1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Fevereiro de 2013:
Queridos amigos,
Este relato tem momentos assombrosos. Um miúdo do Alvito, farto do trabalho duro, oferece-se aos 17 anos para fuzileiro.
Tira o curso e vai para a Guiné, ainda em 1962. É estroina, estouvado e quer usufruir o que encontra de bom na vida. A seguir à operação Tridente é aliciado por dois polícias marginais e cai nas mãos do PAIGC, sente-se arrastado na corrente. Levam-no para Argel, Amílcar Cabral revela-se simpático e até lhe arranja trabalho.
Acaba nas boas graças do general Humberto Delgado. Depois do assassinato deste, palmilha até Rabat, pede a intervenção das autoridades portuguesas, em Lisboa é acusado de tudo.
De histórias como esta ainda não tínhamos um relato. Ele aqui fica. O livro é fácil de achar.
Um abraço do
Mário
O homem a quem chamaram G3
Beja Santos
“O homem a quem chamaram G3”, por António Trindade Tavares, Edição Vírgula, 2012, é um livro diferente sobre uma situação incomum, e que tem como pano de fundo a guerra da Guiné, ainda na sua fase inicial. O autor, o homem a quem chamaram G3, no arranque da narrativa procura uma síntese:
“O que aconteceu a esse homem?
Sabe-se que entrou para o 2º curso da Escola dos Fuzileiros, em 1962, onde se destacou pelas suas qualidades de bom atirador, e que foi enviado num contingente para a Guiné pouco tempo depois. Depois de várias missões no território, é dado como desaparecido ou desertor, em meados de 1964, e volta a aparecer lá para 1965, em Rabat, Marrocos, depois de passado cerca de um ano em Argel, com proximidade ao general Humberto Delgado e aos poucos amigos que lhe eram chegados. Ao reaparecer junto das autoridades portuguesas, em Marrocos, entrega-se voluntariamente na embaixada, solicitando repatriamento e sabendo as consequências que o abordariam.
O que se contou sobre este homem?
Depois de incorporado no contingente destacado para a Guiné, motivado pelo ambiente de violência familiar em que teria sido criado, foi dado como desertor, instigado por uma mulher negra com quem se teria envolvido, uma femme fatale guineense cujas ligações ao PAIGC eram conhecidas. Esta terá sido o engodo que o desviou para lá dos pretos, tendo ficado conhecido como Turra Branco, Capitão G3, Terror das Forças Armadas. Aí terá desviado armamento, traído os portugueses, comandado missões de ataque às tropas portuguesas e dado instruções em campos de treino militar do PAIGC. Já em Portugal, após a sua captura terá sido dado como morto e o seu corpo aparecido a boiar no Tejo, no Mar da Palha. Outra versão é que terá fundado uma célula comunista no Lavradio e passado algum tempo em Moscovo.
Onde é que está a verdade?”
Num estilo sincopado, num estilo que não anda longe do romance negro, e com recurso expedito à figura de alguém que lhe houve a história da sua vida, o velho G3 desembucha. Nado e criado no Bairro do Alvito em Lisboa. Tudo em grande indigência, começou a trabalhar desde os 13 ou 14 anos num ferro-velho, para os lados de Alcântara Terra. “No ferro-velho comecei por ajudar o dono. Ia lavando peças num bidão daqueles grandes, de 50 livros, cortado ao meio, com petróleo e uma escova. O patrão é que desmanchava os carros. Depois era com ainda é hoje, guardávamos as peças em prateleiras: alternadores, carburadores, pinhões, caixas de velocidades, motores, cabeças, faróis, tubos de escape”. Aprendeu a ser mecânico, fartou-se, ofereceu-se como voluntário para os fuzileiros aos 17 anos. Quanto às peripécias vividas na Escola, ali ao pé de Coina, levara uma infância a andar pela rua e na brincadeira. Tem saudades da escola onde andou, a Francisco Arruda, lembra os cinemas que frequentou com a miudagem, as maroteiras que pregou.
Agora está reformado, vive sozinho, voltou ao bairro, tem todo o tempo do mundo para contar a um sujeito curioso a sua vida aventurosa entre a Guiné e o norte de África. Pelo que descreve, pintou a manta em Bissau, divertiu-se à doida, nos primeiros tempos fez guardas, depois foi transferido para o Cacheu, fazia escoltas, naquele tempo era uma paz santa. Conheceu a Eugénia, foi paixão assolapada, Eugénia disse-lhe que estava grávida, ele veio para Bissau e passou 65 dias na ilha do Como. No regresso, começou a dar-se com gente suspeita, dois polícias sinistros, Santos Carvalho e Sardinha Crespo, este já expulso da corporação. Nesta narrativa, serão estes homens que o levarão, bêbado que nem um cacho, até à região de Mansoa, aí se estabelece um contacto com guerrilheiros, o fuzileiro G3 vê a vida a andar para trás, entra no mato e depois de muitas andanças chega à presença de Amílcar Cabral, este é informado por Sarinha Crespo que os três querem ir para a Argélia, querem estar ao lado do general Humberto Delgado, o fuzileiro G3 sente-se arrastado pela torrente, depois de uma viagem por metade de África em camionetes desconjuntadas chega a Argel. Nunca chegou a perceber o papel destes dois polícias nesta tramóia. Em Argel, e na companhia de Amílcar Cabral vão falar com Ayala, o secretário do general. G3 refere-se desprimorosamente aos membros da FPLN – Frente Patriótica de Libertação Nacional. Sem nenhuma vocação política, sem nenhuma ideologia, G3 põe-se ao serviço de Humberto Delgado. Amílcar Cabral ainda lhe arranjou trabalho na reparação de navios, mas Ayala queria que estivesse no escritório a ajudá-lo.
