Décimo quinto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.
Quando jovens, havia pelo menos na nossa aldeia uma
expressão, muito frequente, na boca das pessoas mais
idosas, que quando fazíamos algo que não estava de
acordo com o seu parecer, nos falavam com uma
expressão geralmente arrogante, lá de cima, pois nós
éramos crianças, víamos o seu rosto cá de baixo,
dizendo-nos: “se voltas a fazer isto, vais corrido a
PONTAPÉ!”.
A “PONTAPÉ”, é disso que vamos falar, não daquela
expressão, intimidativa, arrogante, que nos embaraçava,
nos metia medo, mas de algo que nos faça passar um
bom tempo, nos faça ser jovens outra vez, aventureiros,
deixando por alguns instantes a guerra, as emboscadas,
os camuflados rotos e sujos de sangue, a terra vermelha,
os abrigos do Olossato, todos aqueles pormenores,
alguns horrorosos, outros assim-assim, outros onde, entre
outras coisas, o cigarro e o álcool que nos faziam andar por ali, a
G-3 era a nossa namorada, adorável companheira, às
vezes acordávamos pela madrugada, parecendo até que
éramos pessoas, humanos e, sabíamos ler, escrever, que
o norte era para aquele lado, mas a Europa era para o
lado da cidade de Bissau.
Lá em Mansoa havia a ponte que tinha um arco de cada
lado, onde se faziam apostas, cujo prémio, às vezes era
um maço de cigarros, em quem era capaz de atravessar
esse arco, caminhando e batendo palmas, ao mesmo
tempo. Havia alguns que com certa coragem,
começavam, quando chegavam ao meio e a superfície
era a descer, voltavam as costas e às vezes vinham de
joelhos. Havia só um militar, que era o “Marafado”, que
atravessava todo o arco, fazendo o pino, ou seja,
caminhando com as mãos, mas a troco de uma cerveja ou
de um maço de cigarros “Três Vintes”, ele dizia que tinha
trabalhado num circo.
Havia a ponte velha, ao lado, que era a nossa
preferida, assim como de outros militares que queriam
alguma paz, onde se passavam horas, sentados, fumando,
pensando na aldeia, atrás da montanha em Portugal,
apreciando a área alagadiça, quando da maré cheia, com
alguns pelicanos descendo o rio, mergulhando o pescoço
na procura de algum peixe.
Muitos de nós conheciam essa ponte, pelo menos os
combatentes estacionados na zona do Oio e, pelo menos
nós, sempre considerámos a verdadeira “porta de entrada
na zona de guerra”, mas agora vamos viajar, vamos
atravessar a “Golden Gate Bridge”, que é aquela ponte
que aparece muitas vezes nos filmes e na televisão, na
cidade de São Francisco, na Califórnia.
Era ao fim da tarde, o carro era um “utilitário”, alugado na
cidade de Los Angeles, numa agência, onde os
funcionários vivem nos “Barrios” e, como já explicámos
anteriormente, não gostam dos “Gringos”, fazem sempre
um preço mais em conta às pessoas que falam ou tentam
falar o seu idioma, não havia GPS, íamos guiados pelo mapa,
onde parece tudo muito fácil, mas no terreno é pior que
aqueles carreiros para Porto Gole, Bissorã, Bafatá ou
Olossato, só que aqui, não é terra e floresta selvagem, é
um tráfico intenso, com algumas distâncias sem qualquer
placa de sinalização, seguíamos pela estrada número 1, a
quem também chamam, entre outros nomes “Cabrillo
Highway”, em homenagem ao navegador e explorador
Português, João Rodrigues Cabrilho, nascido em
Montalegre, no ano de 1499. Por seguir sempre
encostada ao oceano Pacífico, mas próximo da cidade de
São Francisco, esta estrada junta-se a uma rápida,
que dá pelo nome de Highway 101. Parámos numa
estação de serviço, perguntámos qual a maneira mais
rápida e funcional de atravessar a ponte e a
funcionária, sorrindo, disse-nos que era para aquele lado,
mas nunca lá tinha ido, uma simpática senhora ao lado,
logo nos disse que era fácil, quando entrasse na cidade,
bastava seguir os sinais com desenhos da ponte que
aparecem em quase todas as ruas ou cruzamentos do
percurso, até à referida ponte, mas, vivia em São
Francisco há mais de 20 anos e só a tinha atravessado
duas vezes, quando foi visitar uma tia que vivia no norte,
dizia-me ela, fazendo uns gestos esquisitos com ambos
os braços, pois às vezes “balança e treme, que horror”.
