sexta-feira, 8 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14586: Notas de leitura (710): "Cabra Cega - Do seminário para a guerra colonial", por João Gaspar Carrasqueira, Chiado Editora, 2015 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Abril de 2015:

Queridos amigos,
Temos agora António Aiveca algures no Norte, percorre amiúde a fronteira senegalesa, comanda um grupo de combate de Balantas.
O autor reserva-nos aqui uma surpresa, alguns dos melhores diálogos têm aqui lugar, e Aiveca deixa transparecer que toda esta guerrilha e contraguerrilha é uma infinidade de equívocos, faz sentir que há por ali um beco sem saída.
E depois regressa a Lisboa, descobre que o mundo não esperou por ele, cada um foi à sua vida, mas descobre uma coisa pior: depois deste longíssimo jogo de cabra-cega, desde o seminário até ao fim da guerra, não sabendo ainda para onde se virar, sabe que tem que contar com ele, o passado já nada mais é que uma memória.
Um livro cativante, leitura a recomendar.

Um abraço do
Mário


Cabra-cega, por João Gaspar Carrasqueira (3)

Beja Santos

Insisto que “Cabra-Cega, Do seminário para a guerra colonial”, de João Gaspar Carrasqueira, Chiado Editora, 2015, traz algo de novo à literatura memorial da guerra da Guiné. Logo a formação do seminarista e o seu mergulho na formação de atirador de infantaria, tudo se exprime numa linguagem contida, frases sóbrias, o jovem de famílias pobres, vai para os 20 anos, recusa-se a prosseguir um itinerário para o qual não tem vocação, faz o 7.º ano e vai para Mafra, no cumprimento de uma chamada para a qual ele não tem uma explicação em contrário. Depois, assistimos a uma aclimatação, o ex-seminarista acompanha o comandante de companhia na estúrdia, descobre que há um mercado da carne em vários bares de Lisboa e até participa numa bacanal, é uma descrição incomparável onde prima a ingenuidade e o toque farsola. E quatro meses na Guiné, um regresso com os tímpanos avariados, vamos conhecer a retaguarda onde jazem os sinistrados, aqueles escombros que são discretamente escondidos à opinião pública. E meses depois, de novo apurado para todo o serviço, regressa à Guiné, é colocado numa companhia de recrutamento local, algures perto do Senegal. Digo algures porque nunca se sabe onde reside e combate o alferes António Aiveca.

Alguns dos melhores diálogos da obra situam-se neste período. Há profundo desencanto na convivência com este capitão e alguns dos alferes. Logo vão começar os patrulhamentos, assim que ele toma conta do seu pelotão constituído por Balantas, Spínola quer que nestas companhias de caçadores haja separação das etnias, porque há melindres e processos culturais que podem provocar o choque interétnico. Um dia uma vaca trazida por carregadores do PAIGC pisou uma mina, houve rancho melhorado no dia seguinte. Aiveca passou pelo refeitório para saber se os seus soldados estavam satisfeitos, veja-se a importância do diálogo: “
- “É baca-brutu!”, soltou o Incanha.

Gerou-se uma confusão. Na mesa ao lado dele o Akadite protestava vivamente virado para o Incanha.
- “Mas o que é que aconteceu?”, admirou-se o capitão.
- “Estou a ver que o Incanha fez asneira”, disse Aiveca.

Levantou-se e foi às mesas deles.
- “O que é que há?”.

O Otcha estava calmo e foi ele que respondeu. Estava bem em português e sabia explicar-se bem.
- “Meu alferes, baca-brutu é uma dança que os Biajgós mais novos fazem com uma máscara de vaca selvagem. O Akadite é Bijagó e não gostou, porque para eles é sinal de coragem. Nada tem a ver com esta carne dura”.
- “Ah, é isso”.

