sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5888: Notas de leitura (71): Além do Bojador, romance de estreia de Manuel Fialho (I) (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Fevereiro de 2010:

Queridos amigos,
Aqui vai o primeiro texto referente ao romance de Manuel Fialho.

Lanço a todos o seguinte apelo: quem tiver os romances “A Lebre” ou “Capitão Nemo e Eu”, de Álvaro Guerra, peço a caridade de mos emprestar, já agora gostava de fazer o repertório do Álvaro Guerra escritor/combatente da Guiné por completo.

Um abraço do
Mário


Além do Bojador (I)

Beja Santos

“Além do Bojador”, é o romance de estreia de Manuel Fialho, um engenheiro mecânico de Moura que por vezes trabalha a sul do Cabo Bojador. Subintitula esta ficção com o dizer: “Na guerra colonial da Guiné, a história pré-colonial da África Ocidental”. É um livro longo, generoso, onde os objectivos didácticos não são iludidos. O narrador é um franciscano (Frei Miguel) que vai aparecer como capelão na região de Farim, aí por 1970. Vem de Assis, Itália, onde vive em recolhimento na sua ordem religiosa. Depois de passar uns dias na companhia de seu pai, que vive em Cacela Velha, no Algarve, embarca num paquete com os seus livros e músicas, vai tomando conhecimento da unidade militar onde o inseriram. É uma narrativa serena, minuciosa, como se o autor tivesse o propósito de contar tudo a leigos, a começar pela organização de um batalhão. Inclusivamente se forja a apresentação do teatro de operações: “Farim ficava a sul, numa ponta do nosso território, junto ao Cacheu, um daqueles caudalosos rios da Guiné. Para nordeste havia uma estrada em direcção a Cuntima e ao Senegal, que passava por Jumbembem. Daqui saía outra estrada em direcção a sudeste, até Canjambari, onde se encontrava uma companhia independente. E de Farim mais duas estradas: uma para o noroeste, para Dungal, também muito perto da fronteira com o Senegal, mas esta, aparentemente, estaria intransitável, e ainda outra para sudoeste em direcção a Binta, aonde se poderia também chegar através do rio Cacheu. A partir daí, continuando para noroeste e atravessando com dificuldade a bolanha, ou a zona alagada do Cufeu, Binta ligava-se por estrada a Guidage, mesmo em cima da fronteira com o Senegal, mas defendida por pessoal de outra companhia. Estas duas pequenas povoações – Binta e Guidage – pertenciam ao sector operacional vizinho do nosso. A sul de Farim, na outra margem do Cacheu, que se atravessava por uma balsa, ficava a pequena tabanca de Saliquinhedim. Talvez pela dificuldade do nome, esta tabanca era mais conhecida por K3, porque se situava apenas a três quilómetros do rio, de onde emergia a nova estrada, agora em construção, que depois se bifurcava em duas, uma para o Olossato e a outra para Mansabá, ambas fazendo a ligação de Farim a Bissau, após a travessia do Cacheu por essa balsa e que, eventualmente, ficaria pronta durante a nossa comissão”. Se imaginarmos esta conversa num esboço improvisado no bar de oficiais de um paquete, temos um conjunto de alferes candidatos à Academia Militar. Aos poucos, vamos ficando a saber o que é um oficial de transmissões, um sapador, um administrativo, o alferes da manutenção até o médico exprime o que vai fazer. Os alferes operacionais falam de pistas de aviação e locais para os helicópteros aterrarem, dissertam sobre os corredores de passagem dos guerrilheiros. Um capelão à cautela, depois de tomar conhecimento da guerra que o esperava foi fazer as suas orações na capela: “Depois de rezar fiquei ali sentado, reflectindo sobre aquela juventude tão generosa que interrompia os seus estudos e se via coagida a participar numa guerra que nada tinha a ver com ela... a nossa juventude parecia não ter alternativa. Apenas uma minoria, mais propensa a tomar outra consciência política, opondo-se frontalmente a um regime autocrático, onde não faltava uma feroz polícia política, é que resolver a seguir os caminhos da emigração, desertando...”.