Foi o que fizemos, demorou algum tempo, mas
conseguimos, fomos ao outro lado e regressámos, era
uma vista agradável, mesmo muito agradável e, na nossa
ideia logo ficou a determinação que iríamos fazer de novo,
mas agora a pé, ou seja, atravessar a “PONTAPÉ”.
Procurámos um daqueles motéis onde se dorme e que pela
manhã servem um café com um biscoito, que
normalmente chamam de “B and B”, (bed and breakfast),
que quer dizer mais ou menos, cama e pequeno almoço,
que na cidade de São Francisco, pelo menos na zona da
parte sul da ponte, próximo da área de “Fisherman
Wharf”, existem muitos.
Ali, recolhemos informação dos principais lugares com
interesse na cidade de São Francisco, que é uma cidade
onde os espanhóis, por altura do ano de 1776, se
estabeleceram numa pequena fortaleza no “Golden Gate”,
numa missão chamada “Francisco de Assis”. A corrida ao
ouro na Califórnia, em 1848, impulsionou a cidade com
um período rápido de crescimento, pois a sua população
no espaço de um ano cresceu de 1000 para 25.000
habitantes, tornando-se naquela época a maior cidade da
costa oeste dos USA. Em 1906, três quartos da cidade foi
destruída por um terramoto seguido de incêndio, mas
foi reconstruída rapidamente com avenidas e ruas já com
configuração moderna, dizem também, que durante a
“Segunda Guerra Mundial”, a cidade de São Francisco foi
o porto de embarque para a “Guerra do Pacífico”, tal
como a cidade de Lisboa foi o porto de embarque para a
“Guerra do Ultramar”, e com o fim da guerra, o retorno
dos militares, a emigração em massa, atitudes de
liberalização e outros factores que levaram ao “Verão do
Amor” e ao movimento pelos direitos dos homossexuais,
fazendo da cidade de São Francisco um centro de
activismo liberal dos USA.
Depois de nos informarmos sobre os lugares de interesse,
que eram tantos, a escolha foi difícil, mas sempre
sobressaía a “Golden Gate Bridge”, o “Fisherman’s
Wharf” e o “Chinatown”. Um dos principais motivos que
nos levou à cidade de São Francisco era atravessar a
“Golden Gate Bridge” que quer dizer mais ou menos
“Ponte do Portão do Ouro”, a pé, caminhando, que liga
São Francisco à cidade de Sausalito, que fica situada do
lado de lá, ao norte, mas dentro da área da baía de São
Francisco, onde a ponte termina, sobre o estreito de
“Golden Gate” que é uma das mais
conhecidas construções dos USA, considerada uma
das sete maravilhas do mundo moderno, cujo
comprimento, depende do que nós quisermos medir, mas
dizem que o vão principal da suspensão entre
as torres é de 1280 metros, o que fez da Ponte Golden
Gate a maior ponte suspensa do mundo, até que a Ponte
Verrazano Narrows foi construído em Nova York, em
1964, com um projeto que foi deliberadamente feito 60
metros mais longo para definir o recorde mundial. A extensão total da Golden Gate é de 2737 metros, um pouco
menos do que a metade do comprimento da ponte é entre
as duas torres. Também dizem que ela é
um dos destinos mais populares do mundo para viajantes,
onde muitas pessoas vêm para as áreas de observação
especiais, no norte ou do sul, estacionam os seus
veículos, tiram fotos e vão embora, mas isso não lhe dá a
mesma sensação para admirar esta bela estrutura, do que
realmente é, caminhando pela ponte, que como dizíamos,
tem quase três mil metros de comprimento.
Ao outro dia pela manhã, deixando o veículo estacionado
na área do “Fisherman Wharf”, tomando lugar naqueles
autocarros que mostram a cidade, saímos na parte sul da
ponte, preparando-nos para a aventura da sua travessia a
pé, já não era surpresa a intensidade do ruído do tráfego
na ponte, pois o Highway 101, assim como a tal estrada
número 1, são lugares barulhentos, mas a estrutura
moderna de aço sob o leito da estrada da ponte, amplifica
pouco o ruído do tráfego, mas claro, sempre se ouve
aquela lamuria do “clack-clack” com os carros e camiões
passando sobre as juntas de dilatação, que
como sabem, essas articulações permitem à estrada
expandir ou contrair, fazendo face às altas ou baixas
temperaturas, que às vezes são extremas, que mantém a
ponte sem deformação ou fissuras, mas para nós e
muitos visitantes, estes sons da ponte, no seu trabalho,
são parte da diversão de a visitar.
