domingo, 12 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14869: Memória dos lugares (305): A vida também corre como um rio (Juvenal Amado)

1. Em mensagem de 2 de Julho de 2015, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), fala-nos dos rios da sua vida:


RIOS HÁ MUITOS, MAS ALGUNS FICARAM MAIS NA NOSSA MEMÓRIA

Na minha terra existem dois rios que se juntam, um vindo de Nascente e outro vindo de Poente formando assim um só rio denominado Alcobaça. São rios dóceis quase inexistentes praticamente tapados por arbustos que crescem nos seu leitos e margens durante grande parte do ano, mas no entanto, não deixam de crescer avolumar-se quando as chuvas caiem nalguns anos com maior precipitação sobre toda zona de Alcobaça.


Local onde se juntam o Alcoa e o Baça

Nessas alturas as águas descem as encostas engrossam ribeiros que por sua vez descarregam no rio Baça ou no Alcoa provocando cheias, prejuízos, inundações em habitações, interrompem estradas e caminhos, inundam os campos de cultivo que vão desde Mendalvo até aos campos da Fervenç com as outrora famosas Termas da Piedade, aos do Valado dos Frades, Cela Nova e por fim à sua foz na Nazaré, onde o mar fica barrento durante o tempo em que duram as chuvas.

É uma atração ir à Cela Velha, e lá do alto, admirar os campos todos encharcados pelo então rio Alcobaça, onde desapareceram os canais de irrigação para a agricultura e por vezes só se vêm as árvores de fruto acima do nível das águas. Quando vivia na Av. Bernardino de Oliveira onde morei entre 1962 e 1980, o rio Baça, que nasce na localidade de Vimeiro, passava do lado de lá das casas e da estrada. Nessa altura inundava os terrenos e lembro-me bem da aflição dos moradores do pátio do Joaquim do Talho mesmo à entrada da minha rua, também popularmente conhecida por Portas de Fora, quando as águas o invadiam a ponto de pôr em risco as moradias ao nível térreo. Não podíamos ir à Fonte Nova, que para além de local de namoro para os/as alcobacenses, também tinha água corrente e servia de passeio no Verão ir buscar água numas bilhas de barro, que a mantinham fresca.

Dizia-se que quem bebesse água daquela fonte ficaria para sempre ligado à outrora vila de Pedro e Inês e daí o poema da canção que Tavares Belo escreveu e a cantora Maria de Lurdes Resende imortalizou, que diz “Quem passa por Alcobaça/ Não passa sem lá voltar”.

O rio atravessa grande parte da hoje cidade, por baixo de algumas ruas e acabava por galgar por cima da ponte, invadir a Av. João de Deus, arrastando alguns carros, pois os muros que o apertavam, acabavam por ceder. Também ali exercitei a pontaria com espingarda pressão-de-ar atirando às ratas, que eram quase do tamanho de coelhos bravos e quem sabe, se não devo a isso a boa nota que tive na carreira de tiro em Coimbra durante a recruta.

As águas do Baça também invadiam tumultuosas o próprio Mosteiro, onde os monges construíram no curso do rio uma extracção de água, apelidada de Mãe de Água. Este foi o ponto de partida de uma canalização de 3,2 km, na sua maior parte subterrânea, que abastecia o Mosteiro com água fresca e limpa.

O Rossio pagava a factura durante os Invernos mais rigorosos e ficava cheio de lama e pedras que desciam empurradas pelas águas desde a encosta da Vestiaria ou do Casal Pereiro galgando passeios e entrando nas lojas e acabando por engrossar caudal, que por vezes o rejeitava de tão espartilhado estar, que saía pelas grelhas dos biqueirões ou pelas pias de despejo das casas mais baixas .

Quanto ao rio Alcoa, nasce em Chiqueda, era também atracção quando o seu nascente rebentava nos Olhos de Água ou Poçoão e as rápidas cheias que provocava. No Verão tomava-se banho nalguns locais e as mulheres iam lavar a roupa disputando o sítio e enxotando a garotada. Aí rio tomava a alcunha do dono das terras por onde corria e passava a chamar-se rio Narciso, ou Aníbal, num local que fica perto da Junta Nacional dos Vinhos. Era à vontade do freguês.

