segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23689: "Despojos de Guerra" (Série documental de 4 episódios, SIC, 2022): Comentários - Parte II - Luís Graça: Percebe-se agora melhor por que é que a PIDE/DGS, os seus agentes e os seus informadores, tiveram um tratamento tipo "português suave", a seguir ao 25 de Abril de 1974


Carta de Angola (1968). Escala 1 / 2 milhões. Posição relativa de Luso, Luanda e Benguela. 

Fonte: Excerto de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo I; Angola; Livro 2; 1.ª Edição; Lisboa, 2006, pág. 8 (Com a devida vénia...)


1. Comentário de Luís Graça ao poste P23677 (*):

Vi na quinta feira (e revi depois, com mais atenção) este 1º episódio ("A informadora"). 

Não tinha expectativas muito altas, porquanto o jornalismo de investigação  em televisão é caro, muito caro. E depois gostava que a série documental, em 4 epísódios, fosse mais explícito sobre o sentido do título genérico "Despojos de guerra"...

Cortesia de Mosurlow / 

Mas, pensando bem, parece haver um fio condutor entre os vários episódios: 

(i) o trabalho (sujo e perigoso, em todas as guerras) do "colaboracionismo" (1º episódio);

(iii)  a "ingratidão" e a "injustiça" do colonizador que abandona os seus "harkis" (o termo, de origem árabe, tem um sentido depreciativo, na Argélia, e refere-se aos "auxiliares" norte-africanos que lutaram do lado dos franceses, durante a guerra da independência da Argélia, em 1954-62 (2º episódio); 

(iii) menos óbvia, é a inclusão do episódio do Miguel Pessoa e da sua futura companheira Giselda, nossos queridos amigos e camaradas, na sequência do abate, por um Strela, do primeiro Fiat G-91, em 25 de março de 1973, sob os céus de Guileje (3º episódio, "Corredor da Morte";

(iv)  e, no quarto episódio, esse mais óbvio, os "filhos do vento", os "restos de tuga": como em todas as guerras, esses, sim, são "despojos de guerra", já o Miguel e a Giselda não sei se não se vão ofender...

Quanto às fontes documentais, não me pareceu haver nada de novo (nomeadamemte filmes de arquivo inéditos, a não ser talvez imagens de tropas do MPLA e de um interrogatório, no mato, a prisioneiros portugueses) e com o reparo de não se identificar a sua origem, com exceção das imagens do Arquivo RTP...

Voltaram a usar-se, sem citar a fonte, imagens já estafadíssimas do documentário "Guerre en Guinée" [, "Guerra na Guiné", ORTF, Paris, 1969] , há muito disponível no portal do INA - Institut national de l'audiovisuel (13' 58'') e... no nosso blogue

O vídeo da ORTF, feito no decuros da Op Ostra Amarga,  tem sido utilizado "ad nauseram" pelas nossas televisões quando se fala da guerra colonial, à falta de "material nacional" (que era isso que competia fazer  à RTP de então e aos fotocines do exército).

A única novidade é o uso da técnica de "colorização" de filmes e imagens antigas, a preto e branco. É uma técnica há muito disponível no mercado mas pouco frequente em documentários da nossa televisão... Imagino que não seja uma técnica barata... Gostei de ver imagens de Luanda de 1961, cidade que só conheci a partir de 2003...

Quanto à Sebastiana Valadas..., bom, temos de reconhecer que é um achado. Como e onde é que a terão desencantado? Através, seguramente, dos arquivos da PIDE/DGS... Parece que vive no Alentejo, pelo que li no Expresso, de 18/2/2022. Teria ido  com os pais, com oito anos, para Angola, fugindo presumivelmente da miséria onde nasceu... E, como não terá conhecido outro paraíso, sentia-se angolana (mais do que portuguesa) de alma e coração...

