na guerra: ”Comemos uma mal confeccionada refeição, de arroz com ervilhas e sardinhas de conversa, regada com o já célebre vinho baptizado” (Enxalé, 4/3/67)… Mas também à água, o precioso líquido que costuma ser bebido “com comprimidos e filtrado”… Desta vez, depois de uma duríssima operação de Porto Gole (partida às 3h da madrugada) a Bissá (chegada às 7h30) com a missão de comprar gado aos nativos, com regresso a Enxalé, às 16h:
“A água (…) bebeu-se por todos, sofregamente, sem olhar a limpeza e origem. Bebia-se todo o líquido que nos aparecia, quer nas poças do terreno, ou nos poucos cursos de água, fosse ele da cor que fosse!” (5/3/67, pp. 39/40).
De regresso a Fá (“a capital do sossego”), o 1º Cabo Abel Rei recebe o primeiro patacão, 613 pesos da Guiné, “menos cento e tal que o vencimento normal” (8/3/67, p. 42).
O dia 12 de Março de 1967 foi “histórico” para o Abel, dia “em que as ouvi cantar por cima da minha cabeça”… (‘As’ são as balas do inimigo)… Foi o seu baptismo de fogo, na região do Poindon, no âmbito da Op Granada, operação conjunta com a CART 1550… “As NT foram emboscadas duas vezes pelo IN, sem consequências” (p. 46).
Poindon (ou Poidon) tornou-se, no Sector L1 (Bambadinca), um nome mítico, para as tropas portugueses: era inevitável haver contacto com o IN sempre que se lá ia… Na época, ainda havia o destacamento de Ponta do Inglês, na Foz do Corubal, posteriormente abandonado (creio que em Novembro de 1968, já sob o consulado de Spínola, que tomaria posse, em 2 de Maio desse ano, do cargo de Com-Chefe e Governador-Geral).
Ao fim de mês e meio de Guiné, o Abel começa a queixar-se dos primeiros problemas de saúde: é-lhe extraída uma matacanha da sola do pé, “tendo sofrido intensas dores, ao ponto de trincar a boina” (14/3/67, p. 47). Três dias depois queixava-se dos intestinos e dos dentes. Fica a aguardar vez para uma consulta externa no Hospital Militar de Bissau… “Assim éramos enganados e mantidos como operacionais (…). Estas consultas não chegaram jamais a ser efectivadas” (…) (17/3/67, pp. 48/49). O Abel já ter que aprender a viver com as mazelas do corpo e da alma…
Op Guindaste, uma atribulada ida ao Buruntoni (Xime)
De 19 a 21 de Março de 1967, há uma detalhada referência a uma operação ao Buruntoni (e não Burontoni), a sul do Xime (pp. 49-53).
Eis o que diz, em resumo, a história da unidade: A 19, a companhia realiza, em conjunto com a CCAÇ 1550, a Op Guindaste na zona do Buruntoni. “Destruída uma casa de mato, feitos 8 mortos confirmados e capturado o seguinte armamento: 1 pistola-metralhadora PPHS, 1 pistola COSKA, 3 carregores vários, centenas de munições e outros materiais”… Regresso a Fá em 21…
Vejamos o que escreveu o 1º Cabo Abel Rei, no seu diário:
Era domingo de Ramos, o 19 de Março de 1967. O pessoal levantou-se cedo, tomou um “ligeiro pequeno almoço”, seguindo depois em viatura auto para Bambadinca e estrada do Xitole. Alguns quilómetros depois, seguiram a pé, “durante mais de duas horas”, até Dembataco, a aldeia atacada em 23/2/67. “Lá almoçámos ração de combate (…). O apetite era pouco, começando desde esse momento a ser alimentado a água” (p. 50).
À uma da tarde, as NT partem para o objectivo, “por intermináveis picadas da mata, sob um calor escaldante, com a sede e o cansaço a apertar” (….). Fazem uma paragem às 6h30, já noite. Pernoitam no local. Retomam, ao nascer do dia, a marcha para o Buruntoni, aonde chegam por volta das 11h. A água já se tinha acabado no dia anterior…
Às 11 e picos, há um contacto com “elementos inimigos, numa casa de mato” (…), “causando-lhes mortos (oito confirmados), e fugindo os restantes apavorados pela nossa chegada inesperada”... Foi capturado diverso material (incluindo “uma pistola metralhadora pesada e uma ligeira”).