Lavadinha

Rio Alcoa

Rio Alcoa

O rio Tejo também está para sempre ligado às minhas visitas aos meus tios na rua da Saudade, onde através da janela da cozinha eu via o rio e os barcos que lá navegavam. Saborosas foram também as travessias até Cacilhas no cacilheiro e a esperança de ver algum golfinho. Mais tarde este rio ficou associado a momentos dolorosos como a partida do meu irmão para Moçambique e mais tarde, a minha própria partida para a Guiné.

Mas como era de prever ao ir para a Guiné deixei para trás o rio da minha terra, mas os rios continuaram a fazer parte da minha experiência além Mar, embora não houvesse nenhum em Galomaro.

Naveguei cinco vezes no Geba, deliciei-me com abundância de água no pelo Corubal que banhava o Saltinho.

O Geba era uma artéria viva e indispensável ao reabastecimento da zona Leste e navegava-se até ao Xime ou até Bambadinca. Em Bafatá era majestoso e dava beleza à cidade.

Haviam porém, rios pequenos daqueles que nós nos esquecemos que existem, pois eram insignificantes durante quase todo o ano, até que chegavam as chuvas e se tornavam num bico de obra.

Havia um desses rios no caminho para Cancolim, que nos deu como se pode chamar água pelas barbas, quando tentávamos abastecer a Companhia 3489. Mal começava a chover, o malvado engrossava e corria rápido por baixo de uma pequena ponte, que tinha parte do tabuleiro danificado por uma mina com que o IN tentou destrui-la. Ora só tínhamos lugar para as rodas das viaturas passarem e quando a águas submergiam a ponte, nós deixávamos de ver o trilho.

Era então preciso que os camaradas que iam fazer a escolta, dessem as mãos uns aos outros e assim com água pelo o peito, indicarem-nos por onde podíamos passar. Não era fácil para eles nem para nós. Eu tirava as botas e as cartucheiras não fosse o diabos tece-las.

Depois de passarmos, mais atascanço menos atascanço, lá chegávamos a Cancolim e começávamos a fazer contas de cabeça a respeito do regresso, pois o problema do rio estava lá à nossa espera, a não ser que entretanto, as águas baixassem facilitando assim o nosso regresso.

Uma vez o rio encheu de tal forma que não houve nada a fazer e as mercadorias tiveram que ser passadas em botes e carregadas em viaturas do lado de lá.



Como se pode ver, os rios foram uma constante na minha vida, mas a melhor experiência com eles, foi a minha viagem do Xime para Bissau quando o 3872 em Março de 1974 foi rendido. Pudera, era a peluda que se aproximava à medida que nós embarcamos e descemos aquele rio barrento, de cor acinzentada, na direcção de Bissau.

Cantávamos então: Galomaro/Tem mais encanto / Na hora da despedida, com música de uma conhecida balada de Coimbra logo seguida de Cheira bem / Cheira a Lisboa...

Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14868: Memória dos lugares (302): Rio Grande de Buba, calmo e soberbo, de água salgada, que nasce no mar ao largo de Bolama e acaba em Buba (Francisco Baptista)

2 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro Juvenal
Voltaste a pegar na questão dos "rios da nossa vida" e fizeste bem.
Não se trata de "amor ou ódio" pois trata-se apenas de 'acontecer ou não acontecer' e como é natural as circunstâncias é que podem determinar como a nossa memória relembra.

Do que escreves quero apenas referir dois pequenos apontamentos:
o primeiro tem a ver com a tal famosa canção de que "quem passa por Alcobaça/ não passa sem lá voltar". Não se refere à água dos rios, certamente!
o outro, mais 'à séria', tem a ver com o teu relato sobre o modo como 'resolviam' o problema logístico da passagem do trilho submerso, com 'cordão humano'.
Será que alguém, hoje, consegue imaginar e realizar isso?

Abraço
Hélder S.

Gil disse...

Belo texto, Juvenal.

V Briote