sexta-feira, 11 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23068: Notas de leitura (1427): “Amílcar Cabral - Pensar para Melhor Agir”; edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Para quem pretende estudar ou aprofundar conhecimentos sobre o pensamento, a ideologia, as qualidades de liderança de Amílcar Cabral, este punhado de intervenções feitas num Seminário de Quadros, que decorreu em Conacri, de 19 a 24 de novembro de 1969, é uma excelente oportunidade até pelo leque de temas contemplados. Revela-se um comunicador de primeiríssima água, não se desvia dos temas mais polémicos como a unidade e luta, trata-o como vital para pôr termo ao colonialismo na Guiné e Cabo Verde, não ilude igualmente a base leninista que orienta a sua ideia de Partido, democracia revolucionária sim mas de acordo com a fidelidade aos princípios do Partido que ele consagrou com um grupo de fiéis, que igualmente não o contestam. Em poucos dias, e com vigor notável, desfia temas, conta histórias, motiva, insiste na tecla do combate ao oportunismo e aos corruptos. Quando se lê e relê esta sua obra é mesmo de questionar se para além dos estudiosos não devia ser tratado como um manual político indispensável pelo PAIGC atual.

Um abraço do
Mário



Um guia prático para conhecer o pensamento do revolucionário Amílcar Cabral (2/5)

Beja Santos

A obra intitula-se “Pensar para Melhor Agir”, comporta o teor integral das intervenções de Amílcar Cabral do Seminário de Quadros do PAIGC, que se realizou em Conacri, de 19 a 24 de novembro de 1969. A edição é da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 e tem organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins. 

De há muito que só é possível ler Amílcar Cabral entre nós nas bibliotecas ou adquirir as suas obras em alfarrabistas. As intervenções do líder do PAIGC foram revistas a partir das bobinas que então recolheram integralmente a sua comunicação, mais uma razão para encarar este trabalho como uma boa oportunidade de revisitar a essência do seu pensamento.

Após a calorosa saudação proferida e analisada a situação da luta ao tempo, fez questão de, nem sempre com uma inteira frontalidade, de ir direito ao tema polémico da unidade e luta. Paulatinamente, começa por discretear sobre o conceito de unidade e de luta, observa os termos da distinção da divisão em Cabo Verde e na Guiné, filosofa dizendo que a luta é uma condição normal de todos os seres do mundo, bem conhecedor de que não podia falar de idênticos parâmetros de colonialismo para a Guiné e para Cabo Verde, enunciou a fragmentação étnica guineense, a natureza da propriedade em Cabo Verde e disse que nenhum movimento que se tenha afirmado só a favor da Guiné ou só a favor de Cabo Verde tinha progredido. Deu o exemplo de um caso de unidade africana, a Tanzânia, resultado da união da Tanganica com o Zanzibar, mas não aludiu a todas as tentativas de unidade até então falhadas.

E então declarou: 

“Não existe um problema verdadeiro de lutar pela unidade da Guiné e Cabo Verde, porque, por natureza, por história, por geografia, por tendência económica, por tudo, até por sangue, a Guiné e Cabo Verde são um só. Só quem for ignorante é que não sabe isso”.

E como fosse necessário um exemplo bem-sucedido do valor da unidade, referiu que na primeira fornada de gente que fora para a cadeia havia guineenses e cabo-verdianos juntos. Adiantou que o PAIGC não podia aceitar a independência da Guiné sem Cabo Verde. E a questão de unidade e luta ficou arrumada. 

Debruçou-se seguidamente sobre os problemas de organização, recordou os dados da realidade geográfica, da realidade económica, social e cultural. Relendo estes textos décadas depois de que foram proferidas, é extremamente difícil acreditar que a plateia assimilasse os conceitos que iam exclusivamente na cabeça do líder, era ciência infusa, aquela plateia era constituída por jovens que não ignoravam o passado, o peso das hierarquias, a natureza do colonialismo com a sua ponta de lança de quadros cabo-verdianos, por vezes muito mais cruéis e incontestavelmente racistas comparativamente com o branco. 