Segue-se a descrição da retirada, a 20 de Março de 1967:
“Retirámos, deixando tudo em chamas, em passo acelerado, tendo alguns desmaiado, em parte devido ao calor, mas também por falta de água, contando-se entre eles o nosso capitão e um sargento.
“Quando tornámos a passar pelo riacho, que sabíamos existir, parecíamos que estávamos loucos, procurando a água com ânsia, mesmo com ela quase preta, do calcar dos pés. Lá estivemos mais de uma hora, para abalarmos depois, bastante mais frescos, a caminho de Dembataco, aonde chegámos às sete da noite” (p. 51).
Nova corrida (“louca”) para o abastecimento de água e uma clara prova de solidariedade entre camaradas, para mais oriundos da mesma terra: “(…) eram sempre duas rações que tinha de arranjar, a minha e a do meu colega Saraiva, dos Moínhos de Carvide [, freguesia de Monte Redondo, concelho de Leiria], que vinha completamente abatido, e o qual ajudei nas últimas horas de marcha, amparando-o e trazendo o seu equipamento” (p. 51).
Na estrada Xitole-Bambadinca (provavelmente próximo do sítio onde mais tarde, em Maio de 1968, a CART 2339 do Torcato Mendonça e do Carlos Marques dos Santos irá erguer o campo fortificado de Mansambo, segundo a designaçºão do PAIGC), era esperado haver viaturas para levar o pessoal no regresso aos aquartelamentos, o que não aconteceu:
“Partimos aos tombos até Bambadinca, onde chegámos à meia-noite, e foram só os teimosos do meu grupo de combate, os outros lá ficaram a aguardar as viaturas”… Lá chegados, voltaram atrás, “a fazer segurança às viaturas, que iam buscar os nossos colegas, que entretanto se tinham posto a caminho por ser perigosa a sua permanência no local onde ficaram” (p. 52). Chegaram por fim a Bambadinca, já no dia seguinte, 22, à 1 da manhã…
Comentário do autor:
“Esta foi sem dúvida uma prova de resistência, superior às minhas capacidades, de que aguentei bem, muito embora na parte final tivesse que acabar estourado fisicamente, pois foram mais de dezassete horas consecutivas, em andamento sob um escaldante clima tropical, no qual vi cair homens mais fortes do que eu” (p. 52)…
Segundo o Abel Rei, não houve apoio aéreo, devido a problemas de transmissões, tornando por isso a Op Guindaste ainda mais penosa para as NT.
Fá, o repouso do guerreiro
De novo em Fá, o autor saboreia o descanso do guerreiro:
“ (…) A ventoínha, mesmo por cima da minha cabeça, gira, dando voltas sem fim, refrescando o ambiente e alimentando-o de mosquitos. O tempo está fresco, lá fora o luar lembra, juntamente com o firmamento celeste, o nosso luar de Agosto: ah!, como saberia bem recordar uma chegada familiar, com as alfaias às costas, duma fresca e saudável campina” (23/3/67, p. 54).
Ficamos a saber que em Fá Mandinga há uma pequena biblioteca, e que o autor tem bons hábitos de leitura:
“Para melhor passar o tempo, levantei alguns livros da nossa pequena biblioteca – eu, além dum dicionário e um prontuário de Português, trouxe mais de uma dúzia de livros, os quais já devorei” (p. 54).
Durante a guerra, Fá Mandinga funcionou como uma espécie de Centro de Instrução Militar (foilá que se formou a 1ª Companhia de Comandos Africana, no meu tempo), a par de Contuboel e de Bolama, três localidades durante muito tempo poupadas pela guerra. Em Fá havia, antes do início guerra, uma estação de desenvolvimento agrário onde se dizia (ao que parece, erradamente) ter trabalhado o Eng. Agrónomo Amílcar Cabral.
Em Porto Gole, com saudades do mar
Dia 26 de Março de 1967, “domingo e Páscoa”, a CART 1661 parte para o Enxalé onde vai render a CCAÇ 1439 que terminava a sua comissão (2/8/65 – 18/4/67). Uma secção do 2º Gr Comb, a que pertence o Abel segue, por seu turno, para Porto Gole. Da guarnição faz parte também o Pel Caç Nat 54. O 3º Gr Comb ocupa, por sua vez, o destacamento de Missirá.