Iniciámos a nosso aventura sabendo que as forças da
natureza colidem na área da Ponte Golden Gate todos os
dias, pois estamos quase a 70 metros acima da superfície
do Oceano Pacífico e da Baía de São Francisco, bem no
meio de uma abertura estreita na escala de uma costa
montanhosa, onde o Golden Gate, é a única abertura ao
nível do mar que leva a milhares de quilómetros
quadrados de vales ou montanhas, com o continente e o
oceano, onde o calor se refresca durante o dia, que pode
mudar a pressão do ar de expansão para contracção, que
por sua vez pode causar ventos fortes, onde a atmosfera
se ajusta às diferentes pressões de ar da terra e do
oceano. Também existem marés fortes para dentro e fora
da Golden Gate área, misturando água fresca dos
grandes rios que desaguam na baía, com a água salgada
e turbulenta do Oceano Pacífico, que podem ter diferentes
temperaturas. O ar acima da água pode ser também
de diferentes temperaturas, que causam variações na
direcção dos ventos diários, que causam o tradicional
nevoeiro, que pode existir por horas ou por alguns
minutos, tanto seja pela manhã como pela tarde.
Levávamos equipamento para enfrentar todas estas
anomalias, sentindo a brisa na cara, surgindo pela frente,
céu azul, nevoeiro, alguns chuviscos, vento e, de novo
céu azul, parando aqui e ali, tirando fotos, vendo a cidade
ao longe, de diversas posições, pois do lado leste da
ponte, enfrentamos a cidade de São Francisco e a Baía, a
parte oeste nos dias de semana é geralmente reservado
para as equipas de manutenção. Também existem duas
passagens abaixo do tabuleiro da ponte, uma é um amplo
túnel na extremidade sul e a outra é uma passagem
estreita no extremo norte, para os caminhantes terem a
oportunidade de atravessar entre as duas passagens,
dando aos visitantes acesso a grandes oportunidades para
fotos dramáticas de ambos os lados da ponte, que como
dizíamos antes, com uma vista fabulosa, com vistas para
a cidade de São Francisco, para a ilha de Alcatraz e
outras áreas da parte leste da Baía, assim como alguns
barcos passando, com os golfinhos fugindo na frente.
Já no regresso, ao meio da ponte, pudemos admirar os
cabos gigantescos que descem ao nível do convés, o
que nos permite ver o quão grosso são. Quando
passamos ao lado das torres, existe uma pequena curva,
produzindo uma "sacada", para mais pontos de vista e
fotos. O círculo branco ao redor da base da torre da ponte
é uma barreira de concreto que desvia as poderosas
correntes de maré, e a protege contra os navios que
podem, por qualquer razão, ficar fora do seu curso.
Na torre sul, do lado de São Francisco, tem uma placa
comemorativa dos engenheiros e políticos empenhados na construção da ponte. No extremo sul
abaixo da ponte sobre um promontório é o velho Fort
Point, que é um local histórico nacional, assim como no
extremo norte, abaixo da Ponte é o cais do antigo Fort
Baker, podendo ver tudo isto e, mais algumas paisagens que
nos ficam no pensamento para toda a vida.
Atravessámos a ponte nas duas direcções, parando por
umas horas do lado de lá, onde existe um ponto
privilegiado de observação, para repouso e admirar a paisagem.
Só mais um pormenor, a cor da Ponte Golden Gate é
chamada de "laranja internacional", que não se vende nas
lojas, pois é única.
Tony Borie, Maio de 2015.
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Nota do editor
Último poste da série de 26 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14528: Libertando-me (Tony Borié) (14): O aeroporto era já ali
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Cá fazemos a meia Maratona de Lisboa, todos os anos, na ponte irmã dessa de São Francisco.
Os pais da nossa ponte foram os mesmos da de São Francisco, só que quem batizou a nossa foi o Cardeal Cerejeira.
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