A entrevista, semi-diretiva, feita pela Sofia Pinto Coelho, acho que é de "antologia"... A jornalista consegue obter informações que são dignas de nota: 

(i) Angola em 1961 não tinha "nada a ver com Portugal" (sic); 

(ii) Luanda "rivalizava" com Lisboa, no desenvolvimento, no  progresso, no chique, no "glamour"; 

(iii) "Gostava de viver a guerra" (sic), apesar de ter vivido com o credo na boca e ter estado entre fogos cruzados dos militares dos vários movimentos nacionalistas em confronto em Luanda; 

(iv) Admirava a Kalash, russa, que os guerrilherios do MPLA empunhavam  quando vinham à sua loja para se abastecerem de tabaco, sal, peixe seco, vinho  e outros produtos ("umas vezes pagavam, outras não"); 

(v) "eu e o meu marido demos cabo da 4ª Região Militar do MPLA" (uma fanfarronada...): 

(vi) e, afinal, fomos utilizados como "carne para canhão", lá no cu de Judas,  e aqui estou eu, expulsa de Angola, a morrer na miséria, sem direito sequer a uma pensão pelos meus serviços (e do meu marido) ao País... enquanto a PIDE/DGS estava, em 1972,  no "bem-bom" do Luso.

O casal (a Sebastiana e o marido, Avelino Durães, nome de guerra "Ferro",  apresentados como "agentes duplos") caiu na asneira de ficar em Angola, depois da independência, apesar dos avisos da própria polícia política de que ambos poderiam  correr sérios riscos de morte pelos resultados da Op Fina Flor, em 1972, em que foi preso entre outros o comandante João Arnaldo Saraiva de Carvalho, futuro general embaixador e chefe da polícia nacional de Angola... (Com ele terão sido captutados 6 elementos do MPLA e 3 terão sido mortos, não sabendo nós se esta Op Fina Flor foi exclusivamente pela PIDE/DGS ou pelo Exército.)

A expressão "agente dupla" é talvez abusiva: estes "cantineiros do mato", lá no "cu de Judas" (título de um conhecido romance do António Lobo Antunes), limitaram-se a "jogar com o pau de dois bicos", como aconteceu na Guiné com os comerciantes, poucos, que restaram no interior depois do início da guerra, em 1963.

A entrevista com o João Arnaldo Saraiva de Carvalho (nome de guerra, "Tetembwa", mestiço, que eu presumo ser  filho de pai português e de mãe angolana, que vem do interior para estudar em Luanda, tendo feito o 7º ano no Liceu Salvador Correia, onde teve como colega de turma o futuro presidente da república José Eduardo dos Santos, e que depois vai para Coimbra frequentar o curso de direito... e que entretanto é mobilizado para Guiné e decide desertar, fugindo com a esposa, também colega de curso, e seguindo o caminho que trilharam muitos outros africanos que estudavam nas universidades portuguesas (Lisboa, Coimbra e Porto): neste caso, a França, a Zâmbia, a URSS...)... Essa entrevista, dizíamos, não é feita pela equipa da SIC, portanto não é material de "primeira mão", remonta a 2015, é de fonte angolana, está disponível na Net:

https://www.tchiweka.org/pessoas/joao-saraiva-de-carvalho

Ficámos a saber que a Associação TCHIWEKA de Documentação (ATD) "é uma pessoa colectiva de carácter voluntário e sem fins lucrativos, com a missão fundamental de promover e divulgar actividades culturais, científicas e educativas que contribuam para preservar a memória e aprofundar o conhecimento da luta do Povo Angolano pela sua independência e soberania nacional"...

No sítio da ATD publica-se também a "Ordem de serviço do MPLA nº 28/71 (Lusaka), de Daniel Chipenda",  com a nomeação do Comando da 4ª Região: Mwandondji (comissário político com funções de comandante), Augusto Alfredo «Orlog» (operações), João Saraiva de Carvalho «Tetembwa» (adjunto do comando). 

Nunca tínhamos ouvido falar desta IV Região Militar do MPLA. Recorde-se que o Daniel Chipenda (1931-1996), antigo jogador de futebol  da Académica de Coimbra e do Benfica, saído clandestinamente de Portugal em 31 de agosto de 1962, foi o responsável pela abertura da Frente Ldo este do MPLA.  A primeira acção a primeira acção no Leste terá ocorrido em 16 de maio de 1966, na região de Lumbala,  e nela terão morrido sete soldados portugueses. Mas depois perdeu influência, em 1972, devida à contra-ofensiva das NT. (Vd. CECA, 2006, op cit, p. 152).

