sábado, 9 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14589: A bianda nossa de cada dia (3): o melhor casqueiro da zona leste, amassado e cozido em forno a lenha pelo Jacinto Cristina e pelo Manuel Sobral, no destacamento da ponte Caium... Mas nem só de pão viviam os homens do 3º Gr Comb, os "fantasmas do leste", da CCAÇ 3546 (Piche, 1972/74)


Foto nº 1 A


Footo nº 1 


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4

Foto nº 5


Foto nº 6


Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Setor de Piche > CCAÇ 3546 (1972/74) > Destacamento da Ponte de Caium, guarnecido pelo 3º grupo de combate, "Os fantasmas do leste".(*)


Fotos: © Jacinto Cristina (2010). Todos  Todos os direitos reservados. [EDição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. A ponte, a padaria e o padeiro... O forno foi construído na parte inferior da ponte... Como o espaço era acanhado, tudo se aproveitava... O forno e a cozinha ficavam do lado esquerdo, no sentido Piche-Buruntuma... 

De costas, em tronco nu, vê-se o Manuel da Conceição Sobral (que vive hoje em Cercal do Alentejo, Santiago do Cacém), e era o ajudante de padeiro  (Foto nº 1). O Jacinto Cristina, o padeiro, está a enfornar (Foto nº 1A)...

No destacamento da ponte de Caium estava um grupo de combate, à época pertencente à CCAÇ 3546 (Piche, 1972/74). O Sobral e o Cristina  faziam reforço das 4 às 6 da manhã. Por volta das 5h/5h30, um deles ia amassar a farinha (12 kg / dia)... O outro ficava de reforço até às 6. Depois das seis, até às 8h/8h30, ficavam os dois a trabalhar. Às 9h já havia pão fresco... 

Todos os dias coziam. Tinham um stock de farinha que dava para um mês. Faziam uma média de 30 pães de 400 gramas, por dia. Como bons tugas, os camaradas que defendiam a ponte, adoravam pão!... O resto do dia os padeiros descansavam, ou jogavam à bola, ou brincavam no rio, quando levava água...

O Sobral era o apontador do morteiro 81 e o Cristina o municiador. Portanto, uma parelha completa! Também havia um morteiro 10,7,  ao cuidado do Pinto e do Algés. O 81 ficava do lado direito, à saída da ponte, no sentido de Buruntuma. O 10,7 ficava no lado esquerdo, junto ao paiol, também no sentido de Buruntuma... Mais à frente estava o 1º cabo Torrão, apontador da HK 21 (irá morrer em 14 de Junho de 1973). Também havia o morteiro 60 e a bazuca 8,9.

O Cristina (eu trato-o sempre por Jacinto, pai da minha querida amiga engª Cristina Silva e sogro do meu querido amigo, dr. Rui Silva) tornou-se de tal maneira imprescindível (por causa do "pão nosso de cada dia") que, além de municiador (e apontador, quando necessário) do morteiro 81, ficou na ponte de Caium 14 meses (em rigor, 13, se descontarmos o glorioso mês de férias, em abril de 1973, em que veio a casa para estar com a mulher e a filha; com ele, de férias, vieram também  o Pinto, o Charlot e o Algés; no avião da TAP, uma alegria!...Já não se lembra de quanto pagou... "Seis contos, para aí", diz-me ele).

Diziam que era o melhor casqueiro da Zona Leste... Na foto nº 2  o Jacinto está varrer e a limpar o forno... Na foto nº 3, está a fazer um petisco, ou não fosse ele um alentejano dos quatro costados... Na foto nº 4, está a barbear-se... Mesmo com o metro quadrado mais caro da Guiné, nas "suites" da Ponte Caium não faltava nada... O chuveiro era um bidão de 200 litros, furado...

Terrível foi aquele período de um mês (entre meados de maio e junho de 1973) em que o destacamento esteve sem reabastecimentos, sem farinha, sem pão... Por que a fome era negra, meteram-se a caminho de Piche, a 14 de junho de 1973, tendo sofrido uma brutal emboscada, em que morreram o 1º cabo apontador de metralhadora David Fernandes Torrão, e os soldados atiradores Carlos Alberto Graça Gonçalves ("Charlot"), Hermínio Esteves Fernandes e José Maria dos Santos... 

