quarta-feira, 11 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20722: (De)Caras (148): O Amílcar Cabral, desde o início e até ao fim, fez tudo para mobilizar os dignitários fulas para a causa da luta, sem qualquer sucesso. E isto não era uma mera coincidência. Os mesmos dignitários, imbuídos de realismo e pragmatismo, diziam-lhe: "Deixem os brancos porque eles são o garante da paz na província e, no dia em que se forem embora, nós vamos recomeçar as nossas guerras do passado recente"... Premonitório: 46 anos depois da independência, continuamos estagnados entre guerras e paz podre... (Cherno Baldé)

1. Comentário do Cherno Baldé, nosso colaborador permanente, ao poste P20720 (*) [, tem mais de duzentas referências no nosso blogue; nasceu em Fajonquito há 60 anos; é um 'homem grande', sábio, a viver em Bissau]:

Caro Valdemar,

Escreves um texto cheio de sentimentos de saudade e também de compaixão para com os vossos recrutas tão jovens, quase crianças. Todavia, olhando bem para vossa foto conjunta, tu apareces com uma maior quantidade de pêlos no corpo, mas também eras quase tão puto quanto eles.

Não deverão ter morrido de velhice, porque eram todos um pouco mais velhos que eu que neste momento estou na casa dos sessenta e não me sinto um velho, provavelmente o stress traumático, durante e depois da guerra, terá contribuído para o desaparecimento precoce desses jovens soldados.

Como é que se fazia o recrutamento nas aldeias e regulados fulas???...

Era simples e ninguém podia recusar. O régulo ou seu representante convocava os chefes das diferentes localidades sob a sua jurisdição e dizia que precisavam de um número X,  a pedido do Governo e o resto ficava a cargo dos chefes das aldeias e um agente da administração onde cada morança listava uma ou duas pessoas da família para o efeito. 

Todavia, os critérios das escolhas nunca eram claros de um lado e do outro. Se os chefes e o agente podiam ser tentados a fazer negociatas, os pais e chefes das moranças, pensando na utilidade no seio do núcleo familiar, procuravam listar os menos úteis nos trabalhos do sustento e reprodução familiar.

Luis, não concordo quando dizes que os fulas "estavam condenados a fazer a guerra....". 

Na minha opinião, longe de ser uma "condenação", era uma opção clara e sem equívocos por diferentes razões de caracter politico-ideológico, de natureza religiosa, do fundamento, motivações e da necessidade da própria luta. 

Não se fala muito disso, mas na verdade o Cabral desde o início e até ao fim, fez tudo para mobilizar os dignitários fulas para a causa da luta, sem qualquer sucesso. E isto não era uma mera coincidência. Os mesmos dignitários, imbuídos de realismo e pragmatismo, diziam ao A. Cabral: "Deixem os brancos porque eles são o garante da paz na província e, no dia em que forem embora nós vamos recomeçar as nossas guerras do passado recente". 

...E 46 anos depois da independência ainda continuamos entre as guerras e uma paz podre que impede o país de avançar para frente.

Valdemar, gostaria de poder ajudar, mas preciso de referências certas sobre as tabancas e regiões de origem. No entanto, receio que seja tempo perdido, pois já se passou muito tempo e nem todos ficaram com boas recordações do seu passado militar, um pouco como acontecia entre vós, até há poucos anos. (**)

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé
_____________

Nota do editor:

(*)  Último poste da série >  10 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20720: (De)Caras (120): O que é feito destes 'putos-soldados' da CART 11 e da CCAÇ 12 ? (Valdemar Queiroz)

6 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Cherno, a maioria dos nossos 100 soldados, quase todos fulas e futa-fulas (que integraram originalmente a CCAÇ 2590 / CCAÇ 12) eram dos regulados do Xime, Badora, Corubal, Cossé...

O Umaru Baldé (c. 1953-2004) era de Dembataco (ou Demba Taco), entre Bambadinca e o Xime... O José Carlos Suleimane Baldé era (ou é, espero ben que esteja vivo!) de Amedalai... Foi dado como "provavelmente fuzilado, em 26 de agosto 1974, em Madina Colhido, Xime (após a entrega do quartel ao PAIGC)", mas felizmente não é verdade...

Esteve, sim, atado ao poilão de Bambadinca, mais tarde, para ser fuzilado, salvaram-no os "homens grandes" (!)... Isso contou-me ele, em 2011. (Visivelmente era uma vítiam do stress pós-traumático de guerra!).

Aqui tens, para recordar, um testemunho emocionado que eu lhe escrevi, quando o apresentei à Tabanca Grande...

