terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19507: Recortes de imprensa (102): "Diário de Notícias", 3/2/1966: o cão da CCAÇ 617. um bravo Boxer, que se bateu como um leão (João Sacôto / José Martins)


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) > O valente Toby, um boxer... Ferido em combate, sobreviveu e regressou a casa com os seus "camaradas de guerra"... Infelizmente, e para grande desgosto do João Sacôto, teve de ser abatido por doença grave, infecciosa, contraída no TO da Guiné.  O João nunca mais voltou a ter um cão. "Amigo, guarda-costas, camarada"... são alguns dos epítetos que o seu dono a ele se referiu, em conversa que tivemos ao telefone... Acompanhou o João em diversas operações, e nunca o largava, nomeadamente quando o dono, sozinho, se embrenhava no mato para fazer as suas necessidades... Ficava de sentinela, não fosse o diabo tecê-las!... Um história, tocante, que faltava no nosso blogue...

Foto (e legenda): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Recorte do "Diárrio de Notícias", 3/2/1966

Fotos (e legendas): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


O Toby, junto com a malata da CCAÇ 617, desembarcando em Bissau,
em 15 de janeiro de 1964. Foto de João Sacôto (2019)
1. Mensagem de João Gabriel Sacôto Martins Fernande, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66),comandante da TAP reformado:

Data / Hora - 11/02, 14:45


Assunto - o meu cão Toby


Luis:

O meu cão Toby (*) era muito acarinhado pelo pessoal do batalhão [, o BCAÇ 619,] e famoso entre a população local de Catió. Regressou a Lisboa comigo, como documenta o "Diário de Notícias",  de 03/02/1966 (em artigo jornalisticamente trabalhado por excesso…) .

Acompanhou a companhia em algumas operações, assim como me fez companhia nos destacamentos que fiz em Ganjola e claro também nos acompanhou no último destacamento da CCAÇ  617 no Cachil, ilha do Como.

Quando foi ferido, durante uma das nossas operações [, no Cantanhez], não nos apercebemos da situação e foi só no dia seguinte que uma patrulha o avistou ao longe e estiveram a pontos de lhe dar um tiro, julgando tratar-se de uma gazela ou outro animal selvagem. Felizmente alguém gritou “Não atirem, é o Toby”. Encontrava-se quase desfalecido na berma da estrada já perto do quartel. A sua recuperação foi longa pois a sua fraqueza não lhe permitia nem levantar-se, nem alimentar-se normalmente. Foi recuperando as forças lentamente, alimentado com papas de farinha diluída em água que lhe ia dando com a ajuda de uma colher. 

Em boa verdade, ao contrário do que conta o jornalista, não foi operado, por decisão do nosso médico que achou ser preferível que as feridas com entrada e saída da bala fossem fechando lentamente e de dentro para fora, evitando uma infeção que poderia ocorrer, caso fosse suturado.

Um agradecimento ao José Martins.
Um abraço,  
JS


2. Mensagem do nosso colaborador permanente, José Martins, em complemento da mensagem anterior:

Data - segunda, 11/02, 18:51


Assunto - O  “cão-praça Toby”

Não estranhem o título.

No tempo em que a cavalaria era a cavalo, que os oficiais de  infantaria se deslocavam em cavalos e a artilharia era de tracção  animal (solípedes), os animais eram considerados “cavalo-praça” a que
se seguia o seu número de ordem.

Tinham direito a uma verba para alimentação e, era corrente nos  jornais de localidades em que existiam regimentos, haver concursos  para “fornecimento de forragens e palha”.

Veio isto a propósito de um recorte de jornal, devidamente explicado,  publicado no Diário de Noticias de 2 de Fevereiro de 1966, há portanto  53 anos [, reproduzido acima

A história vai ser escrita/contada pelo Luís mas, não me escuso de  antecipar um comentário, com base na notícia e descrição feita pelo  Sacôto.

Se o Toby tivesse nascido na terra do Tio Sam, hoje teríamos, nos anais militares, a existência do “cão-praça Toby” com direito a verba para a alimentação e coleira e trela fornecida pelos Serviços de
Material, depois de confeccionada por algum Sargento Artífice Correeiro.

Como cita o tratador, o referido cão-praça foi ferido em acção de combate, tendo desaparecido no decurso dessa operação. Em situação normal, dentro da anomalia da guerra que todos vivemos, ao ser dado como desaparecido em combate, o mesmo teria sido objecto de menção na Ordem de Serviço e, provavelmente, os helis teriam levantado para “bater o terreno de operação”.

Como foi recuperado em condições físicas graves, teria direito a ser socorrido num hospital VET. Como caso raro, seria posteriormente recebido pelo General Comandante-chefe e Governador da Província, para lhe colocar numa “Casaca bordeada a ouro” que seria confeccionada numa
qualquer rua de Bissau, uma condecoração.

Digam lá: Era um grande Ronco, não era?

