segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12549: Notas de leitura (550): "O Muro", por Afonso Valente Batista (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Dezembro de 2013:

Queridos amigos,
Para mim, foi um dos acontecimentos literários de 2013.
Diferente de tudo mais e muitíssimo próximo da guerra em que forjámos a nossa camaradagem. Penso que ninguém foi tão longe a indignar-se contra a indiferença reservada aos combatentes. É um livro pícaro, sensual, emotivo, surpreende como estamos ali, ainda adolescentes e depois de cabelos brancos, a sonhar uma viagem para decifrar o que os fios da memória não nos oferecem.
Um livro que é dedicado “A todos quantos por lá andaram, e que de lá vieram, e de quem já nada sabemos porque vivemos os ignorados tempos que os tempos têm”.

Um abraço do
Mário


O Muro: Um livro formidável sobre a indiferença dos outros

Beja Santos

“O Muro”, por Afonso Valente Batista, Glaciar, 2013, é uma das grandes surpresas de um ano que não foi manifestamente fecundo em lançadas sobre África. O que impressiona neste livro é decorrer em Angola mas ter o sopro da universalidade, não há incómodo nenhum em nos revermos naquela viagem de barco, naqueles espantos quando fomos confrontados com os maciços florestais, aquela solidão dentro do arame farpado, as angústias das operações. Mas acima de tudo, este livro é um grito sobre a incompreensão, um apelo à dignificação da nossa memória e um convite soberbo a regressarmos para vermos o “muro” que ali construímos, talvez a metáfora do crescimento que mudou as nossas vidas.

Trata-se de uma arquitetura gramatical e de um engenho do léxico em que se mistura o coevo com o antigo, escrevem-se aerogramas para o futuro, há excessos presumivelmente barrocos para o jargão da caserna, de premeio sente-se latejar a solidariedade e o crescimento das conivências afetivas, as que se prolongam pela vida fora e as que a ocasião determina. Há loucos e há demências intratáveis. Há quem tenha esquecido o muro que os salvou da loucura, há quem organize uma viagem e vá visitar o muro, a última questão a decifrar… o livro deixa a viagem em denso nevoeiro, nunca se conhecerá o desfecho.

Primeiro, há o grito contra a incompreensão, a indiferença, o Cabo Costa que até andou pelos corredores do Miguel Bombarda e que acreditava que nada existia no muro para além do desperdício em que nos transformámos brada uma autêntica catilinária, assim:
“Ainda hoje, passados esses tantos anos que o tempo teve até aqui chegar, com os cabelos tão ralos e brancos, as artrites herdadas das noites de emboscadas com água até à alma, o verdadeiro manicómio dos medos e da solidão; ainda hoje, esbarramos com impotência de quem nada sabe ou quer saber o que aquilo foi, e, por isso, de nada nos valeu, nada nos deu, em nada nos compreendeu.
Para nós, sempre uma revolta. Essa revolta de não saber onde estamos bem, de querer porque já quisemos e não nos deixarem querer – a indiferença dos outros, os que não souberam entender os nossos silêncios é, foi e será a ausência de que mais dói – e choramos por dentro, para acalmar a solidão de luz fria de néon em que nos transformámos, acalmar esta vida de merda.
Chamo incompreensão, a esse desajuste com a história recente deste país que não soube viver culpas nem parir culpados”.

Segundo, há a marca indelével da viagem e há o pós-guerra, os próprios africanos que combateram ao lado dos portugueses vivem atolados na humilhação, amarfanhados, também eles podem dizer no mesmo coro: 
“O buraco da memória é sempre fundo de cavar. Porque as recordações são a pá com que remexemos a memória, misturando-as com o lixo do sofrimento.
Naquele tempo em que se construiu o muro, vivia-se um estado de loucura coletiva, de alerta permanente, de excesso de lucidez, de ataque de cacimbagem, resultante, se calhar daquele lugre calor húmido que ia tomando conta de tudo: ossos, cartilagens, ansiedades (…)”. Porque durante a guerra esses africanos também puderam esclarecer esses soldados brancos que afiançavam vir defender Portugal, dizendo coisas assim:
“Nós somos gente já há muito tempo com os tempos cheios dos nossos antepassados que já andavam por este chão muito e muito antes de vocês cá chegarem e sempre aqui estivemos e não nos fomos embora porque esta é a nossa terra…”, é um texto declamatório estarrecedor, antológico.

