segunda-feira, 4 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14564: Notas de leitura (709): "Cabra Cega - Do seminário para a guerra colonial", por João Gaspar Carrasqueira, Chiado Editora, 2015 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Abril de 2015:

Queridos amigos,
Temos primeiro uma demorada viagem à vida de um seminarista, um itinerário que nos permite fazer comparações com o romance "Manhã submersa", de Vergílio Ferreira.
Assistimos à formação de uma companhia de atiradores e com a rara felicidade o escritor disseca a comunicação entre quatro aspirantes, estão ali o inconformismo, a contestação, a resignação, a indiferença e ficamos com um perfil de um comandante de companhia valdevinos, um adicto dos cabarés da época.
Agora, o narrador desloca-nos para um teatro de operações difuso, algures nas matas centrais da Guiné, as relações humanas borbulham, há um impiedoso comandante de agrupamento em Bafatá que quer resultados a qualquer preço e começam os grandes sinistros. O protagonista é evacuado, ficou com os tímpanos profundamente lesados. E vai regressar e ser colocado perto da fronteira senegalesa, ali perto do marco 133.
Um relato que toma conta de nós, podemos recordar as conversas daqueles anos de 1960 e acompanhar a evolução de um jovem que descobre o horror da guerra, que procura afetos e a estabilidade emocional.
E que tem a vida em suspenso.

Um abraço do
Mário


Cabra-cega, por João Gaspar Carrasqueira (2)

Beja Santos

“Cabra-Cega, Do seminário para a guerra colonial”, por João Gaspar Carrasqueira, Chiadora Editora, 2015, é uma incursão singular na literatura na guerra da Guiné, pelas seguintes razões: assistimos à formação da mentalidade de um seminarista, trata-se de um jovem manifestamente sem educação, que cumpre a vontade dos pais, gente humilde que anseia ver um filho em cargos dignos e sem precisões materiais; aos 20 anos, o jovem declara firmemente que não quer participar nesse embuste, abandona o seminário, trabalha e faz o 7.º ano; vem o chamamento para o curso de oficiais milicianos, integra-se numa companhia de atiradores e parte para a Guiné, onde será ferido em combate, não sem antes ter vivido riscos e peripécias como andar sozinho à procura do caminho do regresso, depois da debandada dos seus homens. Dá para perceber que João Gaspar Carrasqueira é o pseudónimo de alguém que se quer camuflar, a carpintaria literária não ilude que estamos perante uma narrativa confessional e não de um Carrasqueira que recebeu a incumbência de António Aiveca, o forjado protagonista de toda esta trama. E a singularidade extravasa para os ingredientes da narrativa: as conversas entre aqueles quatro alferes da companhia de atiradores espelham a sério mentalidades e atitudes daqueles jovens, a linguagem é crua, aquele calão era o traço de unidade, a forma de comunicação na caserna e na parada. Em suma, um livro convincente, íntimo, um jovem transformado em joguete do destino, com os seus momentos de desencanto, de amargor, a arrancar das vistas a vontade de sobrevivência.

Numa patrulha de reconhecimento, depois de um tiroteio, vê-se só, os seus retiraram, fazendo das fraquezas forças, serena e põe-se ao caminho, a ouvir as vozes dos guerrilheiros, no seu encalço. Acachapa-se durante a noite, procura orientar-se, ouve outras vozes, julga tratar-se de uma tabanca próxima, o corpo falece:  
“A pele das mãos estava toda encarquilhada pelo contacto com a água. O mesmo devia suceder-se com os pés, devia ter todo mirrado e encolhido. Sentia nas mãos, nos braços e pelo corpo toda uma imensa comichão. Estava cheia de bolhas e ampolas, só as via nos braços e nas mãos mas devia estar por todo o corpo. Muito tempo esteve a sentir-se um nojo completo, sobretudo uma merda da cintura para baixo, uma presa para os mosquitos e as moscas”.