Em Porto Gole, o Abel tem a ilusão de reviver o mar da sua terra: “Pela noite, antes de me ir deitar, fui dar uma vista de olhos pela margem do Rio Geba, revivendo ilusoriamente o nosso já saudoso mar” (27/3/67, Porto Gole, p. 56). Um mês depois arranja coragem para tomar o seu primeiro banho no Rio Geba, matando “saudades do mar” (sic) (1/5/67, p. 78).
Há também pequenos apontamentos sobre o quotidiano da população local, balanta, que se dedica, com muita destreza, à recolha de crustáceos na margem do rio:
“As mulheres nativas, a poucos metros, apanham os chamados ‘cacres’ (espécie de caranguejos) (…), existentes nas margens lodosas. São aos milhares, e ao sentirem aproximar-se alguém, correm a refugiar-se , em buracos feitos por eles, e onde se abrigam das marés. As mulheres, de tanga, andam de um lado para o outro, enterradas em lama, quase até ao ventre, e enfiando as mãos no lodo até chegarem ao fundo dos buracos, agarrando-os, aos quais partem um membro e vão pondo em tigelas” (5/5/67, Porto Gole, pp. 80/81)…
Em Porto Gole, onde há alguma abundância de peixe, o autor terá ainda oportunidade de conhecer o fenómeno do macaréu no Rio Gebal, o qual “chega a virar pequenas embarcações de mercadorias, que os nativos movimentam ao longo do seu curso, e que, ao deslocar-se para a nascente, arrasta um enorme ruído das águas revoltas” (20/4/67, p. 75).
A 31 de Março, a CART 1661 actuou conjuntamente com a CCAÇ 1589, na Op Rorodes, na zona de Mantém. Houve contacto com o IN, mas não se registaram baixas. Regresso a 2 de Abril, também dramático, com homens esgotados e desidratados, transportados em maca…
“Desde que vou a operações, foi a primeira vez que eu fiquei exausto, sem forças nas pernas, e com a garganta seca! Como não podíamos mais, só nos restou esperar e aguardar, até que finalmente lá chegou uma viatura com água, que nos levou até Porto Gole, onde chegámos às duas da tarde” (p. 61)….
A CCAÇ 1589 pertencia ao BCAÇ 1894 (tendo passado, de 30/7/66 a 9/5/68, por Bissau, Fá, Nova Lamego, Fá, Madina do Boé, Bissau).
(Continua)
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Nota de L.G.:
(*) V d. último poste desta série > 2 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4766: Notas de leitura (13): "Os Anos da Guerra Colonial" e as suas incorrecções (António Dâmaso)
O livro é a transposição do seu diário, ou das notas que diariamente ia passando para o papel, durante a sua comissão de serviço na Guiné. Diz-me que é o livro possível porque, pelo meio, havia a figura da PIDE, que ele nunca cita, e de cuja existência nem sequer se suspeita, mas que se sabia ser poderosa e omnipresente, levando à autocensura (tanto dos aerogramas como dos próprios diários que alguns de nós, secretamente, iam escrevinhando)…
Por outro lado, há notas de rodapé, retiradas da História da Unidade, a CART 1661, a que o autor só teve acesso em 1995, através de um exemplar que lhe foi facultado por um camarada açoriano.
E quem é o autor ?
Abel Rei nasceu ainda durante a II Guerra Mundial, em 30 de Março de 1945, na freguesia de Maceira, concelho de Leiria. O pai era operário vidreiro. A família mudou-se para o concelho da Marinha Grande, O Abel começou a trabalhar bem cedo numa mercearia local, mal acabada a escola primária, aos dez anos. Aos quinze era serralheiro civil.
É bem possível que, ainda antes da tropa, o Abel Rei, nascido e criado em meio operário e, em princípio, politizado como o da Marinha Grande, tivesse já as suas dúvidas sobre a legitimidade e a viabilidade da guerra do ultramar/guerra colonial. No seu diário, porém, em nenhuma ocasião o dá a entender, a não ser quando confessa que não se despediu de ninguém, da família e dos amigos, tendo querido “sofrer sozinho: por não saber explicar o que vinha fazer, para onde, e porquê” (p. 22).