Quem nos dava notícia dele (e da família) era o António Fernando Marques, seu comandante de secção, meu camarada e amigo (, vive em Cascais), e que se correspondeu com ele durante anos, tal como o Umaru Baldé; e a dr. Maria Odete Cardoso, técnica superior do Tribunal de Contas, esposa do ex-alf Jaime Pereira, da "2ª geração" da CCAÇ 12 (1971/73), que era madrinha de uma filha dele... Estivemos juntos em Coimbra, em 2011.

Zé Carlos deve continuar a viver em Amedalai, onde há anos também o Mário Beja Santos o foi encontrar... Mantinha na sua morança a bandeira das cinco quinas!

15 DE MAIO DE 2012
Guiné 63/74 - P9903: Tabanca Grande (338): José Carlos Suleimane Baldé, ex-1º cabo at inf, CCAÇ 12 (Contuboel, Bambadinca e Xime, 1969/74)

Juvenal Amado disse...

Amigo Cherno Balde os fulas foram vítimas de campanhas de pacificação pelo poder colonial muito antes da nossa guerra. Os poderes coloniais nunca foram verticais promovem uns em desprimor dos outros. Isso cria clivagens e em virtude disso as injustiças, as reivindicações não tardam e a repressão também não. O que faz pensar que os fulas iam comer e calar, ou os outros iam aceitar a sua ascensão a um poder colonial, que ia tentar eternizar-se. Sabemos como os caboverdeanos eram preferidos nas empresas? E os problemas que acabaram por gerar ciumes pós independência.
E que dizer da situação explosiva cá em Portugal? Quanto tempo acreditas que Portugal ia manter uma economia de guerra onde tudo era gerada pela a mesma? Sem a guerra acabavam os soldados, os milícias os restaurantes, as lojas os cafés e assim a economia sujeita a uma agricultura de subsistência, sem industria sujeita aos vizinhos ou à ajuda internacional por quanto tempo?
Portugal estava sozinho e era uma questão de tempo também
Acho redutor este teu poste.

Um abraço

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Sem querer fazer o papel de "cardeal diabo". a questão que o Cherno põe é provocatoriamente interessante ... Vai claramente contra a "corrente da História", e do "mainstream" da historiografia académica... E se Amílcar Cabral estivesse errado ? E se o Spínola tivesse conseguido levar para a frente a sua "política da Guiné Melhor" ? E se o Amílcar Cabral fosse o primeiro-ministro de uma Guiné portuguesa em transição para a democracia pluralista e a independência no quadro de uma CPLP ? E se a guerra não se tivesse internacionalizado ?

Claro que estes cenários eram impensáveis com os "falcões" e os "ultras" do Estado Novo... Não me repugnaria um período de transição e de experimentação política e institucional... Afinal, a ditadura do PAIGC foi um desastre... E atual democracia pluralista é uma caricatua grotesca... O PAIGC, afinal, não tinha quadros políticos de alta qualidade para construir a Pátria que Amílcar Cabral sonhou e por que lutou...

Parece que hoje seria impensável a defesa da "sociedade senhorial", derrubada pelas revoluções burguesas... O mesmo se passa com o "esclavagismo" e o colonialismo pós-conferência de Berlim, o da partilha do "mapa de África", a régua e a esquadro, como se fosse um bolo que o capitalismo europeu, na sua fase imperialista, abocanhou... Nós não éramos melhores nem piores colonizadores do que os franceses, os ingleses, os belgas, os alemães... E o ser "branco" era um mito... Não mandámos para África os melhores quadros, com exceção talvez de uma elite militar que fez as "guerras de pacificação"...

Depois da conferência de Berlim, andavámos a esfalfar-nos, como a lebre, à frente dos "bulldogs", só para tentar chegar à mesa dos grandes... Apesar dos "pergaminhos históricos", e de toda a nossa "galeria de heróis", éramos muito poucos para gerir os 2 milhões de quilómetros do Império que nos tocou nas sobras... Levou cinco séculos a fechar un ciclo. Pessoalmente, chateia-me ter sido o último soldado do império... Mas a gente não escolhe pai e mãe...

Cherno, fazes bem em afirmar o teu orgulho fula no quadro do novo país que é o do teus filhos e também o teu... E que tem futuro, ainda vai ter futuro, eu quero acreditar que sim.

Cherno Baldé disse...

Caro amigo Luis,

Ha questoes que, as vezes, levam uma vida inteira sem obter uma resposta satisfatoria, mas que nunca calam e continuam a nos perseguir.