... Em 1972, o "Tetembwa" é preso por denúncia dos agentes duplos, a Sebastiana e o marido... Como recompensa, a PIDE, face ao grande "ronco" (como dizíamos na Guiné), aumenta a avença mensal do "Ferro"  para o dobro, oito contos  (antes recebia quatro contos pelos seus serviços, dele e da esposa), além de uma recompensa choruda de 30 contos (o equivalente, a preços de hoje, a 7.253,42 €)... (Tudo isto documentado em papel timbrado da PIDE.)

Depois da independência, o casal que decidira, levianamente (?),  continuar em Angola, é preso, certamente por denúncia ou buscas da polícia, o "Ferro" é torturado pelo próprio "Tetembwa" mas nunca terá confessado quem denunciou a presença deste comandante e do seu grupo na loja, em Cassai-Gare (estação do caminho de ferro da linha de Benguela, província de Moxico, cuja capital era o Luso, hoje Luena), no leste, na região dos diamantes... Ao fim de ano e meio de prisão, foi solto, sem julgamento, e expulso para Portugal onde entretanto viria a morrer...

Acho que o episódio vale sobretudo pelas "confidências" (cruas, despudoradas, mas sinceras e serenas, autênticas, com alguma basófia aqui ou acolá, quiçá demasiado ingénuas..., confundindo-se às vezes ingenuidade com desassombro) desta mulher, que é entrevistada na cozinha da sua casa (no Alentejo?) enquanto ela e outra matam e depenam um enorme galo (que seguramente não era o da UNITA)...

Claro que ela sabia que, na vida e na guerra, é difícil (e sobretudo perigoso) servir dois senhores, manter dois amores, defraldar duas bandeiras... (Sem querer, ela denuncia alguma atração por aqueles rapazes de vinte anos a que ela chama "turras", que até eram bem parecidos e educados...).

Malhas que o império teceu... e cujos "despojos" ainda chegam às "praias lusitanas" da nossa memória...

Por que é que eu gostei da entrevista? Porque a verdadeira "vedeta", a protagonista, é a Sebastiana, a entrevistada, não a entrevistadora... É importante que estas pequenas grandes histórias fiquem registadas, para a História, para a nossa memória e para memória futura, sem retoques, sem comentários, sem quaisquer preocupações com o "politicamente correto"... Ficamos também a saber o importante papel que a PIDE/DGS desempenhou na guerra, com a sua tentacular (e eficaz) rede de "informadores"...

E não brincavam em serviço: quando a Sebastiana e o marido são descobertos e denunciados pelos "negócios" com o MPLA (afinal, um bom "cliente", naquele cu de Judas...), o casal, que tinha filhos pequenos, terá ficado sem alternativa: ou colaboravam com a PIDE (correndo o risco de ficar sem  ou o então o  Durães "apanhava 20 anos no Tarrafal" (sic)... 

Percebe-se melhor então por que é que o rapaz era um grande consumidor de ansiolíticos... enquanto a mulher, com o seu ar "felino" (a avaliar pela foto de quando era nova) adorava a guerra e o cheiro da pólvora e devia ter fantasias com as  fardas e as armas ("lindas") dos "turras"...
 