Mobilizado para a Guiné, serviu na CART 1661, que passou por Fá Mandinga, Enxalé, Bissá e Porto Gole. Partiu em 1 de Fevereiro de 1967 e regressou em 19 de Novembro de 1968. A companhia teve três comandantes: Cap Mil Art Luís Vassalo Namorado Rosa, Alf Mil Art Fernando António de Sá e Cap Art Manuel Jorge Dias de Sousa Figueiredo.
Depois da tropa, o Abel voltou a estudar, tendo completado o Curso Geral de Mecânica da Escola Industrial.
Citando o prefácio do Ten Gen Ref Júlio Faria de Oliveira, presidente da Direcção Central da Liga dos Combatentes, “ainda bem que o antigo combatente Abel Rei escreveu esta história verdadeira, a qual, em minha opinião, é extremamente interessante e duvido que aquela, que ele gostaria de ter escrito, fosse ainda melhor” (p. 17).
Em geral, são notas diárias, de um, dois ou três parágrafos, que o Abel Rei foi redigindo num caderninho que sempre o acompanhava. A primeira tem a data de 1/2/67 (partida do T/T Uíge, do cais da Rocha Conde de Óbidos) e a última data de 19/11/68 (regresso à Metrópole, também no mesmo navio).
Ao todo, são 178 registos diários, em pouco mais de 21 meses de comissão, mais de metade das quais (53,4%) correspondem aos quatro primeiros meses (de Fevereiro a Maio de 1967). De Junho até ao final do ano, escreveu apenas, em média, 4 vezes por mês… No segundo ano (Jan-Nov 1968), o ritmo da escrita, certamente por cansaço, saturação ou quebra de disciplina, baixou ainda mais: um pouco mais de 3 registos por mês, embora mais extensos, ocupando 4 dezenas de páginas (de 126 a 166) (Vd. Gráfico a seguir).
A escrita é simples, chã, cingida aos factos do quotidiano ao autor, Abel Rei, 1º Cabo da CART 1661, 3º Grupo de Combate. O autor procura ser objectivo e assertivo. As notas de rodopé confirmam, a posteriori, a veracidade e a precisão dos seus apontamentos. Em geral, procura não emitir opiniões ou falar dos seus sentimentos. Há algumas excepções quando, por exemplo, explica a razão por que decidiu escrever um diário secreto:
(…) “Quando parti de casa, com a mochila às costas e uma mala vermelha com as minhas coisas, deslocando-me a pé para o comboio que me levaria a Lisboa, e ao passar o pinhal, donde ainda avistava o meu lugar onde cresci, olhei para trás e despedi-me do meu povoado, dizendo para comigo: até breve!
“Estas foram as despedidas possíveis, pois não tive coragem de dizer absolutamente nada a ninguém antes de partir. Quis sofrer sozinho: por não saber explicar o que vinha fazer, para onde, e porquê ?
“ Espero apagar a minha solidão, escrevendo o meu dia a dia enquanto Deus me der forças e saúde para tal” (4/5/1967 – Navio Uíge, pp. 21/22).
É pena a edição do livro não ter tido revisão de texto. Para além de alguns erros de ortografia e gramática, a pontuação poderia e deveria ser corrigida e melhorada.
Um título enganador
O inferno? Seguramente, para o Abel e os seus camaradas, o inferno foi Porto Gole, Bissá, Enxalé, pela dureza das condições de vida, nos dias de paz e nos dias de guerra… Paraíso ? Não sei se o autor se refere à breve estadia, no início da comissão, em Fá Mandinga, onde a guerra só se antevia ou pressentia, ao longe… Há também momentos, de alguma felicidade, passados em Porto Gole, à beira rio, ajudando a esquecer as praias atlânticas da infância e da adolescência do autor (Praia da Vieira, São Pedro de Moel…).
A 7 de Fevereiro de 1967 o autor segue com os seus camaradas da CART 1661, a caminho de Fá (Mandinga), em LDG, rio Geba acima… até Bambadinca. Chegados na véspera a Bissau, os militares foram directamente transbordados para a LDG, sem terem posto um pé em terra firme.