Disse-me o Jacinto Cristina (que ficou na ponte a tomar conta do seu morteiro 81), que os corpos foram cortados em quatro, com rajadas de Kalash... O bigrupo do PAIGC (onde foram referenciados  cubanos) levou cinco armas (incluindo a do furriel que foi projectado com o impacto do RPG7, juntamente com o sold cond auto Rocha, o Florimundo ).

Uns meses antes, em 19 de Fevereiro de 1973, tinha morrido o fur mil op esp Amândio de Morais Cardoso, na sequência da desmontagem de uma armadilha de caça. Essa cena passou-se debaixo dos olhos do Cristina que se salvou, ao pressentir o perigo.

Na foto nº 5, vê-se o tabuleiro da ponte por onde passava a estrada Piche-Buruntuma,,, A padaria ficava em segundo plano do lado esquerdo... A foto deve ter sido tirada no dia dos anos do Sobral, em março de 1973, a avaliar pelos dois cabritos que estão junto ao "burrinho" (o Unimog 411)... Tinham sido comprados na tabanca fula, que ficava a nordeste da ponte, a 3 km, e onde residiam as lavadeiras...

Soldado atirador, o Cristina era, como já dissemos, municiador do morteiro 81. Mas, uma vez que Piche ficava longe e era preciso fazer pão todos os dias,  aprendeu a arte de padeiro (que depois seria o seu ganha-pão, em Figueira de Cavaleiros, Ferreira do Alentejo, onde vive, hoje já refiormado; durante anos, teve um negócio próprio na  área da panificação; passei várias vezes pela casa e padaria, e trazia para Lisboa o seu pão feito na hora;  pude, pois, comprovar  que o seu "casqueiro" era, de facto, o melhor da região).

Como se percebe pelas fotografias, as estruturas da ponte foram aproveitadas ao milímetro...

Na foto nº 6 (s/d, tirada na  época seca, em 1973), o destacamento é visto da margem esquerda do Rio Caium, a sul da estrada, no sentido Buruntuma-Piche. Segundo o Carlos Alexandre (, de alcunha,  "Peniche"), ao  examinar melhor uma imagem destas  que lhe mandei, com maior resolução, vê que  à entrada do tabuleiro, estão dois camaradas que parecem ser o Cristina e o Sobral.

Um novo troço da estrada Piche-Buruntuma estava então em construção, a cargo da Tecnil. De Nova Lamego a Piche já se ia, há muito,  em estrada asfaltada. Daí talvez este desvio, contornando a ponte e atravessando. O desvio  é visível (parcialmente, em primeiro plano)  na foto nº 6.

Na época seca, o rio Caium ficava seco (ou reduzia-se a um pequeno charco à volta da ponte). Este rio é um afluente do Rio Coli, que fica a sul da estrada Nova Lamego-Piche-Buruntuma e serve de linha fronteiriça entre a Guiné-Bissau e a Guiné-Conacri.

2. Quem passou por aqui, entre Piche e Buruntuma, dificilmente acredita que um homem pudesse aguentar mais do que um mês, dois meses, neste Bu...rako. Recorde-se aqui a opinião, autorizada, do nosso camarada Luís Borrega (que infelizmdente, já nos deixou, em agosto de 2013, ficando vazio o  seu lugar à sombra do nosso poilão):

"Se houvesse um ranking para os maiores BURACOS da Guiné, Ponte Caium estaria certamente no TOP TEN, e provavelmente dentro dos 10, muito à cabeça (...) . O destacamento tinha que ser rendido a cada três semanas, (só em teoria), pela necessidade de géneros, mas também porque psicologicamente era o máximo de tempo que (...) podia aguentar. No entanto só éramos rendidos mês e meio ou dois meses depois. Numa das vezes estivemos 15 dias a sobreviver só com latas de atum, café e pão confeccionado sem fermento. Podem imaginar a qualidade desta panificação. Não havia mais nada no depósito de géneros. Era o meu grupo de combate que estava lá nessa altura. Foi um bocado complicado lidar com a situação, especialmente acalmar a guarnição" (...).