Gandabraço
Zé Martins


3. Nova mensagem do João Sacôto,  com data de 11/02/2019, 19:24  



Obrigado José Martins. Gostei.

O fim da historia é um pouco triste:

Alguns meses após o nosso regresso da Guiné, o Toby  adoeceu. A sua doença foi-se agravando até que o levei ao veterinário que lhe diagnosticou uma infecção generalizada do sangue derivado dos imensos ataques dos famigerados mosquitos da Guiné.

Por mais esforços que eu fizesse, tentando protegê-lo dos ataques que ocorriam durante a noite enquanto dormia, pela manhã, no lugar em que tinha estado deitado, era notável uma mancha de sangue, creio que dos mosquitos por ele esmagados quando em desespero se voltava no lugar que lhe servia de leito.

Sem condição de cura da enfermidade, fui confrontado com a solução posta pelo médico veterinário de pôr termo ao seu sofrimento, aplicando-lhe a eutanásia.

Foi para mim muito doloroso mas foi também um acto de solidariedade pondo fim ao sofrimento do “cão-praça TobY”, meu amigo e "camarada de armas”.

Um abraço,
JS
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9 comentários:

Valdemar Silva disse...

Também houve outros cães, mas com direito a uma boa verba diária para a alimentação e tratados como uns lordes. Foram os cães da policia de choque de triste memória.
Essa 'rapaziada' e os cães estacionaram no Quartel em Silvalde-Espinho para actuarem no 31 de Janeiro de 1968, na cidade do Porto.
A minha CART 2479 também estava nesse Quartel a tirar o IAO antes de embarcarmos em Fev1969 para a Guiné.

Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Valdemar, tens toda a razão: há cães e cães... O cão, o animal que é considerado "o melhor amigo do homem (e da mulher)", tal como o homem (e a mulher) também pode ser forma(ta)do para o bem e para o mal, para a paz e a guerra, para as funções mais nobtres e as tarefas mais horrendas... Hà cães e ... mastins. Tal como há homens (e mulheres)... e bestas!

Um bom dia para ti!

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Tanto quanto sei, o Toby não era um cão de guerra como os da companhia dos "Lassas", do Mário Fitas... Foi um animal de companhia que foi á guerra o dono... Estava na casa dos pais do João, na Amadora. Julgo que não teve nenhum treino especial para "aguentar" dois anos de Guiné... O João nunca mais teve nenhum cão, até por que passou a viver em Lisboa num apartamento.

J. Gabriel Sacôto M. Fernandes (Ex ALF. MIL. Guiné 64/66) disse...

Camaradas:
Confirmo o que diz o Luis. O Toby não era um cão de guerra, nem para isso teve qualquer treino, como tiveram os cães do Cap. Costa Campos na CC 763 em Cufar (aliás, cães também muito acarinhados pelo pessoal da companhia como atesta o Mário Fitas). O Toby partiu de Lisboa para me fazer companhia e sem mestre adaptou-se muito bem ás situações e circunstâncias próprias daquela guerra, ao ponto de não desmerecer os epítetos lavrados muito a propósito e com humor pelo nosso camarada José Martins.
Um abraço do,
JS

Anónimo disse...

Gostei da história do Toby, aliás já em tempos escrevi neste espaço sobre os cães que lá deixámos...
Um abraço.
BS

Cherno Baldé disse...

caros amigos,

Durante a primeira fase da Guerra, se assim se pode dizer (1963/68), era frequente encontrar nos quarteis caes da tropa, alguns seriam metropolitanos como o caso do Toby, mas penso que outros seriam locais.


Nos (JUBIS dos quarteis) nao gostavamaos dos caes dos quarteis e acho que isto era reciproco, porque ainda me lembro de algumas "guerras" que tivemos de travar com eles dentro e fora dos arames farpados. E regra geral, a tropa se divertia muito quando um ou outro cao conseguia romper os calcoes a um dos miudos no preciso momento em que este lutava para furar os arames. Mas ficavam furiosos quando eram os miudos que levavam vantagem atirando pedradas ao animal. Os miudos, também, nao se perdoavam uns aos outros, pois houve muitos casos de miudos que ganharam uma alcunha apos uma experiencia dolorosa de ter de escolher entre os picos dos arames farpados e os dentes afiados de um cao de quartel em furia.


Curiosamente, ja no decurso dos ultimos anos (1972/74), a presença dos caes foi diminuindo, tendo sido substituidos pelos macacos, como mascotes e animais de estimaçao.

Os macacos também nao apreciavam a nossa presença no quartel, certamente porque discutiamos pelo mesmo espaço e tinhamos que dividir os restos do rancho e do afecto dos amigos que, as vezes, eram escassos. Lembro-me de levar uma valente mordidela de um pequeno, mas bravo macaco vermelho (Santchu fula) que era o mascote do pessoal da Ferrugem, ao tentar roubar-lhe qualquer coisa que agora nao me lembro. Mas, ao contrario dos caes, os macacos tinham residencia fixa numa arvore ou numa casinha, pelo que estavam em clara desvantagem em relaçao aos miudos.