O autor escreve que se levantaram às 3 da manhã. Chegaram a Bambadinca às 13h. Dali seguiram em coluna auto para Fá (Mandinga). Comeram a primeira refeição quente às 10h das noite. Parece, pois, poder concluir-se que a viagem da LGD, até Bambadinca, terá levado no mínimo 6 a 7 horas. No meu tempo (1969/71), já não tenho ideia das LDG subirem o Geba Estreito até Bambadinca. Em geral, ficavam no Xime, donde se seguia em coluna auto para as todas as principais localidades da zona leste (Bambadinca, Bafatá, Nova Lamego, Piche, Contuboel, Galomaro, etc.).
Em Fá (que tem "a melhor água da província") não se vê a guerra (de perto), mas “sonha-se com ela” (12/2/67).
Chega, entretanto, o primeiro correio da família e os primeiros jornais da terra (16/2/67). A 18, começa o treino operacional da CART 1661 cujos grupos de combate seguem para o Xime, onde está sediada a CCAÇ 1550 (subunidade que esteve em Farim e Xime, de 20/4/66 a 17/1/68).
Sobre a estrada Xime-Bambadinca, escreve o autor:
“O percurso é péssimo e perigoso. Costuma ser muitas vezes armadilhado com minas pelo inimigo, mesmo perto do quartel, contando-se já vários mortos e viaturas destruídas. O chão é picado cuidadosamente em todo o percurso e todos os dias” (20/2/67, p. 30). Aqui, no hall de entrada da Zona Leste, eis a guerra que já se sente ou pressente…
A 23/2/67, o Abel Rei tem o seu primeiro contacto com a guerra. A tabanca fula, em autodefesa, de Dembataco (minha velha conhecida…) tinha sido atacada e incendiadas algumas moranças. Há dois mortos entre a população: uma mulher e uma bajuda. O ataque foi repelido, apenas com mausers, que estavam distribuídas à população civil e às milícias (23/2/67).
A 24/2/67, o 3º Gr Comb, do Abel Rei, segue para a Enxalé, de LDM (Lancha de Desembarque Média). Está aqui aquartelada a CCAÇ 1439, madeirense (que passará por Xime, Bambadinca, Enxalé e Fá, durante a sua comissão, de 2/8/65 a 18/4/67). No dia seguinte, vai até Porto Gole, buscar “homens vindos de uma operação, que tinha começado oito dias antes, nas matas do Sará, e onde estiveram com mais companhias, batendo a zona, que é povoada de forte terrorismo” (sic)…
(É curioso, o autor nunca se refere explicitamente ao PAIGC, não usa sequer termos como guerrilha ou guerrilheiros, fala explicitamente em inimigo, elementos inimigos, turras, terroristas, de acordo com a designação da época, em que era comandante-chefe e governador geral da Guiné o Gen Arnaldo Schulz, um militar que não estava preparado para a guerra de guerrilha, dando primazia à reconquista e controlo do território em vez da luta político-militar e a acção psicossocial junto das populações, sob duplo controlo ou vivendo em áreas que o PAIGC considerava como “libertadas”).
Ficamos a saber que nesta mata [de Sará] foi capturado “um importante hospital militar” (…), “composto do mais moderno equipamemnto, e duma variedade extraordinária de medicamentos” (25/2/67, p. 34).
O baptismo de fogo
Um mês depois, temos as primeiras referências à comida que se come na guerra: ”Comemos uma mal confeccionada refeição, de arroz com ervilhas e sardinhas de conversa, regada com o já célebre vinho baptizado” (Enxalé, 4/3/67)… Mas também à água, o precioso líquido que costuma ser bebido “com comprimidos e filtrado”… Desta vez, depois de uma duríssima operação de Porto Gole (partida às 3h da madrugada) a Bissá (chegada às 7h30) com a missão de comprar gado aos nativos, com regresso a Enxalé, às 16h:
“A água (…) bebeu-se por todos, sofregamente, sem olhar a limpeza e origem. Bebia-se todo o líquido que nos aparecia, quer nas poças do terreno, ou nos poucos cursos de água, fosse ele da cor que fosse!” (5/3/67, pp. 39/40).
De regresso a Fá (“a capital do sossego”), o 1º Cabo Abel Rei recebe o primeiro patacão, 613 pesos da Guiné, “menos cento e tal que o vencimento normal” (8/3/67, p. 42).