Terceiro, há o cais, seguir-se-á viagem, a estupefação pelo encontro com a terra africana, a unidade militar marcha a caminho da guerra, são todos apresentados, um médico alcoólico, um carteirista, alguns matarruanos, todos vão ser identificados, porque há um cronista, de nome João, a ele competirá preparar o regresso, mais de 40 anos depois. A guerra em si aparece superficialmente documentada, o autor privilegia estados de alma, daí o livro cirandar do fim para o princípio, quando tudo parece caminhar vigorosamente para a viagem até ao muro, a obra interrompe-se, é emoção a que os leitores não têm direito a chegar. Por vezes, trocam-se azedas conversas entre os da tropa e os autóctones, a tropa bem procura praticar ação psicológica, cair no goto da população mas há sempre alguém que lembra que os colonos portugueses davam palmatoadas, usavam chicote, lançaram o fermento do ódio.

Quarto, enceta-se a viagem, é necessário reencontrar o muro, é preciso encontrar uma solução para este maldito labirinto em que mergulhamos:
“A guerra colonial, essa medonha espiral em que nos meteram e de que ainda não saímos, acaba, ainda agora, passado que foi tanto tempo, por não ter qualquer culpado. Não são culpados os que a inventaram e para lá nos mandaram. Não somos culpados nós, o que por lá andaram. Não são culpados aqueles que fomos defender. Não são culpados aqueles a quem fomos guerrear a sua terra. Ninguém é culpado. Ninguém.
Somos um país onde a culpa nunca existiu, onde nem culpados seremos ser. Somos um enredo onde a indiferença, a indulgência, a complacência, a desculpa e a misericórdia, em nome de um qualquer santo, ganha sempre à culpa. E um dia, se por acaso um culpado houver, é porque se distraiu ou porque é tão fraco e insignificante que até culpado pôde ser”.

Médico alcoólico, matarruanos, gente de expedientes e tantas outras figuras da galeria são convocados para depor sobre a finalidade daquela viagem até ao muro. A linguagem é eloquente, e ninguém está disposto a embarcar nessa nova aventura. João reencontra combatentes de ambos os lados, há lágrimas, mãos dadas, palavras embaralhadas, sofreguidões de dizer, sentires afogueados. Porque houve outras guerras a seguir à independência, voltou-se a perder, espalharam-se amarguras, de novo se separaram famílias, os que combateram estão mais pobres e os que vieram depois são hoje gente importante e com dinheiro. A viagem praticamente impossível inicia-se, mal a manhã nasceu. O autor diz que partiram como antigamente:
“Empoleirados num potente jipe, rumo ao Norte, à descoberta de um muro que por lá deixaram ia fazer 45 anos, contados dia-a-dia na memória de uma vida lembrada”.

Não sei se algum outro escrito sobre a guerra colonial foi tão longe aos labirintos da memória, aos gritos contra a indiferença pelo facto de se ter sido combatente de tal guerra. Uma obra singular e do melhor recorte literário.

Leitura especialmente indicada para quem queira conhecer os sentimentos de quem foi combatente em tal guerra.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12539: Notas de leitura (549): "Tratado Breve dos Rios de Guiné", por Capitão André Álvares D'Almada (2) (Mário Beja Santos)

5 comentários:

Cherno Baldé disse...

Caro amigo MBS,

Ao ler a recensao deste livro, sem querer e pouco a pouco, fui levado a pensar e a recordar partes soltas dos teus proprios livros e relatos sobre Missira e o Cuor, antes e apos a viagem de regresso "ao teu muro" e que ainda espero poder ler, um dia, na sua integralidade.

Seriam sentimentos partilhados por antigos combatentes, independentemente da frente de luta onde estiveram?..

Um abraco amigo,

Cherno Baldé

Joaquim Luís Fernandes disse...

Caros camarigos

Esta recensão, é já e leva-me a uma reflexão, sobre a natureza do lodaçal fétido, onde mergulham as raízes das nossas desventuras, com que fomos marcados e condicionados na nossa juventude e que teimam em nos perseguir.

A pasmaceira do nosso viver colectivo no último século, com mudanças de regime inconsequentes, mudando as "moscas" para que nada mude, sem culpados acusados ou assumidos, que sejam responsabilizados pelos males e crimes cometidos, são a expressão desse fadário.

A nossa acomodação e falta de exigência, tem permitido que o mesmo sistema se perpetue no poder, protegendo "sobrinhos e afilhados", enriquecendo uns tantos e empobrecendo os demais, a esmagadora maioria, e sem respeito pela sua mais elementar dignidade.

(continua)

Joaquim Luís Fernandes disse...

(continuação)

Foi o mesmo sistema desumano que toma as pessoas como "coisas" que nos usou como carne para canhão, numa guerra sem sentido, que não causamos nem escolhemos, e que após a sua implosão, se reconstrói e nos joga fora, como objectos, desnecessários e incomodativos.

É hora de continuar a proclamar bem alto, que há culpas e culpados, e milhões de inocentes a reclamarem justiça, não pelo desejo de vingança, mas pela sede de respeito.