Mas Cabral urdira estes tópicos com engenho e arte, de forma abreviada, tinha um discurso exaltador na manga que veio imediatamente, dirigiu-se aos melhores filhos do povo, à honestidade, à verdade, à responsabilidade, pontuando de vez em quando com “os melhores filhos da nossa terra é que devem dirigir o nosso partido e o nosso povo”.

E lançou alguns tópicos de modernidade para a força revolucionária de que ele era mentor:

“Há alguns camaradas homens que não querem entender que a liberdade para o nosso povo quer dizer liberdade também para as mulheres, que soberania para o nosso povo quer dizer que as mulheres também devem participar nisso e que a força do nosso Partido vale mais na medida em que as nossas mulheres se empenharem para o dirigirem também”

Também criticou a mentalidade daqueles que não davam oportunidades aos jovens para assumirem mais responsabilidade, e uma vez mais advertiu que o oportunismo era uma séria ameaça para a vida do PAIGC: 

“No nosso meio, há também oportunistas que, sabendo que a nossa direção exige, para dirigir, os melhores filhos da nossa terra, podem fingir ser dos melhores, ou então procurar satisfazer ao máximo os seus responsáveis, para estes os proporem como dirigentes ou como responsáveis. Temos de ter cuidado com isso, temos de os desmascarar, de os combater”

Era o sinal de que estava aberta a guerra ao carreirismo, aos ambiciosos, à gente mesquinha, à bajulice.E espantoso comunicador como sempre se mostrou, foi buscar uma história para rematar o tema que versava:

“Há um filme de que nunca me esqueço, porque foi uma grande lição para mim. Era a respeito de um rapazinho que foi educado num colégio de padres e que acreditava muito em milagres. Não conhecia nada da vida, porque fizera a sua vida no colégio e saiu de lá homem, com vinte e um anos. Todas as injustiças que ele verificava eram um mal; não entendia que, de um lado havia a miséria, gente que sofre, do outro, os ricos.

Mas ele conseguiu encontrar uma pomba que fazia milagres. E então, porque o seu pensamento estava ligado ao sofrimento dos outros, resolveu fazer tudo para ajudar os outros, para não haver fome, nem frio, para todos terem casas para morar, e cada um realizar os seus desejos; ele não pensava em si mesmo, mas pedia à pomba para fazer milagres para os outros. A pomba aparecia-lhe e sentava-se na sua mão. Ele dizia ‘Pomba, dá casas para aqueles pobres’, e apareciam as casas com tudo dentro. ‘Dá comida àqueles famintos’, e aparecia a comida, boa comida. Chegava mesmo a chamar as pessoas para perguntar o que é que queriam e pedia à pomba para lhes dar.

Até que, um dia, arranjou uma namorada e sentou-se com ela. A namorada pedia-lhe uma coisa e ele dava. Outras pessoas também pediam, mas ele já não tinha tempo, agora era tudo para a namorada.
Repentinamente, a pomba voou e foi-se embora. Acabaram-se os milagres e tudo o que ele tinha feito como milagre tornou a desaparecer. Mesmo com a pomba na mão, os milagres acabaram. Ele já não podia fazer nada pelos outros, porque só pensava na sua ‘badjuda’, na sua barriga.

Esta é uma grande lição.

Na medida em que formos capazes de pensar nos nossos problemas comuns, nos problemas do nosso povo, da nossa gente, pondo no devido nível e, se necessário, sacrificando os nossos interesses pessoais, seremos capazes de fazer milagres.

Assim devem ser todos os dirigentes responsáveis e militantes do nosso Partido, ao serviço da liberdade, e do progresso do nosso povo”
.

E mudou de azimute, perguntando: contra quem está o nosso povo a lutar, para responder que os filhos do mato e agora combatentes não deviam esquecer, por um momento que fosse, o maior respeito e a maior dedicação pelas populações, a começar pelas áreas libertadas. 

“Tudo quanto se possa fazer para tirar a confiança da população em nós, castigando a população, mostrando falta de consideração por ela, roubando os seus bens, abusando dos seus filhos, constitui o maior crime que um camarada combatente ou responsável pode fazer, prejudicando o nosso Partido, prejudicando o futuro e o presente da nossa terra. É melhor sermos poucos, mas incapazes de fazer qualquer mal que seja à população da nossa terra, do que sermos muitos, mas com gente capaz de fazer mal”.