A minha questao central sobre o Paigc e o seu estilo de governaçao nasceu de uma cena que assisti em 1975, se a minha memoria é boa, quando tinha mais ou menos 15 anos (esta descrito no P6661 de 30/06/10). A injustiça do acto era tao flagrante que nunca mais consegui libertar-me das questoes que nessa altura afluiram na minha cabeça de criança e, talvez, nesse dia deixei de acreditar na boa fé e nas palavras enganadoras do regime de terror implantado.

O Luis colocou a questao exactamente nos termos em que eu a imaginei ou seja, e dito de outra forma: E se os dignitarios fulas tinham razao???

Eu que durante muito tempo queria perceber as razoes porque os nossos pais tinham ficado do lado dos brancos durante a Guerra colonial, para la da justificaçao claramente insatisfatoria de que os nossos primos mandingas queriam roubar-nos o poder nas terras que antigamente eram do seu dominio imperial, so mais tarde comecei a tentar colocar as mesmas questoes ja de uma forma inversa e aparece esta formulaçao bastante "ilogica" colocada mais acima e que é sujeito a alguma controvérsia, pois no pais é impossivel convencer quem quer que seja que os chefes tradicionais fulas podiam ter razao em nao apoiar uma Guerra que teria fortes probabilidades de resultar num nado morto. Talvez esteja errado e a criar razoes e justificaçoes onde nao existam, mas ao menos tenho uma resposta que é passivel de refutaçao (como diria o Carl Popper na sua teoria de refutaçao) que é nova e diferente das habituais que viam neles simples traidores e "caes dos colonialistas" que a mim nunca me satisfez por completo, certamente devido a um certo orgulho fula, se quiseres.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

Anónimo disse...

Caro Juvenal,

Estou de acordo contigo por estar a colocar as coisas de uma forma redutora, mas hoje esta claro que mais cedo ou mais tarde o territorio seria independente porque mesmo que Portugal quisesse nao poderia navegar contra todos os ventos e mares do mundo, logo nao se justificou toda a violencia, mortes e destruiçao provocados pela Guerra colonial, com a justificaçao de libertar um territorio que, de qualquer modo, acabaria por ser livre e, talvez, independente como aconteceu com a totalidade das colonias antes povoadas no novo mundo.

Abraços,

Cherno AB

Juvenal Amado disse...

Luís põe muitos se.....s. e esses nunca tiveram resposta nem poderiam ter e ele acabava por dar a resposta pois nunca houveram soluções grátis.

Quanto ao último paragrafo em referes as independências do Novo Mundo, penso que merece um reparo, pois os colonizadores destruíram nações inteiras do naturais desses territórios. Hoje há uma pequena minoria de índios, que vivem mais ao menos em reservas sustentadas por casinos. Os naturais americanos foram substituídos por esfomeados irlandeses, noruegueses, ingleses, italianos, russos , polacos, etc que foram para as América em busca de um futuro melhor. A esses foi lhe dada a oportunidade de de ocupar as terras de onde os indios eram escorraçados quase até ao extermínio. No Canadá também os franceses e ingleses dividiram entre sim os territórios e embora a repressão étnica por lá não tivesse sido tão visível, também por lá quase acabaram com eles empurrando-os para o poderoso vizinho.
Dessa história fica-nos o famoso dia de Acção de Graças que acontece quando os colonos estão a morrer de fome e os índios lhes comida . Já sabemos qual foi a paga que os indios receberam.

Mas na Austrália o quase extermínio do povo aborígene não foi há muitos anos e o pedido de desculpas todos nós nos lembramos bem pois foi para aí há 10 anos.

Na América Latina os espanhóis destruíram civilizações inteiras a para dos portugueses acarretaram riquezas imensas para cá que encheram a realeza e o clero de prata oiro e pedras preciosas mais grandes embaixadas ao Vaticano repletas de baixelas preciosas.

Esses países tornaram-se independentes (que começaram durante a ocupação napoleónica da península ibérica) em movimentos comandados por grandes chefes nacionalistas, como Sandino ,Simon Bolivar, talvez equiparados ao Amílcar Cabral, não pela dimensão dos territórios mas pelos sonhos. Que dizer hoje dessas independências onde se alterna entre ditaduras sangrentas e democracias musculadas, na maioria dos casos conforme o que os USA vão deixando, onde os resultados eleitorais são normalmente pervertidos, prendendo os opositores ou não deixando tomar posse o vencedores das mesmas.
Também estes países tardam em chegar ao equilíbrio social e são as clikes abastadas apoiadas em exércitos formados pelo vizinho do norte que põem e dispõem a seu belo prazer.