Houve quem vivessse e  sobrevivesse na Ponte Caium, comendo o pão que o Cristina e o Sobral amassaram e cozaram, sempre com dedicação e carinho... Mas também lembrando aos camaradas  que defendiam a ponte e aos transeuntes, que "nem só do pão vive o homem (**),,,




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Ponte Caium > Ao lado de um memorial aos mortos do 3º Gr Comb da  CCAÇ 3546 (1972/74) ("Honra e Glória: Fur Mil Cardoso, 1º Cabo Torrão, Sold Gonçalves, Fernandes, Santos, Sold AP Dani Silva. 3º Gr Comb, Fantasmas do Leste,. Guiné- 72/74"; ainda existia em 2010, no tabuleiro da ponte esta base "Nem só de pão vive o home. Guiné, 1972-1974".


Foto: © Eduardo Campos (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.




Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Setor de Piche > Carta de Piche > Localização (assinalada a amarelo) da Ponte do Rio Caium, na estrada Piche (a sudoeste)-Buruntuma (nordeste, junto à fronteira com a Guiné-Conacri), sensivelmente a meio entre as duas localidades. O Rio Caium corre para sul, sendo um afluente do Rio Coli (que separa os dois países, num largo troco da fronteira leste).

11 comentários:

Valdemar Silva disse...

Passei na Ponte Caium Fev/Março de 1970, nem queria acreditar como aqueles homens conseguiam viver num bunker em cima dum ponte.
Extraordinário.
Valdemar Queiroz

Luís Graça disse...

Valdemar, são as nossas pequenas estórias que não ficam para a História com H Grande... Quem se vai interessar por elas ? Só nós, e quem eventualmente nos ler...

É pena que naquela época ainda não existisse o vídeo. Mesmo a fotografia é uma raridade... Dos dois álbuns do Jacinto Cristina, que ele me emprestou e eu trouxe para casa para selecionar e digitalizar, aproveitei algumas que me pareceram com interesse documental...

Depois tive o cuidado de as editar, ampliar, reenquadrar... Faltavam as legendas, o contexto... Voltei a falar com o Cristina, quando lhe devolvi os álbuns... Outros camaradas, como Carlos Alexandre (o "Peniche") e Florimundo Rocha, de Lagoa, também me deram uma ajuda, ao telefone...

Concordo contigo, como foi possível aceitarmos viver, tantos anos, nestas condições ?!

E para quê, pergunto eu ? Foi um imposto pesado que a nossa geração teve de pagar à Pátria (ou àqueles que evocavam o seu nome em vão...).

Anónimo disse...

Caríssimos Camaradas,

É com profunda emoção que ousei fazer este comentário.

Se dúvidas ouvesse... são imagens como estas [e outras semelhantes aqui depositadas de outras "pontes" e de outros "burakos"] onde uma significativa maioria de nós viveu, conviveu e sobreviveu, que deveriam, só por si, legitimar, sem equívocos e tibiezas, apoio incondicional na saúde, nas suas diferentes valências, a todos os ex-combatentes que dele necessitassem.

A ser verdade, seria um acto de inquestionável justiça social para com aqueles que serviram os superiores interesses da Nação, pois estão identificados casos de veteranos de guerra, camaradas nossos, que se encontram em dispares situações problemáticas, nomeadamente "sem-abrigo".

É uma...

Jorge Araújo.

Anónimo disse...

Falta um "h", no houvesse...

É a revolta interior.

JA.

Luís Graça disse...

Valdemar e Jorge... Também conheci um Bu...rako destes, na ponte do Rio Undunduma, afluente do rio Geva, na estrada Xime-Bambadinca... Eu, o Jorge e tanto outros camaradas do setor L1 (Bambadinca)... O Jorge já escreveu sobre isso e eu também

As condições de alojamento até eram talvez piores, no meu tempo. em 1969, só tínhamos valas, bidões, chapas de zinco, à beira rio... Mas não se ficava lá tanto tempo como na ponte Caium (que eu nunca a conheci, devo dizer, nunca fui para aqueles lados)...