O dia 12 de Março de 1967 foi “histórico” para o Abel, dia “em que as ouvi cantar por cima da minha cabeça”… (‘As’ são as balas do inimigo)… Foi o seu baptismo de fogo, na região do Poindon, no âmbito da Op Granada, operação conjunta com a CART 1550… “As NT foram emboscadas duas vezes pelo IN, sem consequências” (p. 46).
Poindon (ou Poidon) tornou-se, no Sector L1 (Bambadinca), um nome mítico, para as tropas portugueses: era inevitável haver contacto com o IN sempre que se lá ia… Na época, ainda havia o destacamento de Ponta do Inglês, na Foz do Corubal, posteriormente abandonado (creio que em Novembro de 1968, já sob o consulado de Spínola, que tomaria posse, em 2 de Maio desse ano, do cargo de Com-Chefe e Governador-Geral).
Ao fim de mês e meio de Guiné, o Abel começa a queixar-se dos primeiros problemas de saúde: é-lhe extraída uma matacanha da sola do pé, “tendo sofrido intensas dores, ao ponto de trincar a boina” (14/3/67, p. 47). Três dias depois queixava-se dos intestinos e dos dentes. Fica a aguardar vez para uma consulta externa no Hospital Militar de Bissau… “Assim éramos enganados e mantidos como operacionais (…). Estas consultas não chegaram jamais a ser efectivadas” (…) (17/3/67, pp. 48/49). O Abel já ter que aprender a viver com as mazelas do corpo e da alma…
Op Guindaste, uma atribulada ida ao Buruntoni (Xime)
De 19 a 21 de Março de 1967, há uma detalhada referência a uma operação ao Buruntoni (e não Burontoni), a sul do Xime (pp. 49-53).
Eis o que diz, em resumo, a história da unidade: A 19, a companhia realiza, em conjunto com a CCAÇ 1550, a Op Guindaste na zona do Buruntoni. “Destruída uma casa de mato, feitos 8 mortos confirmados e capturado o seguinte armamento: 1 pistola-metralhadora PPHS, 1 pistola COSKA, 3 carregores vários, centenas de munições e outros materiais”… Regresso a Fá em 21…
Vejamos o que escreveu o 1º Cabo Abel Rei, no seu diário:
Era domingo de Ramos, o 19 de Março de 1967. O pessoal levantou-se cedo, tomou um “ligeiro pequeno almoço”, seguindo depois em viatura auto para Bambadinca e estrada do Xitole. Alguns quilómetros depois, seguiram a pé, “durante mais de duas horas”, até Dembataco, a aldeia atacada em 23/2/67. “Lá almoçámos ração de combate (…). O apetite era pouco, começando desde esse momento a ser alimentado a água” (p. 50).
À uma da tarde, as NT partem para o objectivo, “por intermináveis picadas da mata, sob um calor escaldante, com a sede e o cansaço a apertar” (….). Fazem uma paragem às 6h30, já noite. Pernoitam no local. Retomam, ao nascer do dia, a marcha para o Buruntoni, aonde chegam por volta das 11h. A água já se tinha acabado no dia anterior…
Às 11 e picos, há um contacto com “elementos inimigos, numa casa de mato” (…), “causando-lhes mortos (oito confirmados), e fugindo os restantes apavorados pela nossa chegada inesperada”... Foi capturado diverso material (incluindo “uma pistola metralhadora pesada e uma ligeira”).
Segue-se a descrição da retirada, a 20 de Março de 1967:
“Retirámos, deixando tudo em chamas, em passo acelerado, tendo alguns desmaiado, em parte devido ao calor, mas também por falta de água, contando-se entre eles o nosso capitão e um sargento.
“Quando tornámos a passar pelo riacho, que sabíamos existir, parecíamos que estávamos loucos, procurando a água com ânsia, mesmo com ela quase preta, do calcar dos pés. Lá estivemos mais de uma hora, para abalarmos depois, bastante mais frescos, a caminho de Dembataco, aonde chegámos às sete da noite” (p. 51).
Nova corrida (“louca”) para o abastecimento de água e uma clara prova de solidariedade entre camaradas, para mais oriundos da mesma terra: “(…) eram sempre duas rações que tinha de arranjar, a minha e a do meu colega Saraiva, dos Moínhos de Carvide [, freguesia de Monte Redondo, concelho de Leiria], que vinha completamente abatido, e o qual ajudei nas últimas horas de marcha, amparando-o e trazendo o seu equipamento” (p. 51).