...Percebe-se também agora melhor por que é que a PIDE/DGS, os seus agentes e os seus informadores, tiveram um tratamento tipo "português suave" a seguir ao golpe militar do 25 de Abril... Amor com amor se paga... E, como dizia o outro, não há almoços grátis... (**)
___________

Notas do editor:

(*) Vd,. poste de 6 de outubro de  2022 > Guiné 61/74 - P23677: Agenda cultural (818): "Despojos de guerra", série em quatro episódios, de 40' cada, sobre a guerra colonial: estreia hoje na SIC, no Jornal da Noite

(**) Último poste da série > 9 deoutubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23687: "Despojos de Guerra" (Série documental de 4 episódios, SIC, 2022): Comentários - Parte I - António Rosinha e Valdemar Queiroz: as diferenças entre a guerra de Angola e o "inferno da Guiné"

7 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Há aqui gente no blogue que conheceu o leste de Angola, como o meu amigo paraquedista Jaime Silva. Gostava de conhecer o seu ponto de vista. Esteve no BCP 21 em 1970/72, como alferes miliciano. Combateu no Leste. Não sei é se viu este episódio dos "Despojos de guerra"...

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Subscrevo inteiramente.
A SIC resolveu "dar um ar da sua graça". Estava à espera de mais e melhor, mas não...
Esperemos pelo próximo programa, mas com pouca esperança.

Um Ab.
António J. P. Costa

Mário Santos disse...

Bom dia camaradas...
No 1° episódio,  unico que vi, continua a passar a estafada idéia de que os portugueses ao defenderem o legado dos nossos antepassados foram os únicos  vilões da fita...
Em todas as antigas províncias ultramarinas portuguesas, a verdadeira colonização está a ser efectuada agora... A razia nos Minerais, Florestas, Stocks de Pesca, etc. está neste momento a decorrer. Os USA, RUSSIA, CHINA E A PRÓPIA EUROPA, limpam à tripa forra, e com o beneplácito das cleptocracias dirigentes de Angola e Moçambique toda a riqueza a que os portugueses nunca deitaram mão por falta de meios...A Guiné, continua a ser um NÃO-ESTADO... e em tudo o resto, é o que sabemos.
Estes documentários além de não nos trazerem nada de novo, continuam a ser apenas mais uma tentativa falhada de reescrever a história.
Nunca se verifica um registo de um "Colono" ou de um Combatente politicamente incorrecto...
pqp...

paulo santiago disse...

Após este ver este 1º episódio,resolvi tornar a ler "A última viúva de África" do Carlos Vale Ferraz.

Abraço

João Rodrigues Lobo disse...

Blogger João Rodrigues Lobo disse...
Caros comentadores,
Vi este primeiro documentário dos Despojos de Guerra, que nada de novo me revelou, mas do qual saliento a excelente entrevista.
Saliento o conhecimento "in loco" do António Rosinha, em Angola a vida e a guerra foram, diria, diferentes.
Também fui para Angola aos 7 anos de idade, em 1961 estava lá (com 15 anos vi muito) No Salvador Correia alguns colegas foram para "Turras", vim a Portugal fazer o 6º e 7º anos, tendo voltado. Em 1968, como aspirante, comandei os Camionistas civis em MVL ao norte de Angola. Em 1969 e 1970 estive na Guiné. Voltei a Angola que percorri de lés a lés até uns dias antes da independência. Pela pide fui controlado ainda na Guiné pois ia a bordo dos navios, e depois em Angola onde fui agente de Navegação internacional, onde para me passarem o cartão de ida aos navios e me deixarem trabalhar, fui a várias "entrevistas".
Vi acções da pide na Guiné e em Angola, julgo não terem sido muito diferentes das que faziam em Portugal (talvez mais discretas...)
Muitas vivências poderia indicar mas ficarão para depois.
Embora estas séries sejam úteis para que este nosso passado não caia em esquecimento das futuras gerações, não sei que sentimentos e recordações irão despertar nos que ainda sobrevivemos e, se todos aguentarão ...
Grande abraço.

10 de outubro de 2022 às 10:44

Tabanca Grande Luís Graça disse...

João Rodrigues Lobo, outro dos nossos camaradas que podem falar com autoridade de Angola e da Guiné, ao tempo da guerra...Vamos incentivá-lo a publicar mais recordações do tempo de Angola...

Este blogue não tem fronteiras estanques: só por uma questão de "economia de análise" é que é dedicado à Guiné...E a grande maioria dos antigos combatentes que o compôem, são os que conheceram o TO da Guiné... LG

Fernando Ribeiro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.