Eu acho uma preicosidade estas fotos que recuperi dos dois álbuns do Jacinto Cristina... Falam por si, têm a força de mil palavras...

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas
Venho só recordar que o "pão nosso de cada dia" era na maioria das unidades de uma qualidade muito superior à dos pães-nossos-de-cada-dia que hoje compramos nos continentes, pingos, jumbos e quejandos.
Honra e Glória aos nossos pádeiros.
Recordo aqui as "idas ao Fiofioli" do Maurício Viegas e do falecido Manuel Gomes, que só eram possíveis pela alta qualidade do produto produzido pelos nossos manufactores de pão.
Um Ab.
António J. P. Costa

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

Se não fossem as fotos, como se podia 'explicar' a situação desse ponto a defender?
E mesmo assim, como se pode transmitir o 'clima'? O que seria estar dias e semanas numa situação de algum 'desamparo' com bastante isolamento?
Reparem, a situação relatada de meados de Junho de 73, referindo a necessidade que os homens da Ponte Caium sentiram de se aventurarem a Piche para tentar obter géneros alimentares que estavam em falta e que os fez cair numa emboscada de que resultaram 4 mortos, faz-nos pensar nos motivos dessa falta de apoio, de reabastecimentos, já que o período Maio/Junho de 73 remete-nos logo para os "G's" (que não menciono para não incomodar quem já se enfastia de Guidaje, Guileje e Gadamael).
Do que o nosso malogrado camarada e meu amigo Luís Borrega descreve e que o Luís Graça foi repescar podemos também apreciar que entre 70/72 e a prática de 72/74 não houve grande diferença, a não ser que o tempo que o Jacinto Cristina passou na Ponte foi bastante mais do que o aconselhável para não 'deixar marcas'...

Por isso, e para terminar, subscrevo as palavras emocionadas e indignadas do Jorge Araújo que são muito apropriadas.

Hélder S.

Anónimo disse...

Este é o lado mais verdadeiro da guerra. Os outros lados (noites de Luanda e Lourenço Marques, as ostras do Bento) também são verdadeiros mas este lado, o dos muitos "caiuns" é o mais real da guerra que tivemos que enfrentar quando tínhamos pouco mais de 20 anos. Digo isto enfaticamente porque às vezes leio coisas, sobre a guerra ultramarina que, não sendo falsas, são a excepção. Julgo que fui bem entendido.
Um abração

Carvalho de mampatá

Joaquim Luís Mendes Gomes disse...

Estas são as nossas páginas de glória que ninguém poderá esconder nem esquecer...e que os mandantes desta hora, uns ignorantes, pobres, desmiolados ignoram, porque não lhes dão dinheiro...
uns miseráveis!...que a história irá enterrar...

Unknown disse...

O meu pai é o meu herói, o meu orgulho e a inspiração para as batalhas que tenho travado na vida! Ainda guardo nos segredos do meu coração a oração que a minha mãe me ensinou pois, juntas, rezávamos todas as noites pelo meu pai... Testemunho o olhar terno da minha mãe... e a sua determinação... As "encomendas" e as cartas que, religiosamente, enviava para a Guiné! Grande heroína, ela própria! As marcas ficaram para sempre nos nossos corações. Devo-lhes tudo o que sou! A todos os Camaradas da Guiné e ao meu amigo Luis, especialmente, um grande abraço!

Pedro Santos disse...

Bom dia,
Passei recentemente pela região de Gabu e a caminho de Buruntuma encontrei esta ponte e o que pensei ser um memorial aos "Fantasmas de ?????". Faltam algumas letras e não percebi o conteúdo. Agora percebo. O elemento que suponho ser o forno de pão ainda continua lá, tal como se vê na fotografia postada neste blogue.
Mesmo em Janeiro, o Sol arde com força e o isolamento é enorme... Não seria fácil para ninguém aguentar fisica e psicologicamente sequer uma semana ali.
Tenho a fotografia a que me refiro comigo, mas penso que não a consigo colocar neste comentário. Se alguém tiver interesse, por favor entre em contacto pelo email santospp@gmx.com.
Respeitosamente, os melhores cumprimentos