Na impossibilidade de derrubar o muro com que nos emparedaram, devemos torna-lo transparente, abrir nele janelas e portas, por onde entre a Luz a jorros, que nos ilumine; Ar puro que possamos respirar, dilatando o peito e o coração, ganhando a Força, que nos liberte das amarras de um passado, ainda presente, que nos persegue.

Vamos em frente, que o tempo urge! Construamos o futuro no presente!...

Um forte abraço
JLFernandes

JD disse...

Interessante!
Realmente, sem fiscalização e controle sobre os actos políticos e o controle das instituições, convenço-me, não há democracia. Daí, que a impunidade dos responsáveis seja representativa de uma sociedade desorganizada, viciada, e com portas escancaradas para a corrupção.
Shomsky, talvez exageradamente, referiu que o cpitalismo é incompatível com a democracia. Não vou tão longe, nem me parecem necessárias revoluções de regime. O que urge é ter em conta o interesse público e a promoção da cidadania activa.
Do texto retiro no ponto 3 uma passagem: "mas há sempre alguém que lembra que os colonos portugueses davam palmatoadas, usavam chicote, lançavam o fermento do ódio". Não nego a afirmação, mas não a generalizo. Aliás, as razões da guerra nem colheram esse argumento, que, só tardiamente, passou a constar da argumentação anti-colonial, mas, principalmente, por uma certa ideologia intelectual branca. Na minha experiência recente, e das viagens a África, principalmente Angola e Moçambique, constato que muitos dos que eram assumidamente portugueses, ainda se orgulham e exibem as identificações daquele tempo (militares e civis). E da descolonização, como agora se vê abundantemente, só os chefes dos movimentos, e as peixinhos que andam na babuge dos tubarões, se mostram satisfeitos com a situação. Eles reproduzem o quadro de corrupção que derivou da super-estrutura política sucedânea à colonial.
Repare-se: em Angola já não havia guerra; os americanos já não se assanhavam contra Portugal em defesa dos independentistas; Angola e Moçambique evidenciavam níveis elevados de desenvolvimento e independência económica; era grande o número de crianças a frequentar escolas onde se ensinava, e o número de autóctones no desempenho profissional que o desenvolvimento absorvia. Resulta, claro, a excepção da Guiné, mas já aqui foi referido com independência inquetionavel, que as populações não se reviam no PAIGC por causa das fragilidades que manifestava.
Lisboa procedeu mal durante dezenas de anos, e adivinhava-se que novas independências naturais, poderiam formar uma comunidade com relacionamentos fraternos.
Aqui chegados, se os ventos da história concretizaram os seus caminhos, agora não dvemeos tolerar mais comportamentos indignos que radicam em actos da governação, e subjugam sem vergonha o povo heroico.
JD

Unknown disse...

Li de fio a pavio, o “Muro” de Afonso Valente Batista, com muito interesse.. Tem páginas verdadeiramente brilhantes, a escrita é forte, pungente, bela, nalguns aspectos próxima da poesia, todavia, com a devida vénia, todo o romance é um “maelstrom”, um pouco confuso, em que o autor se preocupa mais com a sexualidade da rapaziada e com as críticas ao “antigamente”, quer do passado esclavagista quer do passado colonial, do que com as histórias de guerra propriamente ditas e interessava-nos conhecê-las melhor. E aí com excepção de meia-dúzia de pinceladas, quiçá apressadas, o autor é, via de regra, omisso. O problema do abandono, da indiferença, da incompreensão e revolta dos combatentes está muito bem focado, é certo, talvez nunca ninguém o tenha posto nestes termos e com tal acuidade, mas ressaltam aqui os tons de uma “overdose”, quase artificial, por que o autor vai, a meu ver, longe de mais. Subsiste sempre um problema de linguagem e uma fuga permanente para o barroco, para curvas e contracurvas em talha dourada, com tiques e arrebiques Os soldados não falam assim. Ninguém fala assim. Nem o autor. Há um discurso de um africano, altamente politizado e defendendo actos de barbárie, Tulante Buta de seu nome, que se me afigura totalmente descabido e que reflecte apenas o pensamento do autor e não de um mero soldado de recrutamento local. Mais. Quantos africanos não acreditaram, para o bem ou para o mal, certos ou errados, na nossa causa? A guerra de África foi ou não uma verdadeira guerra civil? Nada disto é analisado. Temos de ser sérios naquilo que escrevemos. A ficção permite tudo, mas temos de lhe conferir um cunho mínimo de verosimilhança.
Enfim, retiro algumas ideias importantes: o problema do abandono e da revolta, a loucura dos que lutam e frases verdadeiramente memoráveis que me tocaram e que retive. Todavia, mais uma vez vou exprimir claramente o que penso, “O Muro” acabou por me saber a pouco e não correspondeu ao que dele esperava. Mas não se pode querer tudo, como é óbvio.