Na estrada Xitole-Bambadinca (provavelmente próximo do sítio onde mais tarde, em Maio de 1968, a CART 2339 do Torcato Mendonça e do Carlos Marques dos Santos irá erguer o campo fortificado de Mansambo, segundo a designaçºão do PAIGC), era esperado haver viaturas para levar o pessoal no regresso aos aquartelamentos, o que não aconteceu:
“Partimos aos tombos até Bambadinca, onde chegámos à meia-noite, e foram só os teimosos do meu grupo de combate, os outros lá ficaram a aguardar as viaturas”… Lá chegados, voltaram atrás, “a fazer segurança às viaturas, que iam buscar os nossos colegas, que entretanto se tinham posto a caminho por ser perigosa a sua permanência no local onde ficaram” (p. 52). Chegaram por fim a Bambadinca, já no dia seguinte, 22, à 1 da manhã…
Comentário do autor:
“Esta foi sem dúvida uma prova de resistência, superior às minhas capacidades, de que aguentei bem, muito embora na parte final tivesse que acabar estourado fisicamente, pois foram mais de dezassete horas consecutivas, em andamento sob um escaldante clima tropical, no qual vi cair homens mais fortes do que eu” (p. 52)…
Segundo o Abel Rei, não houve apoio aéreo, devido a problemas de transmissões, tornando por isso a Op Guindaste ainda mais penosa para as NT.
Fá, o repouso do guerreiro
De novo em Fá, o autor saboreia o descanso do guerreiro:
“ (…) A ventoínha, mesmo por cima da minha cabeça, gira, dando voltas sem fim, refrescando o ambiente e alimentando-o de mosquitos. O tempo está fresco, lá fora o luar lembra, juntamente com o firmamento celeste, o nosso luar de Agosto: ah!, como saberia bem recordar uma chegada familiar, com as alfaias às costas, duma fresca e saudável campina” (23/3/67, p. 54).
Ficamos a saber que em Fá Mandinga há uma pequena biblioteca, e que o autor tem bons hábitos de leitura:
“Para melhor passar o tempo, levantei alguns livros da nossa pequena biblioteca – eu, além dum dicionário e um prontuário de Português, trouxe mais de uma dúzia de livros, os quais já devorei” (p. 54).
Durante a guerra, Fá Mandinga funcionou como uma espécie de Centro de Instrução Militar (foilá que se formou a 1ª Companhia de Comandos Africana, no meu tempo), a par de Contuboel e de Bolama, três localidades durante muito tempo poupadas pela guerra. Em Fá havia, antes do início guerra, uma estação de desenvolvimento agrário onde se dizia (ao que parece, erradamente) ter trabalhado o Eng. Agrónomo Amílcar Cabral.
Em Porto Gole, com saudades do mar
Dia 26 de Março de 1967, “domingo e Páscoa”, a CART 1661 parte para o Enxalé onde vai render a CCAÇ 1439 que terminava a sua comissão (2/8/65 – 18/4/67). Uma secção do 2º Gr Comb, a que pertence o Abel segue, por seu turno, para Porto Gole. Da guarnição faz parte também o Pel Caç Nat 54. O 3º Gr Comb ocupa, por sua vez, o destacamento de Missirá.
Em Porto Gole, o Abel tem a ilusão de reviver o mar da sua terra: “Pela noite, antes de me ir deitar, fui dar uma vista de olhos pela margem do Rio Geba, revivendo ilusoriamente o nosso já saudoso mar” (27/3/67, Porto Gole, p. 56). Um mês depois arranja coragem para tomar o seu primeiro banho no Rio Geba, matando “saudades do mar” (sic) (1/5/67, p. 78).
Há também pequenos apontamentos sobre o quotidiano da população local, balanta, que se dedica, com muita destreza, à recolha de crustáceos na margem do rio:
“As mulheres nativas, a poucos metros, apanham os chamados ‘cacres’ (espécie de caranguejos) (…), existentes nas margens lodosas. São aos milhares, e ao sentirem aproximar-se alguém, correm a refugiar-se , em buracos feitos por eles, e onde se abrigam das marés. As mulheres, de tanga, andam de um lado para o outro, enterradas em lama, quase até ao ventre, e enfiando as mãos no lodo até chegarem ao fundo dos buracos, agarrando-os, aos quais partem um membro e vão pondo em tigelas” (5/5/67, Porto Gole, pp. 80/81)…
Em Porto Gole, onde há alguma abundância de peixe, o autor terá ainda oportunidade de conhecer o fenómeno do macaréu no Rio Gebal, o qual “chega a virar pequenas embarcações de mercadorias, que os nativos movimentam ao longo do seu curso, e que, ao deslocar-se para a nascente, arrasta um enorme ruído das águas revoltas” (20/4/67, p. 75).
