
CCAV 2483 / BCAV 2867 - CAVALEIROS DE NOVA SINTRA
GUINÉ, 1969/70
VIVÊNCIAS EM NOVA SINTRA
POR ANÍBAL JOSÉ DA SILVA
36 - O NOSSO GUIA
O nosso guia chamava-se Bunka Turé. Homem franzino , com muitos anos de guerra e que muito nos ajudou. Vivia dentro do quartel na sua tabanca, na companhia de quatro mulheres e alguns filhos. Esta família e os miúdos Tomás Sanhá e o Hilla, eram a única população civil que tinhamos. O Bunka conhecia como ninguém toda a área da nossa jurisdição. Nós viemos e ele ficou continuando a guerra. Foi um dos muitos que foram fuzilados pelo PAIGC, após a independência.
A família do Bunka Turé
Uma das mulheres e um filho
37 - UMA JÓIA DE CRIANÇA
O Hilla era uma joía de criança. Devia ter doze anos, era bem constituído fisicamente e falava razoavelmente o Português. Ele o Sanhá e o Tomás eram os três jovens que consnosco conviviam, todos eles orfãos da guerra. O Tomás era o rebelde do trio. Por duas vezes tive o paludismo e com as febres altas e fraqueza total, não me permitiam levantar do beliche e nesses três a quatro dias, o Hilla não arredou pé da entrada do meu abrigo, sempre pronto a ir buscar qualquer coisa de que precisava, principalmente água. Corria todos os abrigos e esvasiava os filtros de água que podia e dava-me a beber, ou então pedia ao cozinheiro para ferver um jarro de água. Por vezes apetecia-me algo fresco, dava-lhe dinheiro e ia à cantina comprar água mineral em garrafa da marca “Perrier”, um luxo em tempo de guerra. Quando me separei dele para ir para Bissau e depois para casa, foi como despedir-me de um amigo adulto, com alguma emoção à mistura. Dei-lhe o meu relógio de pulso que usava desde os dez anos de idade e que fora oferta do meu padrinho quando fiz a comunhão solene. Ensinei-o a ler as horas. Espero que tenha passado incólume a mais quase quatro anos de guerra e que tenha constituído família e que à data de hoje se encontre bem.
O Hilla
38 - A TOMBÓ
A Tombó foi a nossa prisioneira em liberdade. Foi capturada no meio do capim, longe do aquartelamento e estaria provavelmente acompanhada por elementos do PAIGC, que se puseram em fuga, face à nossa aproximação. A presença dela foi denunciada pelo choro de uma bébé de poucos meses. Menina muito bonita, negra com feições da raça branca. Era afilhada de todos nós. A mãe andava no quartel sem qualquer vigilância e lavava a roupa de alguns soldados. Nunca tentou fugir. Em termos atuais, digamos que estava em prisão domiciliária.
O Furriel Miranda em amena cavaqueira com a Tombó
A bébé filha da Tombó
39 - ABUTRES E PELICANOS
À falta de carne o caçador António Soares abateu alguns pelicanos, mas poucos. Deram só para os camaradas do seu pelotão. Fizeram um ensopado e convidaram-me para o almoço, em troca das batatas. Mas não gostei, carne a saber a peixe nunca mais. Era expressamente proibido matar abutres, pois era quem fazia a limpeza das lixeiras. Eram o SUMA lá do sítio. Uma vez apanhámos um e à volta do pescoço atamos um cordel que segurava uma lata de coca cola com pedras lá dentro e ao esvoaçar fazia barulho. Dizíamos que era a nossa força aérea privada.
40 - AS LARVAS DE ASA BRANCA
Creio que era assim que se chamavam. Larvas ou moscas tinham asas brancas e compridas. Num único dia do ano, gerava-se um processo de transformação das ditas. Na noite desse dia as larvas entraram na messe de sargentos, atraídas pela luz duma lâmpada fluorescente e cobriram-na totalmente, ficando a sala à media luz. Nessa data encontrava-se entre nós um pelotão da Ccav 2443, em reforço da minha companhia. O furriel era o Oliveira, indivíduo apanhado pela clima. Com a mão direita raspou a lâmpada e apanhou uma quantidade grande de larvas e começou a tirar as assas e a comê-las e dizia, isto com wisky é que é bom. Não sei se apanhou alguma indigestão.
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 6 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26770: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (10): Os grandes azares; Insensatez; O ronco; Caso do Furriel Moreira e Chuveiro do abrigo dos Morteiros
1 comentário:
Com o devido destaque:
(...) À falta de carne o caçador António Soares abateu alguns pelicanos, mas poucos. Deram só para os camaradas do seu pelotão. Fizeram um ensopado e convidaram-me para o almoço, em troca das batatas. Mas não gostei, carne a saber a peixe nunca mais.
(...) As larvas de asa branca.... Creio que era assim que se chamavam. Larvas ou moscas tinham asas brancas e compridas. Num único dia do ano, gerava-se um processo de transformação das ditas. Na noite desse dia as larvas entraram na messe de sargentos, atraídas pela luz duma lâmpada fluorescente e cobriram-na totalmente, ficando a sala à media luz. Nessa data encontrava-se entre nós um pelotão da Ccav 2443, em reforço da minha companhia. O furriel era o Oliveira, indivíduo apanhado pela clima. Com a mão direita raspou a lâmpada e apanhou uma quantidade grande de larvas e começou a tirar as asas e a comê-las e dizia: "isto com wisky é que é bom". (...)
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