E deixou bem sublinhado que a luta era contra o imperialismo e os seus agentes e as forças materiais ou ideias que pudessem levantar-se no caminho da liberdade, caso dos procedimentos que pudessem prejudicar a imagem de verdade e rigor do PAIGC.

(continua)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 7 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23055: Notas de leitura (1426): “Amílcar Cabral - Pensar para Melhor Agir”; edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

9 comentários:

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

Se é verdade que não há revolução social sem utopia, não é menos verdade que não pode acontecer uma revolução só com utopias.

Nos excertos aqui apresentados, podemos aferir da dimensão utópica do pensamento do nosso Cabral que, se teve larga aceitação interna e internacional, não era possível a sua concretização porque era claramente contrário a natureza do homem, sobretudo, do homem guineense, cujo nivel socio-cultural e/ou sócio-económico ainda é básico, cuja maior precupação é satisfazer suas necessidades mais básicos e, não vejo como os mesmos podiam "suicidar-se" e adiar as suas ambições a favor de um ideal que mal compreendiam.

O Amilcar Lopes Cabral, um homem bom e muito sonhador, acabou por ser vítima da sua própria utopia e desconhecimento da natureza egoista do homem guineense que ele queria salvar dos seus demónios intímos.

Ainda, até 1980 (Novembro), o primeiro governo tentou pôr em prática um conjunto de ideias nascidas do pensamento do seu lider, mas rapidamente os demónios egoistas dos chefes de guerra mostraram que não tinham sacrificado suas vidas para servir um povo incógnito que vivia nas obscuras aldeias dos Boés, Cubucarés, Quitáfines e Morês da luta de "libertação" de todos os sacrificios possíveis e (in) imagináveis.

Um abraço amigo,

Cherno Baldé

antonio graça de abreu disse...

O Mário Beja Santos continua, neste blogue a apologia, a defesa do "génio", das ideias geniais de Amilcar Cabral. Cada um é como é. O Mário também, e está no seu direito. Mas eu não gosto que façam de mim parvo, bajulador e subserviente. Há quem goste.
O Cherno Baldé já falou em utopias, as perigosas utopias, as ilusões de que está o mundo e o inferno cheio.

Recordo o cobarde assassinato dos três majores, do alferes do meu CAOP 1, a que pertencoi, 72/74, e dos dois intérpretes africanos, Teixeira Pinto, Jolmete, em 1970, que foram desarmados ao encontro dos guerrilheiros, numa missão de paz. Recordo a acta informal das reuniões do Conselho de Guerra do PAIGC, em 11 e 13 de Maio de 1970, manuscrita por Vasco Cabral.

Membros Presentes: Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Luís Cabral, João Bernardo Vieira (Nino), Osvaldo Vieira, Francisco Mendes, Pedro Pires, Paulo Correia, Mamadu N'Djai [Indjai], Osvaldo Silva, Suleimane N'Djai.
Secretário: Vasco Cabral.


Amílcar Cabral – "Este acto foi um acto de grande consciência política e um acto de independência. Foi um acto de grande acção e de capacidade dos nossos camaradas do Norte. É a primeira vez que numa luta de libertação nacional se mata assim três majores, três oficiais superiores que, nas condições da nossa luta, equivale à morte de generais."

Aí está, o entendimento genial, do grande génio africano, Amílcar Cabral, de quem o Mário Beja Santos tanto gosta.

Abraço,

António Graça de Abreu

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Posso estar errado. É o mais certo, mas no essencial subscreveria os dois textos anteriores. Antes de mais porque "os tempos eram outros". O momento da evolução dos acontecimentos era outro. Acredito que, em alguns casos as tais "utopias" eram partilhadas até pelos "revolucionários cá do bairro". Já nesse tempo havia quem achasse que as tais utopias não justificavam tudo, mas não tinham muita aceitação as suas opiniões. A morte dos majores deve ser algo que o PAIGC já varreu para baixo do capacho, como sucede muitas vezes. Tratou-se de uma operação psicológica que falhou e os "gloriosos guerrilheiros" do PAIGC - "força, luz e guia di nô povo da Guiné cu Cabo Verde" foram bárbaros e estúpidos na condução do assunto. Se tivessem usado as viaturas do grupo de negociadores e iniciassem uma fuga, em poucas horas estariam no Senegal. Depois era a política e a diplomacia a actuar. Assim nós vamos lembrá-los sempre...