E então surge uma luminosidade por detrás das palmeiras, uma neblina leitosa a empastar a bolanha. Procurou um caminho para o rio, atravessou-o, e depois de muito caminhar chegou a uma tabanca amiga. Para sua surpresa, desconfiarão do que andou a fazer. O coronel de Bafatá queria todas as informações, António Aiveca tinha sido um instrumento da Operação Cabra-cega para confirmar a existência de uma base terrorista.

A vida operacional prossegue, algo mudou nas relações entre o comandante de companhia e António Aiveca. Nunca saberemos em concreto onde se situam estes teatros de operações, a única referência dada é de que estamos no centro da Guiné. Os comandos, em Bafatá, exigem uma mentalidade ofensiva, e o inimigo dá réplica. Numa dessas operações, entram numa base e António Aiveca dá consigo a entrar numa escola onde a professora lhe faz frente com uma arma, o alferes liquida-a. O nome da professora, Abess, nunca mais lhe sairá do pensamento. Já leva quatro meses de Guiné, sempre em bolandas até que a morte do capitão Mendonça e o seu ferimento irão mudar brutalmente o curso dos acontecimento. Os picadores tinham detetado uma mina anticarro, Mendonça queria apanhá-la, estava excitado, queria ser ele próprio a levantá-la, e a tragédia irrompeu em cena:
“O trovão e a faísca rápidos que o lançaram no vazio, sem passado nem presente, nem nada pela frente. Não sentiu dor ou sofrimento, não teve qualquer pensamento. Era a forma rápida de sair da vida para o nada.
Não soube nem deixou de saber o que se passara, não soube se morrera ou se ficara ferido, não soube se foi para o inferno ou para o céu, não viu o velho das barbas nem o cornudo de rabo comprido. Houve momentos em que não existiu.
Levantou-se e veio ao pé o capitão também deitado. Não se mexia, a farda tinha desaparecido quase toda, a perna direita estava pegado ao joelho por uma tira de pele, os testículos estavam desfeitos”.

E ele deitava sangue dos ouvidos, é evacuado para Bissau e daqui para Lisboa. Vão ser meses de dormência, está em tratamento, é como se vivesse em estado intermédio, a guerra não acabou, retoma a vida noturna, os ouvidos lembram-lhe que a sua vida mudou:
“Passou todas as segundas, quartas e sextas de manhã no Hospital Militar. Foi tira penso e mete penso nas feridas que tinha dos estilhaços. Mas o pior era o esgravatar doloroso em que se empenhavam nos ouvidos, despejando depois para dentro deles uma porcaria que não via, mas que pareciam torrentes de água, umas vezes quente outra fria, a penetrar por toda a cabeça e pescoço. Saía sempre atordoado e, quando na rua, o ruído dos carros que passavam, e até os seus próprios passos, ribombavam-lhe na cabeça como trovões”.

Passa as tardes no cinema, as noites na ramboia. Começa-se a encontrar com Norberto, um camarada que se descobriu que é hemofílico e também revolucionário e que procura atraí-lo para a subversão. Ao fim de oito meses comparece numa junta médica, é dado como apto para todo o serviço, vai regressar à Guiné, fica colocado no Depósito Geral de Adidos. Informado que um dos seus soldados, de nome Gabriel, está no anexo do Hospital Militar, em Campolide, vai visitá-lo. A descrição é devastadora:
“À medida que ia andando, espreitava para os quartos e camaratas. O que via deixava-o estarrecido e sem fala, não havia palavras perante tal panorama. Viu homens sem pernas, outros sem braços, uns cegos e, destes, alguns sem mãos ou sem braços também”.

Enquanto ouve o que Gabriel tem para lhe contar vai olhando à volta e conversa com gente esfacelada, estropiada, ouve relatos pungentes. Recebe uma guia de marcha para embarcar no Uíge. Desembarcado em Bissau, apresenta-se na Repartição de Pessoal do Quartel General. Um capitão informa-o:
“Você vai ser colocado numa companhia do recrutamento da Província que está lá em cima, ao pé do Senegal”.

(Continua)
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Nota do editor

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1 comentário:

João Carlos Abreu dos Santos disse...

... já tod'àgente entendeu, que Aiveca é Carrasqueira, e que Carrasqueira é António Manuel Marques Lopes 'himself'...