Aiveca crisma o seu grupo de combate de “Jagudis”. Vê-se que o autor fala dos seus homens com contido carinho: “O Watna, o Sumba, o Bidinté, o Abna, o N’dafá, o Kuluté, e outros, eram normais, sem nada de especial. Mas havia uns que se distinguiam. Por exemplo o Falcão que era o apontador da metralhadora ligeira. Apresentava um rosto sempre com ar de dureza e usava umas botas de borracha, chovesse ou fizesse sol. Tinha voz seca mas não era conflituoso. O André Gomes, a quem chamavam o professor porque estudara no Liceu Honório Barreto antes de ser recrutado, que era de etnia Balanta mas cristão. O Blétche Intéte, aquele a quem dera um murro por ter abandonado o posto, pequeno de altura mas entroncado, ficara seu amigo, talvez por isso. E Otcha, Fula no meio de Balantas, distinto só por isso, porque, sempre sereno e com voz calma, ia ganhando a simpatia de todos. Mas o caso deveras singular era o de dois irmãos, o Etudja e o Moba. O Moba, apontador de morteiro 60, era um matulão com cerca de um metro e oitenta, e o Etudja não devia ter mais do que um metro e sessenta e cinco. Além disso, este era mais novo, um rapazinho meigo e de boas falas enquanto o Moba era um brutamontes sempre sério e pouco atreito a amizades”.

Vão apanhando civis, cultivadores de bolanha, Aiveca vai-se apercebendo do absurdo daquela guerra, aquele somatório de mortes inúteis. É nisto que chega a mulher do capitão Alves, D. Eugénia, a senhora viera convencida de que o marido estava em território pacífico, acabou por viver uma flagelação monumental ficou em estado de choque. Os patrulhamentos são intermináveis, sucedem-se as tensões na fronteira, até com os gendarmes senegaleses.

Ao fim de dez meses passados no Senegal, parte para Bissau, o fim da comissão está próximo. Em Bissau vive um tempo de fúria, frequenta a casa da Fatinha. No regresso da Guiné, volta para casa dos pais, os irmãos já lá não vivem. Procura Júlia, uma relação de outrora, envia-lhe em primeiro lugar uma carta de amor. É recebido com indiferença, em casa da Júlia já lá está um matulão de grande arcaboiço.

Tudo mudara, havia mesmo um passado que não se transferira para o seu presente. E assim se resume o seu estado de espírito: “Os pensamentos são claros quando projetados no céu escuro. As estrelas calmas e as luzes suaves da cidade lá no fundo do parque ajudavam. Como foi a noite na bolanha e a solidão noturna no seminário. À noite não há jogo de cabra-cega, não há venda nos olhos. Era quando conseguia ver tudo”. Parece estar pronto a encetar uma nova vida, a deitar para trás sofrimentos pretéritos. Mas o livro termina, não lhe vamos conhecer os planos, o que fará depois, o título não nos defrauda, está tudo entre o seminário e a guerra, um encadeamento de deceções e melancolias mas igualmente de grandes revelações, porque no jogo da cabra-cega pode aprender-se muito, fora testado em quatro meses convulsivos que precederam a sua evacuação, houve depois aquele compasso de espera em Lisboa em que se movimentou entre o trabalho do sexo e a visão daqueles que ficaram destruídos pela guerra, regressou para um território de absurdos, descobriu que havia fronteiras imaginárias e cumplicidades étnicas inultrapassáveis e questões africanas que ele não podia resolver. Aprendera a desenrascar-se, aquela noite em que andara perdido na operação Cabra-Cega fora determinante. Tinham-lhe dado empurrões para o desorientar, regressara e ainda não sabia para onde se virar. Um depoimento a ter em conta.

Pena é que o autor, à semelhança de tantos outros, manifeste em dado momento cansaço e vontade de acabar a escrita, descrevendo episódios onde o leitor fica confuso. Na badana do livro, diz-se que Aiveca foi militante de algumas organizações que lutavam contra o regime e a guerra colonial. Aliás, no livro aparece Norberto, elemento de oposição e com vida clandestina, jamais perceberemos como se urdiu tal cumplicidade. É pena, João Gaspar Carrasqueira (ou quem se acoberte à sombra deste nome) tem manifestas potencialidades para ir mais longe na literatura memorial.
____________

Nota do editor

Vd. postes de:

1 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14552: Notas de leitura (708): "Cabra Cega - Do seminário para a guerra colonial", por João Gaspar Carrasqueira, Chiado Editora, 2015 (1) (Mário Beja Santos)
e
4 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14564: Notas de leitura (709): "Cabra Cega - Do seminário para a guerra colonial", por João Gaspar Carrasqueira, Chiado Editora, 2015 (2) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

João Carlos Abreu dos Santos disse...

... já tod'àgente entendeu, que Aiveca é Carrasqueira, e que Carrasqueira é António Manuel Marques Lopes 'himself'...