E assim se chega a Bissau, daqui o batalhão parte por LDG para Farim. Junto do Cacheu, Frei Miguel vê com assombro aquele pequeno forte que lhe recorda uma história que começou no século XV e XVI, discorre sobre os acontecimentos da região até ao início da luta armada (quem nada sabia sobre a história da Guiné fica com duas páginas de síntese). O franciscano fixa o percurso da lancha, regista pormenores do tarrafo, descreve a paisagem e depois Farim, povoação que percorrer demoradamente. O comandante vai dando ordens, lança advertências: “Os nossos alferes tenham muito cuidado ao receber as viaturas, os rádios e, acima de tudo, as ferramentas. De modo algum descentralizem essas conferências. Confiram muito bem, pessoalmente, todas as listas de material e vejam se está tudo lá, e, principalmente, em que estado de uso. Só, então, passem essa responsabilidade para o sargento mecânico e para os furriéis. E, sobretudo, não dêem qualquer hipótese de essas ferramentas puderam voltar às mãos anteriores. Não seria nada inteligente da nossa parte assistir, por exemplo, à contagem do mesmo alicate por duas, três ou mais vezes...”

Frei Miguel vai fazer obras na Capela de Farim, depois começa a viajar, acompanha as colunas, o seu zelo religioso é infatigável. Descreve as suas viagens, como é que se desatola uma GMC, embevece com um recital de guitarra clássica, aos poucos adapta-se à rotina. É aqui que surge o fascínio inter-religioso e inter-cultural: vai até à tabanca, conhece um homem grande, de nome Malan, será o princípio de uma relação que o leva a estudar e a descrever a história pré-colonial e a afeiçoar-se por Binta (aliás, Fátima, o nome da filha do Profeta). É uma larga divagação histórica, a epopeia do império Mandinga vem ao de cima.

A guerra manifesta-se em toda a sua pujança: flagelações, morteiradas, emboscadas, minas anti-carro e minas anti-pessoal. Nos intervalos dos seus trabalhos de capelão, Frei Miguel conta às crianças a história grandiosa desse mundo que precedeu a colonização. É nisto que ele vai sentir um sentimento diferente por Binta, uma forte atracção, isto na altura em que fala do apogeu do povo Songhai de Tombuctu e do império do Mali. Os Mandingas de Farim estão orgulhosos. Frei Miguel entra num derriço por Binta: “Aqueles olhos sorriam como se fossem de uma menina que tivesse cometido alguma travessura. O seu rosto tinha o mesmo ar de intensa frescura, com o cabelo ainda por secar, após o banho da tarde. Eu não me cansava de admirar a sua figura tão esbelta e tão linda, ali à minha frente. Usava o mesmo tipo de corpete muito reduzido e todo aberto nas costas, uma saia comprida de um outro tecido estampado, que a fazia ainda mais alta e realçava a sua extrema elegância”.

Frei Miguel vive a tentação, repete infinitamente as suas orações, até à exaustão, vestido no seu hábito franciscano. O impensável acontecera, o mundo de um jovem capelão de 27 anos entrara na deriva.

Este livro de Manuel Fialho é de 2008, Edição 100 Luz.


(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5877: Notas de leitura (70): Os Sinos de Bafatá, de Joaquim Ribeiro Simões (Beja Santos)

2 comentários:

António Graça de Abreu disse...

Zero comentários.
Abraço,
António Graça de Abreu

Manuel Joaquim disse...

Caro Beja Santos:

Tenho A LEBRE de Álvaro Guerra,1ªedição(1970).Comunica para manueljoaquim41@gmail.com para combinarmos o empréstimo. Moro em Agualva-Cacém.Não tenho problemas em ir a Lisboa.

Um abraço