19 - O ALBERTO
Logo no início da nossa estadia no Ilondé começou diariamente a aparecer à entrada da nossa tenda o Alberto, um guineense de 12 ou 13 anos, humilde e educado, filho de uma das lavadeiras, residente naquela localidade, que sabia ler e escrever, o que lhe dava algum estatuto junto do pessoal pois funcionava como tradutor de crioulo que também nos ia ensinando.
A nossa tenda tinha 8 habitantes e todos gostavam do Alberto. O seu trabalho era reduzido, assentando na varredura diária do chão da tenda e um qualquer recado, a troco de um ou outro peso que lhe íamos dando e, por vezes, de algumas guloseimas que recebíamos de casa.
A esta distância tenho ideia que a nenhum de nós passou pela cabeça que o Alberto estaria feito com o inimigo. Contudo, hoje, acho estranho o seu relacionamento connosco tendo em conta que na localidade moravam dezenas de jovens da mesma idade de cuja existência apenas nos apercebíamos quando havia cinema no quartel. Assim ou assado, estimávamos o Alberto e procuramos sempre ajudá-lo, nomeadamente, fornecendo-lhe com a maior rapidez possível os resultados de cada jornada do campeonato nacional de futebol, disputado na Metrópole, que ele seguia religiosamente através de um caderninho onde apontava os jogos e os respetivos resultados.
Dada a abundância de roupa que não me servia para nada resolvi, um dia, dar umas calças ao Alberto. Ora, na época, os africanos eram muito vaidosos e extravagantes com o vestuário e a roupa tinha que ficar bem justa. Ao vestir as calças o Alberto disse logo que não as queria por serem demasiado largas. Agarrei no Alberto e nas calças e fui a Bissauzinho onde havia alfaiates de rua que logo ali ajustaram as calças ao gosto do cliente. Custou a brincadeira setenta pesos, tanto como pagava mensalmente à lavadeira, mas valeu a pena ver a alegria do Alberto.
Enfim, as coisas mudaram e nunca mais soube do Alberto. Oxalá a vida lhe tenha sorrido.
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20 - O SIPAIO
Era frequente sair a porta de armas, que ficava junto à estrada para Bissalanga ou Quinhamel, e fumar um cigarro debaixo de uma árvore onde alguns elementos da população se juntavam em amena cavaqueira, em crioulo, da qual pouco ou nada entendia.
Gostava daquela gente, que tinha tão pouco e vivia aparentemente feliz. Por razões culturais, que transcendiam o meu entendimento, a riqueza dos homens media-se pela quantidade de mulheres e de animais que possuíam. As mulheres eram consideradas como animais, avaliadas em cotejo com estes, e eram elas que angariavam os meios de sustento da família através do seu trabalho, fosse como lavadeiras fosse como domésticas.
Naquele dia, estava um grupo mais numeroso que o habitual e, entre eles, um sujeito vestido com uma farda que não conhecia e que, pensei, ser uma qualquer autoridade local que designei de sipaio (ou cipaio).
A certa altura, no decorrer da conversa, o tal sipaio afastou-se alguns metros e ajoelhou-se. Tal movimento despertou-me a atenção e pensei que o sujeito ia rezar, mesmo sem tapete. Um minuto depois vejo-o a remexer na terra, levantar-se, sacudir as calças, aproximar-se de novo do grupo e retomar a conversa. Afinal tinha estado a urinar.
Recordei então que, de facto, pelos caminhos da Guiné por onde tinha andado, nunca me apercebi da presença de dejetos humanos produzidos por esta gente e, testemunhando aquela atitude, percebi porquê.
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21 - O EXPRESSO DO ILONDÉ
Diariamente, uma pequena camioneta de passageiros que fazia a ligação Ilondé – Bissau estacionava na estrada, quase em frente à porta de armas.
Uma hora antes da partida, com um calor quase insuportável, já muitos passageiros estavam instalados nos respetivos lugares.
A carga mais volumosa ia no tejadilho a que se acedia por uma escada existente na traseira da camioneta.
Porém, o mais engraçado era o transporte dos animais, principalmente cabras, galinhas e porcos, que iam normalmente do lado da janela ao colo dos seus proprietários, sendo que as cabras se instalavam paulatinamente com o focinho de fora aguardando o arranque da viatura.
Pouco mais tarde, aparecia uma carrinha Toyota, de caixa aberta, que arrebanhava o resto do pessoal que não tivesse tido lugar na carreira normal e, uns em pé, junto à cabine, outros sentados, no chão da caixa, com os respetivos tarecos, lá partiam para Bissau.
Estou em crer que esta carrinha desempenhava a função de desdobramento.
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Nota do editor
Último poste da série de11 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21886: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (6): "A reunião", Os incêndios" e "O prostíbulo"
3 comentários:
Zé João, és um bom observação e tens qualidade de escrita. Seria uma pena estas pequenas histórias do quotidiano da Guné do teu/nosso tempo ficassem esquecidas no "baú"... Ainda bem que, ao fim de meia dúzia, decistes dar continuidadade à tua série...
Tenho-as acompanhado com delícia...
Sobre o que dizes relativamente às mulheres e aos animais, eu no teu lugar não seria tão "etnocêntrico"...
Escreves tu: "Gostava daquela gente, que tinha tão pouco e vivia aparentemente feliz. Por razões culturais, que transcendiam o meu entendimento, a riqueza dos homens media-se pela quantidade de mulheres e de animais que possuíam. As mulheres eram consideradas como animais, avaliadas em cotejo com estes, e eram elas que angariavam os meios de sustento da família através do seu trabalho, fosse como lavadeiras fosse como domésticas." (...)
Ponho-me no papel do Alberto ou de outro míudo ou adolescente guineense no tempo da guerra, e que viviam das nossas "sobras"... Não sou capaz de o fazer, a não ser com muito esforço de imaginação... O Alberto era "papel", não?!... Tal como o Marcelino da Mata e o 'Nino Vieira' ou o Domingos Ramos e outros bravos combatentes, de um lado e do outro... Com a 4ª classe, o Alberto já teria outra consciência de si... e do contexto em que vivia.
Ilondé ficava entre Bissalanca e Quinhamel...Nunca lá fui. Tivemos um soldado mancanha, o Vitor Sampaio, na CCAÇ 12, no meios dos fulas... Foi o campeão das porradas disciplinares... O típico "reguila"...
"Boa pergunta, o que terá sido feito do Alberto ? E de tantos outros miúdos e adolescentes que "conviveram" connosco, sempre numa relação assimétrica de poder...LG
Quando digo tivemos, quero eu dizer, a CCAÇ 12 do meu tempo (1969/71)...Também gostava de saber qual foi o destino do Vitor Sampaio (um mancanha no meio dos fulas...) a seguir à independência...
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