A 31 de Março, a CART 1661 actuou conjuntamente com a CCAÇ 1589, na Op Rorodes, na zona de Mantém. Houve contacto com o IN, mas não se registaram baixas. Regresso a 2 de Abril, também dramático, com homens esgotados e desidratados, transportados em maca…
“Desde que vou a operações, foi a primeira vez que eu fiquei exausto, sem forças nas pernas, e com a garganta seca! Como não podíamos mais, só nos restou esperar e aguardar, até que finalmente lá chegou uma viatura com água, que nos levou até Porto Gole, onde chegámos às duas da tarde” (p. 61)….
A CCAÇ 1589 pertencia ao BCAÇ 1894 (tendo passado, de 30/7/66 a 9/5/68, por Bissau, Fá, Nova Lamego, Fá, Madina do Boé, Bissau).
(Continua)
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Nota de L.G.:
(*) V d. último poste desta série > 2 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4766: Notas de leitura (13): "Os Anos da Guerra Colonial" e as suas incorrecções (António Dâmaso)
4 comentários:
Não foi em Porto Gole que um dia a secção que foi à água deixou um garrafão que alguem tinha 'recebido da Metrópole' de molho para refrescar, para um petisco no dia seguinte e no dia seguinte, em vez do garrafão, estava lá um cabrito amarrado com um bilhetinho a agradecer, tendo-se assim dado assim início a uma prolongada troca de 'cortesias'?
Salvador Nogueira
É uma maravilha de história, mesmo que inverosímil... LG
Gostei de ler estas "notas de leitura" sobre o livro do Abel Rei.
Infelizmente com a "confusão" no encontro em Monte Real acabei por nada combinar com ele, julgo eu, mas ainda temos tempo visto que vivemos na mesma terra.
Curiosamente também eu nasci na Maceira, porque era a única casa de saúde da zona de Monte Real, e a minha mãe já ia no nono filho.
Já agora segundo sei meu caro camarigo Abel Rei, Moinhos de Carvide pertence à freguesia de Carvide, concelho de Leiria.
Junto ao Manssambo para dentro da mata em direcção ao Corubal numa operação logo no inicio da comissão houve necessidade de abastecimento de água por helicóptero.
O pessoal parecia doido, quando viu água. Só a muito custo foi possivel por ordem "na tropa".
Abraço camarigo para ti Abel Rei
Caro Amigo Abel Rei
Estive a ler o teu Poste 4815 e posso dizer-te que o pessoal que foste buscar a Porto Gole vindo de uma operação à mata do Saraoul era a minha Companhia de Caçadores 1589 comigo incluído.Pelo que relatas julgo que estavas no Aquartelamento de Fá Mandinga (de Cima ) que possuía um campo de Futebol onde ia-mos jogar com o pessoal de cima.Quanto á estação Agrária de que falas ela não existia. O que existia em Fá Mandinga (de Baixo ) era o material armazenado pelo Amílcar Cabral para a montagem da mesma. Estava guardado num dos 4 barracões (o 2º do Lado esquerdo de quem entrava no aquartelamento ).
Em Fá de baixo não havia biblioteca.
Quanto á Operação Rorodes já não foi a CCaç 1589 que acompanhou pois nessa data já se encontrava em Nova Lamego a aguardar ordem para avançar para Madina do Boé. A Páscoa desse ano foi passada em Nova Lamego.Ora como tu dizes a Páscoa foi a 26 de Março. Mas 40 anos depois é natural estes pequenos deslizes. A mim também me acontece. Quanto ao famoso Hospital
que foi capturado ao IN só se ouviu falar pois das Companhias que foram de Porto Gole ninguém o viu.
Um Abraço
Armandino Alves
Ex-1º Cabo Enfº CCaç 1589
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