domingo, 21 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5862: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (13): Um buraco no inferno da Mata dos Madeiros

1. Mensagem de José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 5 de Fevereiro de 2010:

Caro amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais uma pedaço do meu roteiro por terras da Guiné.

Os meus votos de boa saúde vão para ti e para os nossos camaradas, com um abraço amigo
José Câmara


Um buraco no inferno da Mata dos Madeiros

A partir do momento em que a CCaç 3327 foi notificada para se preparar para sair para o interior, muita coisa se modificou no comportamento diário dos militares. A alegria de sair de Bissau, contrastava com a ânsia de providenciar para as necessidades imediatas de quem iria sair ao encontro do desconhecido.

Tínhamos apenas quatro dias pela frente, e a nossa actividade militar continuava inexorável. O tempo livre era escasso, pelo que tivemos que nos socorrer da entreajuda para as pequenas, mas necessárias tarefas.

Entre as tarefas imediatas e pessoais, tivemos que contactar as nossas lavadeiras para devolverem os uniformes, tarefa arrojada pois nem sabíamos onde moravam. Eram elas que vinham até Brá levantar e depositar os uniformes. No meu caso pessoal, a minha roupa era lavada no Palácio, pelo que nesse aspecto não tive preocupações. Porque sabíamos que íamos por um período mais ou menos longo para a Mata dos Madeiros, onde estaríamos privados de quase tudo, houve a necessidade de comprarmos artigos de higiene para um período longo, e ainda envelopes, papel para a escrita e selos, pois muitos nós tínhamos os nossos familiares nos EUA e não podíamos utilizar os aerogramas.

O preço de uma carta para os States magoava os escassos recursos financeiros de alguns dos nossos soldados

A acrescentar a tudo isso, tivemos que requisitar todo o material logístico necessário ao desempenho da nossa missão - viaturas, metralhadoras, morteiros, lança granadas e respectivas munições. A acrescentar a tudo isso, uma cozinha de campanha, frigoríficos a petróleo, tendas individuais, colchões insufláveis, cobertores, mantimentos para 15 dias, incluindo as rações de combate. E ainda um posto sanitário de campanha.

No dia 5 de Abril emalamos a secretaria e aos poucos fomos emalando os nossos haveres. Muitos de nós saímos de serviço com o Render da Parada no dia 6 de Abril. Alguns minutos para limparmos os nossos alojamentos, e os últimos retoques nas nossas malas.

Finalmente soou a hora da partida.

A ordem foi dada para que as rações de combate fossem distribuídas e as as malas fossem colocadas nas viaturas. Foi então que um dos militares disse: - Malas-às-costas! Como os nómadas...

A coluna estava em marcha. Primeiro obstáculo, a jangada em João Landim. No lado de cá ficava Bissau. No outro lado... eu perdiria a minha virgindade em relação à guerra. Confesso que me sentia apreensivo, e mais ainda, quando depois de passar à entrada de Bula comecei a ver a quantidade de tropas que protegia a nossa passagem. Depois Có, a mítica Curva da Morte, um autêntico cotovelo antes de chegarmos ao Pelundo. Finalmente, entrámos em Teixeira Pinto para uma pequena apresentação no CAOP1.

A tarde ia avançada. Mesmo assim, avançámos para o Bachile. Ao chegarmos junto da Ponte Alferfes Nunes, reparámos que esta estava em obras de reparação, pelo que só uma viatura de cada vez atravessava no tabuleiro.
Nessa altura, eu ainda não sabia que estava a deixar o paraíso para entrar no inferno.

Pernoitámos no Bachile, um quartel de reduzidas dimensões, sede da CCaç 16. Ali ficaria a secretaria da companhia e a padaria. Também seria deste quartel que nos abasteceríamos de água.

No dia seguinte, 7 de Abril, rumámos ao sítio do nosso primeiro acampamento. Seguimos pela estrada nova, passando pelo primeiro buraco (acampamento) das tropas ainda ali estacionadas. Impressionantes eram as condições. Senti que não ia para melhor.

Chegada à Mata dos Madeiros. As secções agrupam-se para dar início à primeira saída

A partir de certa altura, a parte alcatroada acabou. Penetrámos na mata. O guia, engenheiro-topógrafo da obra, a determinada altura, flectiu para a esquerda, entrou numa pequena clareira e parou.

Estávamos a cerca de 10 (dez) quilómetros do Bachile - rodeados de mato, do chilrear dos pássaros, e protegidos (a fé é que nos salva) pelo Sagrado Coração de Maria.

O Furriel Pinto com a sua secção já preparada para sair

Descarregadas as malas, de imediato se preparou a protecção ao "descampado".