Com um abraço amigo,


Cherno Baldé

Anónimo disse...

Caros Camaradas,

Como adenda ao acima referido, cito o que consta no livro do Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974) – 6.º Volume; Tomo II, pg 190:
“Em 15Jan [1964], chegou a Bissau o transporte de tropas “Quanza” com novas Unidades (BCaç 619, com as CCaç 616, 617 e 618, Pel Mort 942, Pel AAA 943 e Secção de Cães de Guerra nº 946) …”.

Que tenham um bom dia.

Um abraço,

Jorge Araújo.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Confesso que...

ainda hoje tenho "insónias" quando penso na Operação das Facas Longas... Vou levar comigo, quando morrer, a memória dessa noite em que abatemos, a tiro, de pistola Walther, todos os cães vadios que, às dezenas, viviam no grande quartel de Bambadinca, e cujo "crime" era apenas o de...não nos deixar dormir...

Se houvesse um Tribunal Internacional de Haia para os Crimes contra os Animais, eu já lá teria ido parar, juntamente com o meu camarada de quarto, o ex-fur mil op esp Humberto Reis e o então major art BB (Barros e Bastos), que foi o condutor do jipe... O major conduzia o jipe, eu localizava os cães, e o HUmberto dava-lhe o tiro de misericórdia... Não sei se havia mais cúmplices...

Isto passou-se já em meados de 1970, ao tempo do BART 2917 (1970/72), que sucedeu ao BCAÇ 2852 (1968/70)...Estávamos todos (, a malta da CCAÇ 12, os nharrros de 1ª e de 2ª classe...) apanhados do clima... Vínhamos estoirados do mato, de operações atrás de operações, os malditos dos cães uivavam como lobos esfaimados ou no cio... UMa noite perdemos a cabeça, e decidimnos "limpar" o quartel... NO dia seguinte, a parada parecia um matadouro...

Espero que esta horrível história nunca chegue aos ouvidos do PAM - Partido dos Animais e da Natureza... Não sei se o nosso "crime" já prescrevei... Mas eu ainda hoje ando a expiá-lo...

Evoquei-o e tentei exorcizá-lo num dos meus poemas, "Esquecer a Guiné"


(...) Esquecer a Guiné... por uma noite!
As bombas de napalm
Carbonizando cada centímetro quadrado de vida,
Lá longe, em Sinchã Jobel,
Na ZI do Com-Chefe.

As insónias às três da manhã,
A hora mortal da madrugada.
Os famélicos cães vadios
Que um dia abatemos a tiro,
Um a um,
Depois de loucas correrias de jipe
À volta da parada.
No manicómio de Bambadinca.

Um a um,
Às tantas da madrugada,
Com tiros de pistola Walther na cabeça.
Sem dó nem piedade.
Pela simples razão
De que... não nos deixavam dormir.
A mim, a ti, ao major.
A todos nós, almas penadas...
Chamei-lhe a Operação
Noite das Facas Longas. (...)


Nessa noite nem o pobre do Chichas, que era a nossa mascote (!), escapou da morte anunciada... Segundo esclarecimento posterior do Humberto Reis [vd. poste de 16 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXII: Op Noite das Facas Longas ], meu camarada da CCAÇ 12 e meu companheiro de quarto em Bambadinca, "o cão, que dormia à porta do nosso quarto, era o Chichas, alcunha vinda do 2º sargento corneteiro do BCAÇ 2852, que também era o Chichas. O condutor do jipe nessa Noite das Facas Longas era o major de operações do BART 2917 (o tal que mandou ir para lá a mulher quando se casou) e o assassino... fui eu".

10 DE JULHO DE 2008
Guiné 63/74 - P3044: Estórias avulsas (3): Os cães de Bambadinca (Alberto Nascimento, CCAÇ 84, 1961/63)


PS - Espero que o pobre do "Chichas", que dormia à porta do nosso quarto, nos perdõe!... Como foi possível "executar" o "Chichas" na Op Noite das Facas Longas ?!...

Esta é um das tristes memórias da Guiné que eu carrego e que nunca contei nem contarei aos meus filhos... Felizmente que eles não leem o Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Confirmo o que diz o Cherno Baldé: os cães vadios que eram atraídos pela "abundância de restos de comida" nos nossos quartéis, eram "odiados" por muita gente, incluindo os "djubis" e os "operacionais" que faziam a guerra... e que precisavam de dormir de vez em quando...

A falta de sono e o stresse físico e psicológico resultante da intensa atividade operacional e à "vida concentraciomnária" dos nossos quartéis na Guiné podem ajudar a explicar alguns destes "surtos de violência" que ocorriam, "quase por geração espontânea", como a Op Noite das Facas Longas... LG