Estamos em meados de 1964, G3 vive em casa de Humberto Delgado e da sua secretária, Arajair. O general trata-o por “meu fuzileiro pequeno”. Em 1965, o general e a secretária são atraídos a uma armadilha perpetrada pela PIDE. G3 fica à deriva. Diz o pior possível do comportamento do pessoal da FPLN, vagueia pelas ruas de Argel, morre de fome, anda aos caixotes. Pôs-se a caminho de Marrocos, a viagem foi uma autêntica odisseia. Assim chegou a Rabat, procurou a autoridade consular e entretanto manda uma carta aos pais, é o pai que se mete a caminho, na mesma altura em que ele embarcou para Lisboa. Mal saiu do avião foi algemado, cedo começaram os interrogatórios: que armamento roubaste, que tropas portuguesas mataste ao lado do PAIGC? E ele bem contou, em todos os tons possíveis, o que se tinha passado. A PIDE entrega-o à Marinha. Os interrogatórios tonam-se mais sofisticados, dia após dia, ele descreve parágrafos com intensa vivacidade, momento há em que o leitor pensa que está a ouvi-lo, quase colérico, a repetir perguntas infindáveis. É novamente levado para a PIDE, caiu nas mãos dos inspetores Mortágua e Seixas, ao fim de 5 meses de interrogatórios vai refazer o canastro no hospital da Marinha.
Segue-se o Tribunal Militar, foi condenado a uma pena de prisão no Forte de Elvas. “Tinha 20 ou 21 anos e ainda tinha 5 anos de prisão pela frente… Uma vida… Lixaram-me a vida… O que mais me lixou, e ainda hoje me deixa danado é a atitude da Marinha… Não me defenderam, eu era um fuzileiro, um deles, e nem sequer uma defesa me deram… Eles bem sabiam que eu não tinha roubado armamento nenhum, que não tinha andado a atacar tropas portuguesas nenhumas… Aí é que eu vi, eles estavam a borrifar-se para mim”. Sairá ao fim do tempo todo, sem descontos. Casou com a madrinha de guerra. Tinha ainda dois anos pela frente, no Alfeite. Rouba comida para levar para casa. Depois, fez a sua vida como pôde, trabalho aqui e ali, nos biscates, na CUF. Aqui foi convidado a juntar-se ao PCP. Foi sol de pouca dura, davam-lhe trabalho, mas não era chamado para as coisas a sério, atirou a albarda ao ar. Foi trabalhar para Israel, o casamento desfez-se, a mulher partiu para França. Ficou só na casa do Lavradio. O irmão pediu-lhe para voltar para o Alvito. Teve uma proposta para ir trabalhar no Jumbo, como operador técnico da secção automóvel, aí vai ficar mais de 15 anos, a vender baterias, a montá-las.
Várias vezes o desafiaram a escrever um livro sobre a sua história. Gostava de voltar à Guiné, lembra o nome de alguns fuzileiros que o marcaram, caso do comandante Patrício. Ainda participa nalgumas almoçaradas com a malta do seu tempo. Teve oportunidade de falar com a filha do general Humberto Delgado. O Ayala fingiu que não o reconheceu. Alguém tinha que escrever esta história. Parece que não tem pés nem cabeça, mas foi assim. Nas almoçaradas, os combatentes de então desabafam. E o relato chega ao seu termo: “A morte ainda não levou tudo. A vida continua a vencer. Ainda somos todos o G3”.
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Nota do editor
Último poste da série de 3 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11666: Notas de leitura (488): “O Mestiço e o Poder – Identidades, dominações e a resistências na Guiné”, por Tcherno Djaló (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Em Dezembro de 1964 depois de uma estada de 11 meses no Cachil com passagem pela operação Tridente quando regressei a Bissau comentava-se com muito receio a fuga do G3, onde se fazia alarde dos seus conhecimentos de tiro entre elas o morteiro e lança-Rockets (Bazuca) porque o inimigo tinha o morteiro mas não sabia usar a escala.
Por exemplo no Cachil fizeram vários ataques ao quartel mas as granadas de morteiro caíram sempre fora do perímetro da unidade, a única granada que explodiu dentro do quartel foi de lança-Rockets (Bazuca) na noite de 16 de Novembro de 1964.
Cumprimentos
Colaço C. caç. 557 Cachil Bissau Bafatá 1963/65.
O António Tavares Trindade, foi meu vizinho aqui no Lavradio, conheço-o perfeitamente já em tempos escrevi aqui no blogue, onde lhe chamei; Capitão G3 o Turra Branco, narrei um pouco da sua história fascinante contada pelo seu cunhado também morador aqui no Lavradio e Fuzileiro como ele. Ainda á pouco tempo estive com ele aqui no Barreiro quando veio á Associação dos Fuzileiros, lançar o seu livro. O G3 é uma figura franzina, simpática e alegre, quem olha para ele á primeira vista, custa acreditar, como este homem conseguiu sobreviver a todas estes episódios reais da sua vida........
Um abraço
Mário Pinto
O António Tavares Trindade, foi meu vizinho aqui no Lavradio, conheço-o perfeitamente já em tempos escrevi aqui no blogue, onde lhe chamei; Capitão G3 o Turra Branco, narrei um pouco da sua história fascinante contada pelo seu cunhado também morador aqui no Lavradio e Fuzileiro como ele. Ainda á pouco tempo estive com ele aqui no Barreiro quando veio á Associação dos Fuzileiros, lançar o seu livro. O G3 é uma figura franzina, simpática e alegre, quem olha para ele á primeira vista, custa acreditar, como este homem conseguiu sobreviver a todas estes episódios reais da sua vida........
Um abraço
Mário Pinto
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