Enquanto penetrávamos na mata, sentimos o barulho das máquinas a arrumar o matagal e a preparar o terreno do acampamento. Com o anoitecer, regressámos. Preparados os turnos de sentinela, cada um procurou qualquer coisa para encostar a cabeça e descansar um pouco. Infelizmente tal não foi possível, pois passamos a noite à bofetada com os mosquitos.

Ali era o buraco da Mata dos Madeiros.
José Câmara
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5787: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (12): Bissau, uma guerra diferente onde os rumores também voavam

5 comentários:

Jorge Fontinha disse...

Bem vindo a estas paragens.Estávamos a necessitar de companhia por estas bandas e das boas.Os bons, normalmente juntam-se.

Aquele abraço.

Jorge fontinha

Anónimo disse...

José da Camara

Afinal chegaste ao "Paraíso",como desejavas!!!Bons ares e boas instalações ao que sei,nessa "madeiros"!!! Vida mais calma e com mais tempo para descansar?? Ao menos e com certeza não era preciso andar com as botas reluzentes,

Queres saber que ,ao que lembro,nunca estive no Bachile?
Passei ao "lado" dezenas de vezes,montado nos Unimog a caminho do destino.
Um abraço

Luis Faria

Anónimo disse...

Camarada José Câmara
E eis que chegaram a tão "idílico" poiso, fugindo ao bulício de Bissau.
Na tua concisa, mas precisa, descrição da localização do acampamento de "escuteiros", só gostava de saber se era ainda muito longe da curva para N na direcção de Cacheu.
Abraço
Jorge Picado

Anónimo disse...

Meus caros amigos,

Ainda hoje sindo o ar puro daquelas paragens, a que não era alheio o perfume das plantas deixadas, diárimente, ao lado de fora das barricadas (chamavam valas àquilo), por mais de 800 homens.

Quando passavamos por aquelas plantas tinhamos todo o cuidado em não magoá-las. Nessa altura já eramos peritos na conservação da natureza.

No corpo ainda sinto o sabonete daquele barro vermelho com que me ensaboava todos os dias. Era tão bom, que o deixavamos pregado ao corpo, por vezes, diads sem fim.

Até nisso contribuíamos para a preseveração da espécie (a nossa), ao mesmo tempo que preservavamos esse bem precioso "água" que jorrava a rodos no Bachile (se a pudessemos ir buscar). Eram apenas 10 Kms de coluna para cada lado.

E tudo isso era levado com sorrisos de felicidade, não fosse o diabo tecê-las, e mandar-nos para o outro lado.

Ah...e os cruzamentos só podiam ser gays (se os houvera) ou à mão, sem salamaleques,até porque não havia vacas e bezerras por perto (sem ofensa à espécie).

Mas sonhando com uma boa bifana, até passava, mesmo sem pão, e era, de longe, muito melhor que a ração. Durante alguns segundos, que isso de segundos era mesmo à pressa...., entravamos no paraíso , não fossemos todos nós cavalheiros do mato. Alguma coisa tinha que nos ser permitido.

Aquela estância de férias era uma maravilha. Tanto assim era, que montamos dois acampamentos, o último dos quais já muito perto do cruzamento entre a estrada nova e a velha, zona do Capó.

Foi naquele cruzamento que ficou a estrada aberta. O troço alcatroado da estrada ficou junto do nosso útimo acampamento que deveria estar a cerca de 1 km do cruzamento (aí uns 12) do Bachile.

Nos últimos patrulhamentos cheguei a fazer o trajecto subindo pela abertura da estrada nova até ao cruzamento, e descendo pela estrada velha até à zona de Ponte Teixeira. Esse era o nosso raio de acção.

Hoje, através do satélite, é possível ver-se o cruzamento das estradas e a grande curva feita a norte logo a seguir.

A companhia do Fontinha e do Luís, a CCaç 2791, pegou onde deixamos, acampando no Capó. Alguém tinha que dar continuidade ao nosso trabalho. E eles eram bons!

Com um abraço,
José Câmara

Abranco disse...

Estive no Bachile entre 1972 e 1974, ao ler o seu texto recordo com saudade o tempo que passei no chão manjaco.
Como sabe os especialistas da C CAÇ 16 foram na sua maioria em rendição individual sendo mais dificil encontrar algum ex camarada do meu tempo o que lamento imenso.
Foram vários os contactos com os camaradas de Teixeira Pinto, muito provavelmente ainda nos cruzamos, pois eu fazia parte do reabastecimento de material da C CAÇ 16 e fiz também serviço no bar de sargentos e de oficiais cujo responsável era o 2º sargento Guerreiro.
Vou continuar a acompanhar as noticias do blogue, particularmente as que se referirem ao Bachile e à C CAÇ16
Um abraço
António Branco