Um Ab. e um bom domingo
António J. P. Costa

Antº Rosinha disse...

As ideias e as doutrinas de Amílcar Cabral serviriam muito bem exclusivamente para os Caboverdeanos, se estes estivessem de acordo.

Mas não se aplicavam de maneira nenhuma nem para os guineenses nem para qualquer país da chamada África sub-sariana.

Que não estavam de maneira nenhuma preparados, mas já está, foi o que foi.

E par nós, "portugueses de 1ª e brancos de 1º", como eles os dirigentes dos movimentos ganhadores, (PAIGC, MPLA, FRELIMO)nos lembravam sempre, terá sido melhor o MFA ter entregue bem rapidinho Caboverde ao PAIGC, onde este partido nunca tinha criado "regiões libertadas".

Foi o que foi! foi o que se pode arranjar.

Valdemar Silva disse...

Em termos de mortes, desculpem a ligeireza das minhas palavas, qual é a diferença entre o ouvir na rádio a maria turra dizer qua no ataque a Canquelifá ou numa emboscada as tropas do PAIGC mata três colonialistas e na acta estar redigido mata três majores.
Será que os majores valem mais que simples soldados? Para nós evidentemente.
Então para quê esta exaltação, bastando que o PAIGC matou militares portugueses. E disso sabemos todos por estarmos em guerra na Guiné.
O Gen. Spínola, segundo os entendidos no assunto, foi um grande estratega militar, e até politico na Guiné, e as suas ordens foram desenvolvidas pelos oficiais superiores em acções de combate com a morte de comandantes do PAIGC, será que ele na Guiné não merece "umas palavrinhas" sem ser acusado de quem as profere ser "tecedor de elogios".
Qualquer emboscada é uma acção de combate cobarde?

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

Em um Major ostensivamente desarmado ou num soldado raso desarmado, só um cobarde ou estrategicamente estúpido o chacinaria.

E quando um dirigente como Amílcar Cabral aprova tal ato, talvez tenha merecido bem os tais 3 tiros, (Os três tiros...Oleg Konstantinovich Ignatʹev).

Um por cada major, seria a providência?

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Comparar uma emboscada como acção cobarde é forçar a nota.
Há uma grande diferença entre matar em combate e chacinar prisioneiros, independentemente dos postos ou graduações. E, pior do que isso, ir para os documentos internos da instituição vangloriar-se disso.

Um Ab.
António J. P. Costa

Carlos Vinhal disse...

Assassinar aquelas pessoas, por acaso militares desarmados mas que podiam ser civis, foi para mim o pior acto levado a efeito na Guiné. Amílcar comportou-se como um vulgar terrorista ao apoiar aquela acção que justificou como acto político. O destino dele foi também ser assassinado pelos seus companheiros de luta. Outro acto político?
Carlos Vinhal
Leça da Palmeira

Valdemar Silva disse...

Questionei se uma emboscada é uma acção de combate cobarde, não afirmei.
Evidentemente, numa emboscada a surpresa é o mais importante, ninguém começa a pss..pss. antes de disparar/matar o inimigo e se matar o comandante melhor será a acção.
Eu não tenho dúvidas quanto ao crédito das "Notas de Leitura" que Beja Santos merece, vejamos o comentário de BS no P12732 de Pereira da Costa.
As atrocidades cometidas contra os militares superiores desarmados e sem escolta é esquisita, e a acta do PAIGC aumenta a estranheza com uma descarada "estavam mesma a pedi-las". Os nossos serviços secretos, a PIDE e os serviços de informações militares, bem podiam ter evitado a chacina, até parece que deveria de haver um caso destes para acabar com as ideias propaladas por Spínola.
Mas, estas "Notas de Leitura" apresentadas por Beja Santos e o comentário de Cherno Baldé não são água benta sobre este caso repugnante, nada disso, e também é a minha opinião.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz