Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 7 de agosto de 2006
Guiné 63/74 - P1030: Postais Ilustrados (2): Dança nalu, Cacine (Beja Santos)
Legenda: FF2 - Dança nalu, Cacine
Edição: Casa Mendes, Bissau, s/d.
Kodachrome de A. B. Geraldo.
Bilhete postal gentilmente cedido pelo nosso camarada Beja Santos (1).
Segundo a brochura Missão na Guiné, editada em 1971 pelo Estado-Maior do Exército, os Nalus (cerca de 5500, de acordo com o censo de 1960) habitavam a região de Tombali (Cacine), no sul. Eram descritos pelos nossos etnógrafos, como sendo "pouco robustos e de estatura média. Muito individualistas, recusam-se a manter relações com as tribos vizinhas. Têm um conceito perfeito de justiça. Encontram-se em grande parte islamizados"... (LG)
________
Nota de L.G.
(1) Vd. post de 4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1023: Postais Ilustrados (1): Pescadora, de etnia papel (Beja Santos)
Guiné 63/74 - P1029: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (17): Dulombi
XVII parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).
Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. 45-49 (1).
DULOMBI
Dulombi era uma Tabanca que já não tinha população e ficava a sul de Galomaro. Assim que lá chegámos, rodeámos o perímetro com arame farpado e começámos a fazer os abrigos onde passámos a dormir. Passámos à condição de toupeira.
Os abrigos eram feitos da seguinte maneira: abre-se uma cova até à altura da cintura. Depois cobria-se a vala com troncos de palmeiras. Em cima destas colocava-se a chapa dos tambores, que abríamos. Por fim, colocávamos terra.
Era um sufoco ali em baixo! Foi ali que, tal como os presos, comecei a contar um a um os dias que faltavam para me vir embora. O Capitão, que não estava para dormir no chão, fez um bunker em cimento só para ele.
Vou contar alguns episódios que por lá se passaram:
1. Tínhamos acabado de chegar, eu ainda estava a dormir numa tenda de campanha, pois os abrigos ainda não estavam prontos. Estava eu deitado, a meio da tarde, e lá fora havia alguns soldados a jogarem à bola no meio do recinto. Nisto, surge um ataque feroz.
Entro de imediato para o abrigo e começamos a responder ao fogo. Mesmo ao meu lado estava um tambor de ferro cheio de água. Durante a excitação do ataque apercebi-me que houve uma granada que rebentou muito perto de mim. Quando a calma regressou, reparei que o tambor estava todo furado pela granada do RPG-7 que o IN tinha atirado.
Nossa Senhora mais uma vez me valeu. Se aquele tambor não estivesse ali, era eu que tinha apanhado com todos os estilhaços.
Neste ataque um dos meus soldados ficou ferido com alguns estilhaços. Foi evacuado e ao fim de uma semana já estava de volta. No Hospital os estilhaços não eram extraídos da carne. Era o próprio organismo que os expelia.
2. Passámos a ter ataques mais frequentes e dias houve que tivemos dois no mesmo dia. Num desses ataques estava eu só com o meu grupo de combate, pois a companhia tinha saído. Era de dia. O perímetro do aquartelamento era grande e a responsabilidade também. Quis saber se havia homens em todos os lados do aquartelamento.
Durante todo o tempo que durou o fogo, percorri o perímetro para ver se tudo estava bem e ainda parei na messe para ir ao frigorífico beber um pouco de água fresca, pois estava sequioso. Regressei novamente à vala. Depois dos primeiros momentos habituamo-nos a estar debaixo de fogo e já não nos ralámos.
Nunca fiz fogo contra o inimigo. Como os soldados não se continham a fazer fogo, achava que mais um não fazia diferença e, no caso do tiroteio se prolongar, ter munições disponíveis podia ser a nossa salvação. Guardei sempre as minhas munições para o fim caso houvesse necessidade. Habituei-me a controlar-me bem nestas alturas.
Para explicar melhor o que representa uma reserva de munições vou contar uma história passada com o Alferes David. Estava ele a nível de grupo de combate numa Tabanca, que estava a ordenar, quando, à noite, teve um ataque feroz. Chovia que Deus a dava e as valas estavam cheias de água.
Começaram a responder ao fogo inimigo sempre debaixo da chuva torrencial. Com a chuva e a lama, as armas iam encravando. Por fim, só havia uma arma a disparar mas foi o suficiente para o inimigo não avançar.
Se aquela arma tivesse encravado, tinham sido todos apanhados à mão. Nossa Senhora lhes valeu. Nestas ocasiões dividia-se o trabalho. Uns abriam os cunhetes de munições, outros municiavam os carregadores e outros disparavam.
3. Passados tempos, encontrei-me na mesma posição, ou seja, s6 com o meu grupo de combate no perímetro de Dulombi, a companhia fora e um novo ataque durante o dia.
Desta vez estava na messe e corri para o abrigo de transmissões que era ali perto. Atrás e agarrado a mim, veio o Furriel Cabral, de etnia papel. Como não tínhamos armas e estávamos no meio do perímetro, no abrigo de transmissões, resolvi pedir apoio aéreo.
Ao fim de 15 minutos apareceu um Fiat. O fogo inimigo acabou de repente e nunca mais houve ataques ao novo aquartelamento durante o dia.
4. Como esta zona estava a aquecer, foi enviada uma companhia para nos reforçar e fazer patrulhamento em profundidade, de forma a permitir- nos tomar a iniciativa da ofensiva.
Com esta companhia apareceu um amigo meu, o Kiko Salema, de Oeiras. Lá lhe arranjei uma cama para ficar. Como não havia camas e os abrigos estavam cheios, tive de arranjar uma solução para o Kiko. Como durante a noite estava sempre um soldado da sentinela, que se ia revezando, aproveitei essa cama para ele dormir. Mas como o soldado quando regressava tinha a cama ocupada pelo Kiko, ia acordar o soldado que o ia render, e deitava-se na cama dele, e assim sucessivamente.
Assim durante o período que o Kiko lá esteve, os meus soldados deitavam-se numa cama e acordavam noutra por efeito da rotação. Tudo se fazia de boa vontade, para ajudar o próximo.
5. De Dulombi tínhamos de ir às vezes a Galomaro para fazer colunas de reabastecimento. Numa dessas colunas saímos de Dulombi cedo e passámos a bolanha que estava logo a seguir ao aquartelamento. Como íamos com os carros vazios, passávamos bem por todo aquele lamaçal. No regresso, vínhamos carregados, era um inferno.
O terreno estava encharcado e os carros enterravam-se. A solução era lançar o guincho que os Unimog tinham à frente, a uma árvore, para com esta ajudar a safar o carro. Havia também muitos carros que nem com o guincho saíam do lamaçal. Nestes casos tínhamos de descarregar o carro, puxá-lo, e carregá-Io de novo. Este episódio podia repetir-se várias vezes. As colunas levavam horas a percorrerem poucos quilómetros. Era um desespero.
Como os carros resvalavam no lamaçal, nem sempre os carros da frente pisavam o mesmo trilho. Nessa coluna à ida não picámos a estrada e à volta detectámos uma mina. Já lá devia estar antes. Nossa Senhora fez com que o carro resvalasse e não pisasse a dita mina.
6. Um dia à noite estávamos a conversar à porta do bunker do Capitão. De repente o Alferes Rijo diz:
- Olha uma estrela cadente.
Qual quê! Era a primeira bala tracejante do IN, que dava início a mais uma flagelação. Entrámos de rompante pela entrada estreita do bunker do Capitão. Todos quisémos entrar ao mesmo tempo. Lá dentro, foi uma risada. Naquela altura não havia cerimónias.
Uma vez que vivemos muito de perto com os Fulas, quero deixar aqui a impressão com que fiquei deles. Era gente séria e trabalhadora, com hierarquia bem definida e muito respeitada. Eram os homens grandes que, em conselho, davam as orientações que eram por todos respeitadas. A religião era muçulmana. Eram também leais e não conheciam a falsidade, a manha ou a velhacaria. No entanto eram supersticiosos.
Quanto ao inimigo, os que andavam no mato, o comportamento era igual. Estes iam passar férias a Bissau, assim como nós íamos à Metrópole. A luta era só no mato, não havia a cobardia do terrorismo urbano. Tinham um código de conduta mais digno que muitos ditos civilizados.
Contavam-se histórias de entente cordiale com o inimigo. Contaram-me que havia companhias que deixavam regularmente alimentos em determinados pontos. Por sua vez o inimigo não colocava minas nos itinerários assim como não fazia flagelações ou emboscadas.
Não houve outro povo no mundo que se tivesse ligado tão bem com os africanos como nós. O povo Cabo Verdiano é bem o exemplo disso. Salazar teve na gaveta da sua secretária o decreto que tornava Cabo Verde em llhas Adjacentes. Não o quis fazer ou não encontrou oportunidade.
A moeda circulante na Guiné era chamada o peso e valia menos 10% que o escudo. O nome corrente do dinheiro era patacão. Manga de patacão queria dizer muito dinheiro.
A minha comissão aproxima-se do fim. Chegámos à Guiné como rapazinhos e saímos como homens amadurecidos à força pela luta pela sobrevivência e desgastes físico e psíquico. O nosso facies torna-se mais carregado e ganhamos uma ansiedade natural pelo tempo que não passa.
Vou dar um exemplo para ilustrar a diferença. Numa operação que fizemos ainda em Mansoa, pouco tempo depois de termos chegado, dormimos no mato. O inimigo, que andava por perto, lançou uma rajada de arma automática sobre nós. Estava inseguro pois não sabia bem a nossa localização. Não respondemos ao fogo.
Eu estava a dormir e não dei por nada. No dia seguinte diz-me um soldado meu:
- Então, meu Alferes, ouviu as rajadas que eles nos atiraram? - É claro que não.
A dois meses do fim da comissão, como não conseguia dormir capazmente, tinha pedido à minha mãe que me enviasse uns comprimidos para dormir. Para descansar, tomava dois Mogadans antes de me deitar.
_________
Nota de L.G.
(1) Vd. post anterior:
3 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1022: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (16): De novo em Bissau, a caminho de... Dulombi
Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. 45-49 (1).
DULOMBI
Dulombi era uma Tabanca que já não tinha população e ficava a sul de Galomaro. Assim que lá chegámos, rodeámos o perímetro com arame farpado e começámos a fazer os abrigos onde passámos a dormir. Passámos à condição de toupeira.
Os abrigos eram feitos da seguinte maneira: abre-se uma cova até à altura da cintura. Depois cobria-se a vala com troncos de palmeiras. Em cima destas colocava-se a chapa dos tambores, que abríamos. Por fim, colocávamos terra.
Era um sufoco ali em baixo! Foi ali que, tal como os presos, comecei a contar um a um os dias que faltavam para me vir embora. O Capitão, que não estava para dormir no chão, fez um bunker em cimento só para ele.
Vou contar alguns episódios que por lá se passaram:
1. Tínhamos acabado de chegar, eu ainda estava a dormir numa tenda de campanha, pois os abrigos ainda não estavam prontos. Estava eu deitado, a meio da tarde, e lá fora havia alguns soldados a jogarem à bola no meio do recinto. Nisto, surge um ataque feroz.
Entro de imediato para o abrigo e começamos a responder ao fogo. Mesmo ao meu lado estava um tambor de ferro cheio de água. Durante a excitação do ataque apercebi-me que houve uma granada que rebentou muito perto de mim. Quando a calma regressou, reparei que o tambor estava todo furado pela granada do RPG-7 que o IN tinha atirado.
Nossa Senhora mais uma vez me valeu. Se aquele tambor não estivesse ali, era eu que tinha apanhado com todos os estilhaços.
Neste ataque um dos meus soldados ficou ferido com alguns estilhaços. Foi evacuado e ao fim de uma semana já estava de volta. No Hospital os estilhaços não eram extraídos da carne. Era o próprio organismo que os expelia.
2. Passámos a ter ataques mais frequentes e dias houve que tivemos dois no mesmo dia. Num desses ataques estava eu só com o meu grupo de combate, pois a companhia tinha saído. Era de dia. O perímetro do aquartelamento era grande e a responsabilidade também. Quis saber se havia homens em todos os lados do aquartelamento.
Durante todo o tempo que durou o fogo, percorri o perímetro para ver se tudo estava bem e ainda parei na messe para ir ao frigorífico beber um pouco de água fresca, pois estava sequioso. Regressei novamente à vala. Depois dos primeiros momentos habituamo-nos a estar debaixo de fogo e já não nos ralámos.
Nunca fiz fogo contra o inimigo. Como os soldados não se continham a fazer fogo, achava que mais um não fazia diferença e, no caso do tiroteio se prolongar, ter munições disponíveis podia ser a nossa salvação. Guardei sempre as minhas munições para o fim caso houvesse necessidade. Habituei-me a controlar-me bem nestas alturas.
Para explicar melhor o que representa uma reserva de munições vou contar uma história passada com o Alferes David. Estava ele a nível de grupo de combate numa Tabanca, que estava a ordenar, quando, à noite, teve um ataque feroz. Chovia que Deus a dava e as valas estavam cheias de água.
Começaram a responder ao fogo inimigo sempre debaixo da chuva torrencial. Com a chuva e a lama, as armas iam encravando. Por fim, só havia uma arma a disparar mas foi o suficiente para o inimigo não avançar.
Se aquela arma tivesse encravado, tinham sido todos apanhados à mão. Nossa Senhora lhes valeu. Nestas ocasiões dividia-se o trabalho. Uns abriam os cunhetes de munições, outros municiavam os carregadores e outros disparavam.
3. Passados tempos, encontrei-me na mesma posição, ou seja, s6 com o meu grupo de combate no perímetro de Dulombi, a companhia fora e um novo ataque durante o dia.
Desta vez estava na messe e corri para o abrigo de transmissões que era ali perto. Atrás e agarrado a mim, veio o Furriel Cabral, de etnia papel. Como não tínhamos armas e estávamos no meio do perímetro, no abrigo de transmissões, resolvi pedir apoio aéreo.
Ao fim de 15 minutos apareceu um Fiat. O fogo inimigo acabou de repente e nunca mais houve ataques ao novo aquartelamento durante o dia.
4. Como esta zona estava a aquecer, foi enviada uma companhia para nos reforçar e fazer patrulhamento em profundidade, de forma a permitir- nos tomar a iniciativa da ofensiva.
Com esta companhia apareceu um amigo meu, o Kiko Salema, de Oeiras. Lá lhe arranjei uma cama para ficar. Como não havia camas e os abrigos estavam cheios, tive de arranjar uma solução para o Kiko. Como durante a noite estava sempre um soldado da sentinela, que se ia revezando, aproveitei essa cama para ele dormir. Mas como o soldado quando regressava tinha a cama ocupada pelo Kiko, ia acordar o soldado que o ia render, e deitava-se na cama dele, e assim sucessivamente.
Assim durante o período que o Kiko lá esteve, os meus soldados deitavam-se numa cama e acordavam noutra por efeito da rotação. Tudo se fazia de boa vontade, para ajudar o próximo.
5. De Dulombi tínhamos de ir às vezes a Galomaro para fazer colunas de reabastecimento. Numa dessas colunas saímos de Dulombi cedo e passámos a bolanha que estava logo a seguir ao aquartelamento. Como íamos com os carros vazios, passávamos bem por todo aquele lamaçal. No regresso, vínhamos carregados, era um inferno.
O terreno estava encharcado e os carros enterravam-se. A solução era lançar o guincho que os Unimog tinham à frente, a uma árvore, para com esta ajudar a safar o carro. Havia também muitos carros que nem com o guincho saíam do lamaçal. Nestes casos tínhamos de descarregar o carro, puxá-lo, e carregá-Io de novo. Este episódio podia repetir-se várias vezes. As colunas levavam horas a percorrerem poucos quilómetros. Era um desespero.
Como os carros resvalavam no lamaçal, nem sempre os carros da frente pisavam o mesmo trilho. Nessa coluna à ida não picámos a estrada e à volta detectámos uma mina. Já lá devia estar antes. Nossa Senhora fez com que o carro resvalasse e não pisasse a dita mina.
6. Um dia à noite estávamos a conversar à porta do bunker do Capitão. De repente o Alferes Rijo diz:
- Olha uma estrela cadente.
Qual quê! Era a primeira bala tracejante do IN, que dava início a mais uma flagelação. Entrámos de rompante pela entrada estreita do bunker do Capitão. Todos quisémos entrar ao mesmo tempo. Lá dentro, foi uma risada. Naquela altura não havia cerimónias.
Uma vez que vivemos muito de perto com os Fulas, quero deixar aqui a impressão com que fiquei deles. Era gente séria e trabalhadora, com hierarquia bem definida e muito respeitada. Eram os homens grandes que, em conselho, davam as orientações que eram por todos respeitadas. A religião era muçulmana. Eram também leais e não conheciam a falsidade, a manha ou a velhacaria. No entanto eram supersticiosos.
Quanto ao inimigo, os que andavam no mato, o comportamento era igual. Estes iam passar férias a Bissau, assim como nós íamos à Metrópole. A luta era só no mato, não havia a cobardia do terrorismo urbano. Tinham um código de conduta mais digno que muitos ditos civilizados.
Contavam-se histórias de entente cordiale com o inimigo. Contaram-me que havia companhias que deixavam regularmente alimentos em determinados pontos. Por sua vez o inimigo não colocava minas nos itinerários assim como não fazia flagelações ou emboscadas.
Não houve outro povo no mundo que se tivesse ligado tão bem com os africanos como nós. O povo Cabo Verdiano é bem o exemplo disso. Salazar teve na gaveta da sua secretária o decreto que tornava Cabo Verde em llhas Adjacentes. Não o quis fazer ou não encontrou oportunidade.
A moeda circulante na Guiné era chamada o peso e valia menos 10% que o escudo. O nome corrente do dinheiro era patacão. Manga de patacão queria dizer muito dinheiro.
A minha comissão aproxima-se do fim. Chegámos à Guiné como rapazinhos e saímos como homens amadurecidos à força pela luta pela sobrevivência e desgastes físico e psíquico. O nosso facies torna-se mais carregado e ganhamos uma ansiedade natural pelo tempo que não passa.
Vou dar um exemplo para ilustrar a diferença. Numa operação que fizemos ainda em Mansoa, pouco tempo depois de termos chegado, dormimos no mato. O inimigo, que andava por perto, lançou uma rajada de arma automática sobre nós. Estava inseguro pois não sabia bem a nossa localização. Não respondemos ao fogo.
Eu estava a dormir e não dei por nada. No dia seguinte diz-me um soldado meu:
- Então, meu Alferes, ouviu as rajadas que eles nos atiraram? - É claro que não.
A dois meses do fim da comissão, como não conseguia dormir capazmente, tinha pedido à minha mãe que me enviasse uns comprimidos para dormir. Para descansar, tomava dois Mogadans antes de me deitar.
_________
Nota de L.G.
(1) Vd. post anterior:
3 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1022: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (16): De novo em Bissau, a caminho de... Dulombi
sexta-feira, 4 de agosto de 2006
Guiné 63/74 - P1028: O Pimbas que eu (mal) conheci (Jorge Cabral, Pel Caç Nat 63)
Amigo Luís,
Mesmo a partir para férias, não quero deixar de voltar a saudar a entrada do Beja Santos no nosso blogue. Através da memória dele, lembro lugares e pessoas.
Claro que o Missirá do Beja Santos foi diferente do meu, e quanto à descrição que faz do Pimbas, nada confere com o que recordo.
Cheguei a Bambadinca no rescaldo do ataque, pelo que já não provei os rissóis da Exma. Sra. D. Maria Alzira, nem conheci a mulher do Tenente Pinheiro. Bambadinca constituía na altura, Junho de 69, um quartel aterrorizado, com medo de novo ataque e à espera das porradas…
Aí me mantive, até à chegada da CCaç.12, como única força operacional. Saía todos os dias (Xime, Amedalai, Ponta Coli, Ponte do Rio Undunduma, Mato Cão, etc.), pelo que talvez não tivesse tido oportunidade de avaliar os atributos do Comandante, cuja imagem que guardo, é extremamente negativa – apático, desnorteado, um zombi. Estarei a ser injusto?
Aliás porque depois desse curto período em Bambadinca, vivi sempre em Destacamento, nunca cheguei a conhecer bem os camaradas ali colocados. Visitava o Batalhão sempre à pressa, e raramente almocei na messe…
Os meus Amigos grandes habitaram Fá e Missirá, e comigo partilharam tristezas e alegrias, mas também alguma loucura, necessária para nos sentirmos vivos…(1).
Também não privei assiduamente com o Beja Santos. Se calhar é agora que o estou a conhecer…e mesmo a tentar compreender.
Com um Abraço,
Jorge
____
(1) Do louvor que me concederam, o tal que eu ia frustrando com o Jagudi de Barcelos, consta o seguinte: “É de realçar a sua valiosa acção durante a permanência do Pelotão de Caçadores Nativos nº 63, em destacamentos isolados, onde demonstrou de forma inequívoca as suas qualidades de inteligência, chefia e inexcedível sentido de amizade mútua e de boa camaradagem”.
PS - Duas notas, uma sobre os acontecimentos de 28 de Maio de 1969 e outra sobre o Mato Cão:
(i) Tenho quase a certeza que não era o padre Poím que estava de cuecas a conversar com a mulher do Tenente. Pois, ainda em Janeiro de 1971, me visitou em Missirá… Sei que abandonou a vida eclesiástica e é enfermeiro nos Açores.
(ii) O Destacamento do Mato Cão foi inaugurado pelo Pel Caç Nat 63, já após a minha saída (em meados de 1971).
Mesmo a partir para férias, não quero deixar de voltar a saudar a entrada do Beja Santos no nosso blogue. Através da memória dele, lembro lugares e pessoas.
Claro que o Missirá do Beja Santos foi diferente do meu, e quanto à descrição que faz do Pimbas, nada confere com o que recordo.
Cheguei a Bambadinca no rescaldo do ataque, pelo que já não provei os rissóis da Exma. Sra. D. Maria Alzira, nem conheci a mulher do Tenente Pinheiro. Bambadinca constituía na altura, Junho de 69, um quartel aterrorizado, com medo de novo ataque e à espera das porradas…
Aí me mantive, até à chegada da CCaç.12, como única força operacional. Saía todos os dias (Xime, Amedalai, Ponta Coli, Ponte do Rio Undunduma, Mato Cão, etc.), pelo que talvez não tivesse tido oportunidade de avaliar os atributos do Comandante, cuja imagem que guardo, é extremamente negativa – apático, desnorteado, um zombi. Estarei a ser injusto?
Aliás porque depois desse curto período em Bambadinca, vivi sempre em Destacamento, nunca cheguei a conhecer bem os camaradas ali colocados. Visitava o Batalhão sempre à pressa, e raramente almocei na messe…
Os meus Amigos grandes habitaram Fá e Missirá, e comigo partilharam tristezas e alegrias, mas também alguma loucura, necessária para nos sentirmos vivos…(1).
Também não privei assiduamente com o Beja Santos. Se calhar é agora que o estou a conhecer…e mesmo a tentar compreender.
Com um Abraço,
Jorge
____
(1) Do louvor que me concederam, o tal que eu ia frustrando com o Jagudi de Barcelos, consta o seguinte: “É de realçar a sua valiosa acção durante a permanência do Pelotão de Caçadores Nativos nº 63, em destacamentos isolados, onde demonstrou de forma inequívoca as suas qualidades de inteligência, chefia e inexcedível sentido de amizade mútua e de boa camaradagem”.
PS - Duas notas, uma sobre os acontecimentos de 28 de Maio de 1969 e outra sobre o Mato Cão:
(i) Tenho quase a certeza que não era o padre Poím que estava de cuecas a conversar com a mulher do Tenente. Pois, ainda em Janeiro de 1971, me visitou em Missirá… Sei que abandonou a vida eclesiástica e é enfermeiro nos Açores.
(ii) O Destacamento do Mato Cão foi inaugurado pelo Pel Caç Nat 63, já após a minha saída (em meados de 1971).
Guiné 63/74 - P1027: Estórias de Contuboel (V): Bajudas ou a imitação do paraíso celestial (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)
Foto: © Albano M. Costa (2005)
Quinto (e último) texto do Renato Monteiro, da série de cinco, que intitulei estórias de Contuboel, pequenos apontamentos que o meu amigo escreveu com base na sua experiência de instrutor de recrutas guineenses, em Contuboel, no 1º semestre de 1969 (1).
O Renato Monteiro foi furriel miliciano na CART 2479 - que deu origem à CART 11 e esta, por sua vez, à CCAÇ 11 (Contuboel e Piche). Foi, mais tarde, transferido por motivos disciplinares, para a CART 2520, Xime e Enxalé (1969).
À IMITAÇÃO DO PARAÍSO CELESTIAL
Acordo com os latidos da Daisy, já recuperada da mazela na perna, incitando-me a sair da cama. Como a querer lembrar a combinação que fiz com o Canininhas e o Português Suave em pirarmo-nos hoje para o rio Geba que o Fórmula Um, o condutor, afirma ficar a quinze minutos de Unimog.
Acordo como um animal de sangue frio em período de hibernação e, caso não fosse a barba por fazer desde há três por se ter gripado a bomba de água e a desagradável sensação pegajosa no corpo, bem teria mandado o compromisso para as urtigas. Mas avancemos. Tomado o pequeno almoço à pressa, toca de trepar para a viatura, com os dois camaradas vociferando contra o meu atraso, és sempre o mesmo, mais o Joshua apanhado a atravessar cabisbaixo a parada e a Daisy, como prémio do seu empenho em combater a minha letargia.
Por uma estrada todo o terreno, cheia de covas abertas pelas correntes das chuvas e de sulcos dos rodados das viaturas, em menos tempo que o calculado pelo Fórmula Um chegamos ao Geba: bem estreito quando comparado à sua dimensão em Bissau ou no ponto em que se cruza com o Corubal.
Mas bem mais largo quanto ás vistas que dele se podem colher: aquele pequeno grupo de bajudas, ó Cesário, sem rendas ou ramalhetes rubros de papoilas, apenas cintadas por uma tanga fina, tudo o mais só nudez ali exposta à luz do sol, com natural indiferença aos nossos olhos e sem nada ficarem a dever em graciosidade às virgens do paraíso celestial descrito por Jaló.
Salpicadas de espuma, com a água a escorrer em fios ou em contas pelos ombros, o seios, o colo, quantas aguarelas não dariam? Tantas quantas ninfas ou sereias de outros tempos imaginadas em pedra ou tela.
Pena, para não dizer pequena e simulada raiva, é a Segunda, a quem ironicamente comecei a tratar por Benvinda, nem uma única vez tenha posto os olhos em mim, limitando-se apenas a cumprimentar-me aquando da entrega da roupa à porta da camarata, limpa, sem vincos e ainda quente do ferro, ao fim da tarde.
À hora em que, num breve instante, o dia escurece, as boieiras alinhadas como esquadrões de caça recolhem ao refúgio da mata e o poente se tinge de cores vivas e quentes. Como nunca me foi dado ver.
_____
Notas de L.G.
(1) Vd. posts anteriores:
28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1001: Estórias de Contuboel (i): recepção dos instruendos (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)
30 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1005: Estórias de Contuboel (ii): segundo pelotão (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)
2 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1017: Estórias de Contuboel (iii): Paraíso, roncos e anjinhos (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)
4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1026: Estórias de Contuboel (iv): Idades sem lembrança (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)
Guiné 63/74 - P1026: Estórias de Contuboel (iv): Idades sem lembrança (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)
Foto: © Luís Graça (2005)
Quarto texto do Renato Monteiro, da série de cinco, que intitulei estórias de Contuboel, pequenos apontamentos que o meu amigo escreveu com base na sua experiência de instrutor de recrutas guineenses, em Contuboel, no 1º semestre de 1969. Desses recrutas, metade foram parar à CCAÇ 2590, que mais tarde (em Junho de 1970) passou a designar-se CCAÇ 12. A outra metade deu origem à CART 11, mais tarde CCAÇ 11.
IDADES SEM LEMBRANÇA
Coisa pela qual não passam: a comemoração do dia do aniversário. Pois não parece haver um entre os africanos do meu pelotão que saiba a sua idade. E lê-se-lhes nos olhos a inutilidade desse conhecimento que, apesar de tudo, acaba por ser superado através de um palpite dado por nós. Mera suposição inspirada no vinco e na dimensão das rugas, na maior ou menor vivacidade do olhar, não sei bem, num feeling que sustenta a nossa avaliação.
E é assim que Cherno Camará passou a partir de hoje a contar 23 anos, idade que acabou por merecer divertida discórdia quando comparada ao tempo de vida atribuído ao Amaduri Camará, 21 anos, por alguns considerado mais velho do que o primeiro.
Mas fora de qualquer polémica foram as 18 Primaveras calculadas para Demba Baldé, o Malagueta, seguramente o recruta mais jovem da nossa troupe, filho de Ira Baldé, prestigiado chefe de uma das tabancas da região de Gabu Sare.
Quanto a mim, talvez não fosse menos sensato deixar-se estes homens, na sua maioria ainda mais novos do que nós, tão alheados da sua idade quanto as árvores que se desenvolvem sem contarem os anéis do tronco que marcam o tempo da sua existência.
Opinião igualmente partilhada por Ussumani Colubali, para o qual o que importa é nunca perder de vista de quem se é filho, irmão, neto, bisneto e pai; bem como o lugar onde se nasceu e o número de cabeças de gado e de mulheres que se possui, sendo seguro que a memória da data de nascimento não leva a viver mais, sequer a acertar-se com o dia da sua morte. Ao contrário da generalidade dos africanos, muito reservados, Ussumane não se coíbe de expressar os seus juízos mesmo sem ser chamado a fazê-lo.
Assim, diz não existir à face da terra nenhumas Forças Armadas capazes de tão grandes façanhas como as nossas, razão que o levou a oferecer-se para o exército, aproveitando ainda uma vantagem: a possibilidade de, assim, ganhar uns patacões, muito difíceis de obter por outro meio.
Proveito que o Demba Baldé de bom grado dispensaria. Que foi o pai, contra sua vontade, que o mandou servir a tropa. Quando melhor estaria junto da sua Comança Baldé, ainda mais nova do que ele, a fazer filhos, a comer bianda e a tratar do gado.
Guiné 63/74 - P1025: Tenente-coronel Pimentel Bastos: a honra e a verdade (Luís Graça)
Guiné > Bambadinca > 1968 > Aspecto parcial do novo quartel de Bambadinca, no início da comissão do BCAÇ 2852 (1968/70). O Batalhão anterior tinha sido o BCAÇ 1904 (1966/68): foi no tempo deste batalhão que terá explodido, por acidente, o depósito de material de guerra.
1. A honra dos nossos camaradas é um valor que muito prezamos, mas a verdade deve estar acima de tudo: o Pimbas, diminuitivo de Pimentel Bastos, tenente-coronel e comandante do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), partilhou connosco as coisas boas e más da guerra, esteve em Bambadinca de saudosa memória, dormiu em Missirá, passou à reserva e morreu amargurado, segundo me diz o Beja Santos que era seu amigo e admirador…
Eu já não o conheci pessoalmente. Quando fomos colocados em Bambadinca (18 de Julho de 1969) o patrão já era outro, o Pamplona Corte Real… Os oficiais superiores nunca os considerei meus camaradas, nem nunca privei com eles – porque camarada é, etimologicamente falando, quem dorme comigo no mesmo buraco, no mesmo chão, na mesma cama, na mesma caserna; nem sequer companheiros, porque nunca comi, à mesma mesa com eles o mesmo pão (do latim cum + pane)…
Infelizmente, o Pimentel Bastos já morreu, e até por isso, não devemos manchar a sua memória… O episódio do “Ó Pimbas, não tenhas medo!” não é factual, é ficcional (vd. post de 1 de Agosto de 2006, da minha autoria > Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo!)…
2. O Beja Santos, que como sabem veio a correr, como mais 20 voluntários, de Missirá em socorro de Finete (que ele julgava que estava a ser atacada) e que, chegado aí, descobriu que o ataque era a Bambadinca, e que foi o primeiro a chegar à sede do batalhão, nessa noite de 28 de Maio de 1969 (vd. post de 1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1012: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (3): Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável ), vem em defesa da honra do seu comandante e seu amigo (um homem culto e sensível), garantindo-me, sob palavra de honra, que o Pimbas não estava em Bambadinca, mas sim em Bissau, de férias ou talvez em serviço, tanto faz… Logo nunca poderia ter sido ele o protagonista da humilhante cena no corredor, nas instalações dos oficiais, com o 2º comandante, de pistola em punho, a gritar: - Ó Pimbas, não tenhas medo!...
Aproveitou, o Beja Santos, no telefonema que me fez, na manhã do dia 2 de Agosto, antes de ir de férias, também para me corrigir o seguinte ponto: o major que tinha a mania de andar com pistolas Walther em punho, à cowboy, era o de operações, o Viriato (Viriato Amílcar Pires da Silva), e não o 2º comandante, major Bispo (Manuel Domingues Duarte Bispo)…
3. O meu texto, repito, é ficcionado, baseado em notas do meu Diário de um Tuga (1969-71) e fez parte de um pré-romance que comecei a escrever em 1981 e que continua incompleto (Na Guiné, longe do Vietname…)… Estas cenas, que eu anotei, contaram-me os gajos de Bambadinca, por onde passei – eu e o resto dos meus camaradas da CÇAÇ 2590/CCAÇ 12 -, a caminho de Contuboel, cinco dias depois do ataque a Bambadinca: de facto, tínhamos desembarcado no Xime, na LDG, na manhã de 2 de Junho de 1969, fomos saudados e escoltados pela companhia do Gilberto Madaíl (a CART 1746, que também estava à espera dos seus periquitos, a CCAÇ 2520, que lá ficou), passámos por Bambadinca (onde comemos a nossa ração de combate e onde ainda havia vestígios do ataque de 28 de Maio, não se falando aliás de outra coisa), tendo chegado à noite a Contuboel, via Bafatá…
Lembro-me muito bem de falar com o meu amigo e conterrâneo, o 1º cabo de transmissões de infantaria, Agnelo Pereira Ferreira – com quem, de resto, me cruzo frequemente, em férias, nos meus passeios matinais na maré vazia entre a Paria da Areia Branca e a Praia do Paimogo… ) e que me pode confirmar se o Pimbas estava ou não estava em Bambadinca nessa noite, por ocasião do ataque que ocorreu à meia noite e vinte e cinco minutos…
A maioria dos soldados dos batalhões, mesmo os da CCS, mal conheciam os seus comandantes, estando longe de saber qualquer era a sua agenda… Já os tipos das transmissões tinham, por obrigação, acompanhar as suas andanças via rádio… Compulsando a história do BCAÇ 2852, constato o seguinte, relativamente à actividade das NT no mês de Maio de 1969:
(i) dia 1, o Cmdt (Pimentel Bastos) deslocou-se ao local da Op Cabeça Rapada III;
(ii) a 8 acompanha o major de operações em visita ao Xitole e à Ponte dos Fulas;
(iii) a 12, os dois estão em Fá;
(iv) a 14, o Cmdt acompanha o Cmdt do Agr 2957 (coronel Hélio Felgas) em visita a Mansambo, Ponte dos Fulas, Xitole, Saltinho, Quirafo, Dulombi e Galomaro;
(v) a 24, o Cmdt deslocou-se ao Agr 2957 (com sede em Bafatá);
(vi) a 25 o Cmdt Militar e o Cmdt Agr 2957 visitam Bambadinca;
(vii) a 28, o Cmdt do Agr 2957, visita Bambadinca (depois do ataque, obviamente)…
Com esta actividade toda, não me parece razoável que o Pimental Bastos estivesse de férias, embora provavelmente já as merecesse: O BCAÇ 2825 partiu no Uíge, a 24 de Julho de 1968, e na estação seca de 1968/69 teve uma intensa actividade operacional, incluindo a Op Lança Afiada, a qual, segundo o Beja Santos, marca o princípio da desgraça do nosso tenente-coronel…
4. Eu vou inserir esta nota de esclarecimento no blogue… Como é timbre da nossa tertúlia e e de acordo com o nosso código de ética, temos o direito à verdade, devemos sempre prezar a verdade dos factos… Temos também que prezar a honra dos nossos camaradas e até daqueles que mandaram em nós (umas vezes bem, outras vezes mal, não vamos agora discutir isso)… E sobretudo temos a obrigação de respeitar a memória dos nossos mortos – de todos os nossos mortos - que, esses, já não podem infelizmente defender-se nem apresentar a sua versão dos acontecimentos…
Se algum de vocês quiser acrescentar mais elementos para esclarecimento do caso do Pimbas, estejam à vontade… Há muita malta desse tempo, e que esteve em Bambadinca ou no respectivo sector, entre 1968 e 1970: para além do Beja Santos, temos o Carlos Marques dos Santos, o Ernesto Ribeiro, o Hernâni Acácio Figueiredo, o Mário Armas de Sousa, o Paulo Raposo, o Torcato Mendonça, o Victor David, o Rui Felício, os meus camaradas da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Humberto Reis, Tony Levezinho, Joaquim Fernandes, Sousa)…
5. Fiquem, por fim, com a minha opinião: a famigerada expressão Ó Pimbas, não tenhas medo! – que o Beja Santos, por exemplo, nunca ouviu em Bambadinca – não é uma invenção minha, nem muito menos é uma infâmia que atinja a honra e o brio de um militar que eu não conheci, e que até poderia ser um homem afável e cosmopolita, sem vocação para comandar outros homens no teatro de guerra; é muito provavelmente uma expressão – satírica, grotesca, burlesca, caricatural, vicentina – que o nosso Zé Soldado criou para invectivar e ridicularizar o comportamento – muitas vezes deplorável, pouco honroso – de alguns dos nossos oficiais superiores do Exército que eram de facto militares de opereta… Falo, obviamente, dos poucos que conheci ou de quem ouvi falar...
O Pimbas não era necessariamente o tenente-coronel Pimentel Bastos, mas sim um boneco que nós, soldados, criámos, para causticar os nossos comandantes, um boneco para consumo dos programas de crítica social, na caserna, no bunker, no abrigo, na hora do lobo… Um pouco à semelhança do actual, popular e divertido, Contra-Informação da RTP 1…
De resto, muitos nós também tínhamos o nosso boneco: o Turra, o Vermelhinha, o Campanhã, o Alfero Cabral, o Camarada Sov, o major Eléctrico, o Tigre de Missirá… Temos que dar a conhecer, divulgar… e amar estes bonecos… Afinal, de contas, eles são nós, todos nós fizemos parte desta trágico-comédia…
Luís Graça
Guiné 63/74 - P1024: Pel Caç Nat 52, destacamento de Mato Cão (Joaquim Mexia Alves)
Leiria > Monte Real > Termas de Monte Real > O Joaquim Mexia Alves, hoje... Um conhecido empresário ligado ao sector do turismo...
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Destacamento do Mato Cão > Pel Caç Nat 52 > O Alf Mil Joaquim Mexia Alves, pousando com um babuíno (macaco-cão) mais o Braima Candé (na primeira), tendo na segunda fila, de pé, o seu impedido, o Mamadu, ladeado pelo Manga Turé.
Fotos: © Joaquim Mexia Alves (2006)
1. Mensagem do Joaquim Mexia Alves (ex-comandante do Pel Caç Nat 52 , 1971/73) (1)
Segundo percebi, o Beja Santos comandou antes de mim o Pel Caç Nat 52, por isso anexo uma fotografia tirada no Mato Cão em que poderão estar soldados ainda do seu tempo.
Agachados estão: o Macaco-Cão, eu, o Braima Candé e, de pé, o Mamadu (uma espécie de meu impedido) e o Manga Turé.
Abraço
Joaquim Mexia Alves
2. O Beja Santos, surpreendido, agradece a informação mas pergunta, intrigado: Pel Caç Nat 52: moranças em Mato Cão? Não haverá um exagero? Aposto que se trata de Finete!
Caro Luis, Obrigado por esta informação.
Não reconheci ninguém [da foto]. Foi o Mexia Alves quem substituiu o Nelson Wahnon Reis?
Gostava muito de saber. Abraços, Mário.
3. Comentário de L.G.:
Este destacamento é posterior à nossa estadia no Sector L1. Foi guarnecido por sub-unidades como o Pel Caç Nat 52 e a CCAÇ 12.
____________
Nota de L.G.
(1) O Joaquim Mexia Alves, ex-alferes miliciano de operações especiais, durante o período de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973, pertenceu a: (i) ; CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas); (ii) Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Ponte Rio Undunduma, Mato Cão) ; e (iii) CCAÇ 15 (Mansoa ) (aqui já já como capitão miliciano).
Vd. ainda posts de:
11 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P952: Evocando o libanês Jamil Nasser, do Xitole (Joaquim Mexia Alves, 1971/73)
13 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P958: 'Gajos das tropas africanas eram doidos' (Joaquim Mexia Alves, CART 3492, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15)
16 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P962: Pensamento do dia (5): Português, sem dúvida(s) (Joaquim Mexia Alves)
17 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P966: O Mexia Alves que eu conheci em Bambadinca (António Duarte, CCAÇ 12, 1973)
19 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P969: Mexias Alves e a malta do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) (Sousa de Castro)
21 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P976: A morte do Alf Armandino e a estupidez do capitão-proveta (Joaquim Mexia Alves)
26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P992: 'Estar apanhado' dava muito jeito e algum gozo (Joaquim Mexia Alves)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Destacamento do Mato Cão > Pel Caç Nat 52 > O Alf Mil Joaquim Mexia Alves, pousando com um babuíno (macaco-cão) mais o Braima Candé (na primeira), tendo na segunda fila, de pé, o seu impedido, o Mamadu, ladeado pelo Manga Turé.
Fotos: © Joaquim Mexia Alves (2006)
1. Mensagem do Joaquim Mexia Alves (ex-comandante do Pel Caç Nat 52 , 1971/73) (1)
Segundo percebi, o Beja Santos comandou antes de mim o Pel Caç Nat 52, por isso anexo uma fotografia tirada no Mato Cão em que poderão estar soldados ainda do seu tempo.
Agachados estão: o Macaco-Cão, eu, o Braima Candé e, de pé, o Mamadu (uma espécie de meu impedido) e o Manga Turé.
Abraço
Joaquim Mexia Alves
2. O Beja Santos, surpreendido, agradece a informação mas pergunta, intrigado: Pel Caç Nat 52: moranças em Mato Cão? Não haverá um exagero? Aposto que se trata de Finete!
Caro Luis, Obrigado por esta informação.
Não reconheci ninguém [da foto]. Foi o Mexia Alves quem substituiu o Nelson Wahnon Reis?
Gostava muito de saber. Abraços, Mário.
3. Comentário de L.G.:
Este destacamento é posterior à nossa estadia no Sector L1. Foi guarnecido por sub-unidades como o Pel Caç Nat 52 e a CCAÇ 12.
____________
Nota de L.G.
(1) O Joaquim Mexia Alves, ex-alferes miliciano de operações especiais, durante o período de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973, pertenceu a: (i) ; CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas); (ii) Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Ponte Rio Undunduma, Mato Cão) ; e (iii) CCAÇ 15 (Mansoa ) (aqui já já como capitão miliciano).
Vd. ainda posts de:
11 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P952: Evocando o libanês Jamil Nasser, do Xitole (Joaquim Mexia Alves, 1971/73)
13 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P958: 'Gajos das tropas africanas eram doidos' (Joaquim Mexia Alves, CART 3492, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15)
16 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P962: Pensamento do dia (5): Português, sem dúvida(s) (Joaquim Mexia Alves)
17 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P966: O Mexia Alves que eu conheci em Bambadinca (António Duarte, CCAÇ 12, 1973)
19 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P969: Mexias Alves e a malta do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) (Sousa de Castro)
21 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P976: A morte do Alf Armandino e a estupidez do capitão-proveta (Joaquim Mexia Alves)
26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P992: 'Estar apanhado' dava muito jeito e algum gozo (Joaquim Mexia Alves)
Guiné 63/74 - P1023: Postais Ilustrados (1): Pescadora, de etnia papel (Beja Santos)
Guiné Portuguesa > Bilhete postal > Pescadora (Papel). Edição: Agência-Geral do Ultramar. s/d. Enviado pelo nosso camarada Beja Santos. Digitalizado por L.G.
Foto: © Beja Santos (2006)
Os postais ilustrados, com motivos do folclore local ou paisagens da Guiné, que comprávamos em Bafatá ou em Bissau, como lembranças ou como bilhetes de correio que, depois de devidamente selados, mandávamos para a família e amigos, com uma simples nota a dizer que estávamos de boa saúde mas cheios de saudades... O que é feito deles ?
Muitos terão acabado, ingloriamente, no caixote do lixo, tal como os nossos aerogramas. Outros, compram-se agora por aí, em alfarrabistas e antiquários, procurados por coleccionadores de postais, saudosistas da Guiné, da África, do Império, ou apenas por simples coleccionadores... Outros ainda pairam no fundo dos nossos baús...
Bom, no último caso, é altura de lá ir tirar-lhes o pó, digitalizá-los e mandar-nos a respectiva imagem, para publicação no blogue, se possível com a reprodução dos respectivos dizeres... Tal como fizemos com este primeiro postal ilustrado que inaugura esta série...
No caso de o bilhete postal (ilustrado) ter alguma mensagem escrita que possa ter interesse para o nosso blogue, para o conhecimento e a compreensão do nosso quotidiano de guerra, ou até para a divulgação da história e da cultura dos povos da Guiné-Bissau, peço para me tirarem também uma cópia...
Para alguns de nós, estes postais podem ter algum valor afectivo, sentimental, raramente estético... Noutros casos, eles podem ter interesse, documental, para os estudiosos da Guiné e da guerra colonial: sociólogos, antropólogos, historiadores... Terão seguramente algum interesse para os mais jovens, portugueses e guineenses, com pouca ou nenhuma informação sobre os seus países, de há 20 ou 30 anos para trás...
Não vale a pena esconder que muitos deles também eram um arma de propaganda, usada pelo regime político de então, para reforçar a ideia do Portugal plurirracial e pluricontinental, que ia supostamente do Minho a Timor...
Fica aqui, pois, o desafio: nestas férias, vamos lá desencantar os postais ilustrados que mandávamos à família, nas nossas escapadelas a Bissau, e que devem jazer, abandonados, esquecidos, no fundo dos nossos baús... L.G.
Foto: © Beja Santos (2006)
Os postais ilustrados, com motivos do folclore local ou paisagens da Guiné, que comprávamos em Bafatá ou em Bissau, como lembranças ou como bilhetes de correio que, depois de devidamente selados, mandávamos para a família e amigos, com uma simples nota a dizer que estávamos de boa saúde mas cheios de saudades... O que é feito deles ?
Muitos terão acabado, ingloriamente, no caixote do lixo, tal como os nossos aerogramas. Outros, compram-se agora por aí, em alfarrabistas e antiquários, procurados por coleccionadores de postais, saudosistas da Guiné, da África, do Império, ou apenas por simples coleccionadores... Outros ainda pairam no fundo dos nossos baús...
Bom, no último caso, é altura de lá ir tirar-lhes o pó, digitalizá-los e mandar-nos a respectiva imagem, para publicação no blogue, se possível com a reprodução dos respectivos dizeres... Tal como fizemos com este primeiro postal ilustrado que inaugura esta série...
No caso de o bilhete postal (ilustrado) ter alguma mensagem escrita que possa ter interesse para o nosso blogue, para o conhecimento e a compreensão do nosso quotidiano de guerra, ou até para a divulgação da história e da cultura dos povos da Guiné-Bissau, peço para me tirarem também uma cópia...
Para alguns de nós, estes postais podem ter algum valor afectivo, sentimental, raramente estético... Noutros casos, eles podem ter interesse, documental, para os estudiosos da Guiné e da guerra colonial: sociólogos, antropólogos, historiadores... Terão seguramente algum interesse para os mais jovens, portugueses e guineenses, com pouca ou nenhuma informação sobre os seus países, de há 20 ou 30 anos para trás...
Não vale a pena esconder que muitos deles também eram um arma de propaganda, usada pelo regime político de então, para reforçar a ideia do Portugal plurirracial e pluricontinental, que ia supostamente do Minho a Timor...
Fica aqui, pois, o desafio: nestas férias, vamos lá desencantar os postais ilustrados que mandávamos à família, nas nossas escapadelas a Bissau, e que devem jazer, abandonados, esquecidos, no fundo dos nossos baús... L.G.
quinta-feira, 3 de agosto de 2006
Guiné 63/74 - P1022: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (16): De novo em Bissau, a caminho de... Dulombi
Guiné > Bissau > 1970 > Vista aérea da cidade, com o ilhéu do Rei, ao fundo, frente ao porto. Ao centro, a Praça do Império e o palácio do Governador.
Foto: © Paulo Raposo (2006)
XVII parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).
Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. 43-44 (1).
O PODER DA ORAÇÃO
Enquanto estivemos a nível de grupo de combate, por sugestão de um dos meus soldados, começámos a rezar o terço diariamente.
O meu grupo de combate foi o único que não teve baixas.
NATAL de 1969
Aproximamo-nos do segundo Natal passado na Guiné. À medida que o tempo passava parecia que os dias custavam mais a escoar e começava a crescer em nós a ansiedade do tempo passar mais depressa. Foi um Natal sem história.
MAIS UMAS FÉRIAS
As saudades de casa vão-se avolumando. Surgem em Janeiro as últimas férias. Estas férias não têm história à excepção de um caso que se passou em Bissau. Encontro um grande amigo meu, o Zé Espírito Santo, que estava instalado na Casa Gouveia, pertença de sua família, em trânsito para o mato. Foi uma festa. Nunca mais o vi. Deve ter passado um mau bocado na voragem do 25 de Abril.
NOVAMENTE o REGRESSO
No regresso destas férias, a Sra. D. Beatriz Nascimento (2) convida-me para ir jantar a casa dela. Muito atrapalhado me senti naquele jantar, pois quem estava à mesa além do dono da casa? Do Q. G. estava quase todo o Estado Maior, e do Comando-hefe o Brig Lopes dos Santos. Estava também presente o Padre Pedro Gamboa, Capelão Militar. Reconheceu-me. Ele tinha sido o orientador espiritual no Agrupamento de Escuteiros onde eu tinha andado.
Este Agrupamento estava instalado numa garagem do Palácio do Conde de Rio Maior, que gentilmente no-la cedeu, na Rua das Portas de Santo Antão, logo depois do Ateneu, [em Lisboa].
Terminado o jantar e o serão, o Brig Lopes Santos levou-me até ao Grande Hotel. Era e é uma simpatia. De caminho vai-me dizendo que na semana anterior tinha ido de heli visitar uma terra chamada Dulombi. Mais nada me acrescentou.
Deixa-me à porta do Hotel e eu fico à espera na beira do passeio que o senhor se afaste.
Qual o significado do que me disse de ter ido a Dulombi? Qual era a situação?
Passados anos, o meu cunhado António Brás Teixeira é convidado para ir como Director para um Banco em Moçambique. E lá seguiu ele, a minha irmã e os cinco filhos. Foram como se diz à Senhora da Asneira. Tudo lhes correu mal. A minha irmã perdeu dois filhos em Lourenço Marques. Um à nascença e outro com poucos meses de idade.
Quizeram fazer de África terra pagã após a descolonização, mas África está cheia de cristãos.
Ainda guardo as cartas que os meus sobrinhos me escreveram. Eram uma delícia. Ou seja, eles ditavam e a minha irmã escrevia.
Ao fim de algum tempo, o meu cunhado foi convidado pelo Governador, ao tempo o Dr. Baltazar Rebelo de Sousa, para Secretário Provincial. A tomada de posse foi no Salão Nobre do Ministério do Ultramar, sendo o ministro o Dr Silva Cunha.
Na cerimónia de posse estava presente o Brig Lopes dos Santos, então Governador de Cabo Verde. Acabados os discursos, as assinaturas e as cortesias, vou cumprimentar o nosso Brigadeiro, que exclama:
- Olha o Alferes de Dulombi!
Que memória!
Voltemos à situação de expectativa em que o Brig Lopes Santos me deixou por causa de Dulombi.
Como Madina do Boé tinha sido evacuada [em Fevereiro de 1969], a metralha que o inimigo lá descarregava tinha de ser usada noutro sítio. Assim, a zona de Galomaro, que era perfeitamente pacífica, deixou de o ser. Para lá tinha ido uma companhia de Pára-quedistas para reforçar a zona e manter o inimigo à distância.
Estávamos em Fevereiro de 1970 e contávamos, por tudo o que já tínhamos passado, ir para os arredores de Bissau, para o descanso, pois a nossa comissão terminava em Maio.
Dulombi ficava a sul de Galamaro. Será que ainda tínhamos de ir para lá? Passado pouco tempo de chegado à Companhia surge a ordem para a [CCAÇ] 2405 seguir para Dulombi para instalar um aquartelamento.
A desmoralização foi muita. Íamos para pior e bem pior.
___________
Nota de L.G.
(1) Vd. post anterior, de 31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1007: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (15): as colunas logísticas de Galomaro a Bafatá e a Bambadinca
(2) Esposa do Brigadeiro Nascimento, 2º Comandante Militar, aquando da chegada do Paulo Raposo à Bissau, em Agosto de 1968: vd. post de 5 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXVIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (4): Em Bissau com Spínola
Guiné 63/74 - P1021: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (4): A minha paixão pelo Cuor
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cuor > Missirá > Pel Caç Nat 52 1969 > O tigre de Missirá, o Alf Mil Beja Santos, como era conhecido afectuosamente pelos seus camaradas de Bambadinca, sede do BCAÇ 2852.
Texto e foto: © Beja Santos (2006)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cuor > Missirá > Pel Caç Nat 52 > O Alf Mil Beja Santos, rodeado das autoridades civis e religiosas de Missirá. "Uma recordação do dia grande do Ramadã. O velho Malã, sua aristocracia de turbante, a ostentação de suas vestes. O bom Keban, expressão de um orgulho que não morre. O padre Mané é o mais humilde do grupo, o grande conhecedor e intérprete do Corão, uma boa alma, feliz com nada que tem. O meu trajo é mesmo o meu traje, em grande estreia. Neste dia de manhã faleceu Bacari Soncó, um jovem Soncó, tísico e palúdico. A Guiné das imensas alegrias e provações".
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cuor > Missirá > Pel Caç Nat 52 > Recordando a sua chegada a Missirá, em 4 de Agosto de 1968, escreveu o Beja Santos: "Mal avistei o destacamento onde vivi 15 meses ininterruptamente, apertou-se-me o coração: o quartel tinha os postos de vigilância velhíssimos, o armamento era obsoleto, a mata avançava densa e perigosamente para o arame farpado" (...).
Foto: © Beja Santos (2006)
Caro Luís, o que é prometido é devido. Não sei até onde me levará este desvario pela escrita. Mas o desafio cumpre-se, a memória abre-se, as impressões avivam-se e a carta de 1 para 50000 que acabo de consultar foi como lhe tivesse pegado ontem pela última vez. Está-me a fazer bem voltar ao Cuor, onde está parte do meu coração.
Resta saber se os companheiros do blogue não estão a ler estes relatos como uma verdadeira xaropada. Se me permites a imodéstia, nem eu próprio acredito que isto está a acontecer.
Tenho andado tão concentrado a escrever sobre consumo e consumidores nos últimos 35 anos (1) que esta etapa da minha existência era um verdadeiro jardim suspenso onde raramente eu ia regar as flores. Mas é este o sal da terra, é esta a dinâmica da comunicação introduzida por um blogue. E agora vamos para férias. Depois do descanso, voltarei a este trabalho, com alegria renovada.
Teu, Mário.
A minha paixão pelo Cuor
No dia 3 de Agosto de 1968, o Capitão Lester Henriques, oficial de operações do Batalhão de Bambadinca, explicou-me a minha missão no regulado do Cuor:
- Precisamos de si para manter o Geba navegável. A partir de Bambadinca, o Geba é intransitável já que qualquer embarcação ficará destruída por um RPG2 que dispare a três metros de distância. Você comandará Finete, tem lá um pelotão de milícias e cerca de 150 almas. A sua missão é aguentar a todo o custo Missirá, em frente a três santuários do PAIGC: Madina/Belel, Sara e Sarauol. Em Missirá tem um pelotão de caçadores nativos e um pelotão de mílicias. Não tem electricidade no quartel, aviso-o que não tem nenhum conforto à sua espera, à volta de Missirá é terra de ninguém e estamos em crer que vem muita gente do PAIGC a Badora à procura de alimentos. Das informações que disponho, você vai comandar alguns dos melhores soldados do mundo. Desejo-lhe as maiores felicidades. E acautele-se com as minas.
À hora aprazada, na manhã de 4 de Agosto, apresentou-se o Furriel Zacarias Saiegh (2), que me cumprimentou com um sorriso largo e uma cortesia sincera (dele falaremos longamente mais tarde). Descemos em direcção ao porto e pela primeira vez cambei para a bolanha de Finete. Chegado a Finete, recebi os cumprimentos de Basílio Soncó, um dos irmãos do régulo Malâ. A povoação impressionou-me pela pobreza e a falta de defesa: não havia abrigos, as valas eram baixas, o armamento insuficiente para suportar uma hora de canhões sem recuo e morteiros 82.
Demorou tempo a perceber que o PAIGC não queria aterrorizar Finete, temendo uma maior e mais ofensiva guarnição que pusesse a ferro e fogo as suas colunas de reabastecimento.
Inteirado das dificuldades de Finete, a nossa coluna militar partiu pela estrada de Canturé, depois Darsalame, depois Caranquecunda, finalmente Missirá.
Mal avistei o destacamento onde vivi 15 meses ininterruptamente, apertou-se-me o coração: o quartel tinha os postos de vigilância velhíssimos, o armamento era obsoleto, a mata avançava densa e perigosamente para o arame farpado. Visitei as instalações sem fazer comentários, recebi depois cumprimentos, pois avisaram-me que o régulo e a sua família estavam à minha espera. Para tornar a cerimónia mais digna, improvisaram-se cadeiras, mandei fazer chá e avancei solenemente para um régulo outrora poderoso e cujo território era povoado de Enxalé até ao rio Gambiel descendo para Bambadinca, um minúsculo império que resultara dos acordos entre Teixeira Pinto e Infali Soncó. Depois da luta armada, o Cuor extremou-se: no mato denso ficaram os guerrilheiros, em Missirá e Finete, as famílias Mané e Soncó, leais à bandeira portuguesa.
O régulo, quando nos abraçamos, fez questão de me entregar a sua espada, como me devesse vassalagem. Eu sabia que tinha 15 segundos para dar a resposta certa. E a que dei selou a nossa amizade para sempre:
- Régulo, represento a autoridade militar, o senhor é a autoridade civil. Nesta guerra precisamos um do outro como as duas faces de uma moeda. O senhor dá-me a lealdade e eu cumprimento a minha honra dando a minha vida por esta terra.
Olhou-me no fundo dos olhos e nada mais disse. Bebemos um chá fumegante, o régulo mandou servir papaia e água fresca, cercados por toda a família, de pé. À despedida, num português pausado e harmonioso disse-me:
- Espero que fique na morança do homem branco que plantou o palmar de Gambiel.
Curioso, fui logo ver a morança e deparei-me com uma grande cama de ferro com colchão de folhelho, as barbas de milho que também se usavam nas aldeias portuguesas. Naquela morança viveu, vim apurar mais tarde, Armando Cortesão, um dos maiores cartógrafos portugueses que de facto coordenou uma plantação de palmeiras de Samatra no rio Gambiel, em frente a Massomine e Joladu. Recordo a emoção em que o Prof Eduardo Cortesão (3), seu filho, recebeu esta informação muitos anos mais tarde.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Regulado do Cuor > Missirá > 1969 > Aqui viveu o Beja Santos durante 15 anos, desde Agosto de 1968 a Outubro de 1969, com o seu Pel Caç Nat 52. Missirá era a sua "mais querida aldeola do mundo", escreveu ele num postal ilustrado enviado ao seu amigo, o poeta Ruy Cinatti .
Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
Foto: © Humberto Reis (2006)
Pedi para cirandar sozinho, para avaliar o que oferecia o destino. O sol punha-se rapidamente como uma bola de fogo meteórica que caia sobre os palmares (é assim e sempre nos trópicos). Eu ouvia o crioulo, sem entender praticamente nada. Mulheres esquálidas baixavam a cabeça à minha passagem. As crianças com enormes barrigas gralharam para mim. Senti-me num cenário sobrenatural e pela primeira vez, desde que desembarca do Uíge, perguntei-me qual o sentido que eu iria dar àquela guerra.
Penso que nessa noite não dormi praticamente nada, ouvindo os roncos das transmissões, as vozes de quem passava perto. Rezei, pedindo forças a Deus. Como se verá daqui adiante, Ele foi muitíssmo pródigo comigo. Em Missirá fiz-me homem, contraguerrilheiro, professor de crianças, consultor de consciências e tornei-me irmão inesperado de muita gente. A 5 de Agosto de 1968 nasceu a minha paixão por Missirá. Lá voltei em 1990 e 1991. O sofrimento, 20 anos depois, foi enorme. Mas a paixão estava intocável. Dessa paixão, da guerra sanguinolenta e dos feitos dos meus soldados, dos Mané e dos Soncó, falaremos mais adiante.
© Beja Santos (2006)
_____________
Notas de L.G.
(1) O Beja Santos é, profissionalmente, assessor principal do Instituto do Consumidor, o organismo da Administração Pública cuja missão é promover e salvaguardar os direitos dos consumidores. É autor ou co-autor de quase duas dezenas publicações sobre estas matérias. Pioneiro da defesa dos direitos do consumidor no nosso país, "cidadão profissional" (como ele gosta de se apresentar), deu 6 em Janeiro de 2004 uma entrevista ao jornalista Carlos Vaz Marques, programa Pessoal... e Transmissível, Rádio TSF, cujo registo áudio está disponível no respectivo sítio.
(2) Furriel Saiegh: Comandante interino do Pel Caç Nat 52, durante um ano, antes da chegada do Beja Santos. Mais tarde ingressaria na 1ª Companhia de Comandos Africanos, aonde chegou ao posto de capitão. Comandou esta lendária companhia, depois da morte em combate do Capitão João Bacar Jaló, tendo sido fuzilado pelo PAIGC após a independência.
(3) Eduardo Cortesão (1919-1991), médico, psiquiatra, professor da Faculdade de Medicina de Lisboa, director do Hospital de Miguel Bombardada, introdutor entre nós da grupanálise. O seu pai, Armando Cortesão (1891-1977), era um cartógrafo de renome mundial, co-autor, com A. Teixeira da Mota, de obras de referência como Portugaliae Monumenta Cartographica (1960-1962), em seis volumes.
Texto e foto: © Beja Santos (2006)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cuor > Missirá > Pel Caç Nat 52 > O Alf Mil Beja Santos, rodeado das autoridades civis e religiosas de Missirá. "Uma recordação do dia grande do Ramadã. O velho Malã, sua aristocracia de turbante, a ostentação de suas vestes. O bom Keban, expressão de um orgulho que não morre. O padre Mané é o mais humilde do grupo, o grande conhecedor e intérprete do Corão, uma boa alma, feliz com nada que tem. O meu trajo é mesmo o meu traje, em grande estreia. Neste dia de manhã faleceu Bacari Soncó, um jovem Soncó, tísico e palúdico. A Guiné das imensas alegrias e provações".
Foto e legenda: © Beja Santos (2006)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cuor > Missirá > Pel Caç Nat 52 > Recordando a sua chegada a Missirá, em 4 de Agosto de 1968, escreveu o Beja Santos: "Mal avistei o destacamento onde vivi 15 meses ininterruptamente, apertou-se-me o coração: o quartel tinha os postos de vigilância velhíssimos, o armamento era obsoleto, a mata avançava densa e perigosamente para o arame farpado" (...).
Foto: © Beja Santos (2006)
Caro Luís, o que é prometido é devido. Não sei até onde me levará este desvario pela escrita. Mas o desafio cumpre-se, a memória abre-se, as impressões avivam-se e a carta de 1 para 50000 que acabo de consultar foi como lhe tivesse pegado ontem pela última vez. Está-me a fazer bem voltar ao Cuor, onde está parte do meu coração.
Resta saber se os companheiros do blogue não estão a ler estes relatos como uma verdadeira xaropada. Se me permites a imodéstia, nem eu próprio acredito que isto está a acontecer.
Tenho andado tão concentrado a escrever sobre consumo e consumidores nos últimos 35 anos (1) que esta etapa da minha existência era um verdadeiro jardim suspenso onde raramente eu ia regar as flores. Mas é este o sal da terra, é esta a dinâmica da comunicação introduzida por um blogue. E agora vamos para férias. Depois do descanso, voltarei a este trabalho, com alegria renovada.
Teu, Mário.
A minha paixão pelo Cuor
No dia 3 de Agosto de 1968, o Capitão Lester Henriques, oficial de operações do Batalhão de Bambadinca, explicou-me a minha missão no regulado do Cuor:
- Precisamos de si para manter o Geba navegável. A partir de Bambadinca, o Geba é intransitável já que qualquer embarcação ficará destruída por um RPG2 que dispare a três metros de distância. Você comandará Finete, tem lá um pelotão de milícias e cerca de 150 almas. A sua missão é aguentar a todo o custo Missirá, em frente a três santuários do PAIGC: Madina/Belel, Sara e Sarauol. Em Missirá tem um pelotão de caçadores nativos e um pelotão de mílicias. Não tem electricidade no quartel, aviso-o que não tem nenhum conforto à sua espera, à volta de Missirá é terra de ninguém e estamos em crer que vem muita gente do PAIGC a Badora à procura de alimentos. Das informações que disponho, você vai comandar alguns dos melhores soldados do mundo. Desejo-lhe as maiores felicidades. E acautele-se com as minas.
À hora aprazada, na manhã de 4 de Agosto, apresentou-se o Furriel Zacarias Saiegh (2), que me cumprimentou com um sorriso largo e uma cortesia sincera (dele falaremos longamente mais tarde). Descemos em direcção ao porto e pela primeira vez cambei para a bolanha de Finete. Chegado a Finete, recebi os cumprimentos de Basílio Soncó, um dos irmãos do régulo Malâ. A povoação impressionou-me pela pobreza e a falta de defesa: não havia abrigos, as valas eram baixas, o armamento insuficiente para suportar uma hora de canhões sem recuo e morteiros 82.
Demorou tempo a perceber que o PAIGC não queria aterrorizar Finete, temendo uma maior e mais ofensiva guarnição que pusesse a ferro e fogo as suas colunas de reabastecimento.
Inteirado das dificuldades de Finete, a nossa coluna militar partiu pela estrada de Canturé, depois Darsalame, depois Caranquecunda, finalmente Missirá.
Mal avistei o destacamento onde vivi 15 meses ininterruptamente, apertou-se-me o coração: o quartel tinha os postos de vigilância velhíssimos, o armamento era obsoleto, a mata avançava densa e perigosamente para o arame farpado. Visitei as instalações sem fazer comentários, recebi depois cumprimentos, pois avisaram-me que o régulo e a sua família estavam à minha espera. Para tornar a cerimónia mais digna, improvisaram-se cadeiras, mandei fazer chá e avancei solenemente para um régulo outrora poderoso e cujo território era povoado de Enxalé até ao rio Gambiel descendo para Bambadinca, um minúsculo império que resultara dos acordos entre Teixeira Pinto e Infali Soncó. Depois da luta armada, o Cuor extremou-se: no mato denso ficaram os guerrilheiros, em Missirá e Finete, as famílias Mané e Soncó, leais à bandeira portuguesa.
O régulo, quando nos abraçamos, fez questão de me entregar a sua espada, como me devesse vassalagem. Eu sabia que tinha 15 segundos para dar a resposta certa. E a que dei selou a nossa amizade para sempre:
- Régulo, represento a autoridade militar, o senhor é a autoridade civil. Nesta guerra precisamos um do outro como as duas faces de uma moeda. O senhor dá-me a lealdade e eu cumprimento a minha honra dando a minha vida por esta terra.
Olhou-me no fundo dos olhos e nada mais disse. Bebemos um chá fumegante, o régulo mandou servir papaia e água fresca, cercados por toda a família, de pé. À despedida, num português pausado e harmonioso disse-me:
- Espero que fique na morança do homem branco que plantou o palmar de Gambiel.
Curioso, fui logo ver a morança e deparei-me com uma grande cama de ferro com colchão de folhelho, as barbas de milho que também se usavam nas aldeias portuguesas. Naquela morança viveu, vim apurar mais tarde, Armando Cortesão, um dos maiores cartógrafos portugueses que de facto coordenou uma plantação de palmeiras de Samatra no rio Gambiel, em frente a Massomine e Joladu. Recordo a emoção em que o Prof Eduardo Cortesão (3), seu filho, recebeu esta informação muitos anos mais tarde.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Regulado do Cuor > Missirá > 1969 > Aqui viveu o Beja Santos durante 15 anos, desde Agosto de 1968 a Outubro de 1969, com o seu Pel Caç Nat 52. Missirá era a sua "mais querida aldeola do mundo", escreveu ele num postal ilustrado enviado ao seu amigo, o poeta Ruy Cinatti .
Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
Foto: © Humberto Reis (2006)
Pedi para cirandar sozinho, para avaliar o que oferecia o destino. O sol punha-se rapidamente como uma bola de fogo meteórica que caia sobre os palmares (é assim e sempre nos trópicos). Eu ouvia o crioulo, sem entender praticamente nada. Mulheres esquálidas baixavam a cabeça à minha passagem. As crianças com enormes barrigas gralharam para mim. Senti-me num cenário sobrenatural e pela primeira vez, desde que desembarca do Uíge, perguntei-me qual o sentido que eu iria dar àquela guerra.
Penso que nessa noite não dormi praticamente nada, ouvindo os roncos das transmissões, as vozes de quem passava perto. Rezei, pedindo forças a Deus. Como se verá daqui adiante, Ele foi muitíssmo pródigo comigo. Em Missirá fiz-me homem, contraguerrilheiro, professor de crianças, consultor de consciências e tornei-me irmão inesperado de muita gente. A 5 de Agosto de 1968 nasceu a minha paixão por Missirá. Lá voltei em 1990 e 1991. O sofrimento, 20 anos depois, foi enorme. Mas a paixão estava intocável. Dessa paixão, da guerra sanguinolenta e dos feitos dos meus soldados, dos Mané e dos Soncó, falaremos mais adiante.
© Beja Santos (2006)
_____________
Notas de L.G.
(1) O Beja Santos é, profissionalmente, assessor principal do Instituto do Consumidor, o organismo da Administração Pública cuja missão é promover e salvaguardar os direitos dos consumidores. É autor ou co-autor de quase duas dezenas publicações sobre estas matérias. Pioneiro da defesa dos direitos do consumidor no nosso país, "cidadão profissional" (como ele gosta de se apresentar), deu 6 em Janeiro de 2004 uma entrevista ao jornalista Carlos Vaz Marques, programa Pessoal... e Transmissível, Rádio TSF, cujo registo áudio está disponível no respectivo sítio.
(2) Furriel Saiegh: Comandante interino do Pel Caç Nat 52, durante um ano, antes da chegada do Beja Santos. Mais tarde ingressaria na 1ª Companhia de Comandos Africanos, aonde chegou ao posto de capitão. Comandou esta lendária companhia, depois da morte em combate do Capitão João Bacar Jaló, tendo sido fuzilado pelo PAIGC após a independência.
(3) Eduardo Cortesão (1919-1991), médico, psiquiatra, professor da Faculdade de Medicina de Lisboa, director do Hospital de Miguel Bombardada, introdutor entre nós da grupanálise. O seu pai, Armando Cortesão (1891-1977), era um cartógrafo de renome mundial, co-autor, com A. Teixeira da Mota, de obras de referência como Portugaliae Monumenta Cartographica (1960-1962), em seis volumes.
Guiné 63/74 - P1020: Stress pós ou pré-traumático ? (João Tunes)
Post do João Tunes (um camarada que já não precisa de apresentação):
Caro Luís,
Confesso que já começo a ficar saturado de te elogiar a árdua labuta. Porque se não se deve embirrar com alguém estando sempre a expor os seus defeitos, isso do elogio perpétuo também não é coisa boa. Porque por este andar, tens por aí, tarda nada, numa qualquer parada de um quartel, ainda a salvo da passagem a condomínio privado, uma estátua e peras (e uma pêra nessa estátua, diga-se, esteticamente falando, até não descondizia com a ilustre personagem na reprodução do seu marcial recorte facial).
E, acho eu, a última coisa que um homem deseja, enquanto vivo (depois, é como diz o outro - façam o que quiserem que já não estou cá para me ralar), é virar feito pedra, bronze ou platina que seja. Assim, desculparás se, um dia destes, conseguir lobrigar defeito teu, daqueles de monta ou mesmo sem monta (que nenhum de nós foi de Cavalaria), como são os da condição humana, e to despeje por aqui. Não será por mal nem menor consideração, toma nota desde já. Apenas a amizade sincera de não permitir que entres na galeria dos mitos, o que deve ser aborrecido até dizer chega. Que mais não seja pelas péssimas companhias que obrigatoriamente lá se devem ter por falta de direito a escolha.
Ainda não é desta que te descomponho o porte impoluto de castrense miliciano de gema e, mais uma vez, vai um elogio e um agradecimento. Refiro-me à tua boa inspiração de descobrires e transcreveres a excelente entrevista do nosso camarada Luís Carvalhido ao Jornal de Barcelos. Ela revela um saber de profundidade serena, em que a acutilância e o grito não se perdem. Sobretudo na forma inspirada como nos mostra a essência do conflito entre o que foi o nosso estar, no que vivemos e no tempo restante em que defrontamos a memória, sempre em desarranjo continuado com uma sociedade que tão mal sempre viveu com o seu passado, pronta a cantar o hino com os sucessos e as glórias e metendo para debaixo do tapete as patifarias, sobretudo as mais grossas. Gostei particularmente, se o realce me é permitido, da passagem em que o nosso camarada Luís Carvalhido disse:
Na altura éramos todos meninos de nossa mãe. Não tínhamos sido ensinados a fazer mal, não tínhamos, sequer, sido ensinados a resistir ao mal. Na recruta fomos muitas vezes despersonalizados até ao mais pequeno pormenor. Os oficiais tentavam preparar homens para uma guerra - não sei se da melhor ou da pior maneira - e o que é certo é que o faziam duma forma que agredia sistematicamente o indivíduo. Isto aumentava o tal stress, mas havia outros. Fazíamos a recruta, a especialidade e ficávamos já com outro stress que era ficar à espera dos dez dias fatídicos. Sempre que nos ofereciam dez dias de férias sabíamos que era o caminho para a guerra. E depois perguntávamos: eu vou para a Spinolândia? A Spinolândia era a Guiné, porque estava lá o Spínola, e a Guiné era um Vietname. Era o terror de quem tinha 20 anos
E se apreciei particularmente este trecho do falar lúcido do nosso camarada, isso prende-se a ele colocar os pontos nos ii quanto ao chamado stress pós-traumático dos ex-combatentes, localizando, com rigor, o início do distúrbio. Pela minha experiência pessoal e vivencial colectiva, tudo começava onde ele colocou a génese - a militarização forçada, depois a espera do resultado da roleta da mobilização, na esperança de lhe não calhar a bola mais preta (a Spinolândia), que, afinal, a tantos calhou em desdita. De facto, o stress maior não foi com o desembarque nem com os azares nos caminhos e nas bolanhas (qualquer gajo, como animal de hábitos que é, a tudo se adapta, melhor ou pior). Ali, julgo que só nos agravámos.
Falando por mim. Estava eu na santa vida quarteleira do Regimento de Infantaria 1, na Amadora, perto de casa, com transporte à porta e horário de funcionário público, casadinho de fresco para mais, quando num dia que marcou - no negro - a minha vida, me chamam ao comando, entregam-me uma licença para gozo imediato de férias pré-mobilização e uma outra guia, esta de marcha, para me apresentar, após as férias de nojo, no quartel de Porto Brandão e embarque breve num Batalhão de Caçadores destinado à Guiné.
Pelo que soube então, o Batalhão em que era incorporado já estava a terminar o IAO tendo acontecido que o alferes de transmissões, um qualquer Chico mas daqueles bons e felizes, insatisfeito por tão reduzida prestação guerreira que lhe queriam calhar na lide com rádios, antenas e criptografia, se havia oferecido para os rangers e haviam resolvido fazer-lhe a vontade. Assim, o alferes Chico largou o IAO e foi direito a Lamego cumprir o treino da sua ambição guerreira e, com o rolar da escala, calhou-me substituí-lo.
O repentino da sucessão breve no tempo até embarcar no Niassa representou duas das semanas mais negras da minha vida. Havia o espectro da Guiné e a falta de tempo de adaptação. O mundo pareceu-me que tinha caído à minha volta. Casado há um ano, senti perder sentido tudo aquilo que tinha projectado em partilha com a minha companheira. E senti-me, verdade seja dita, uma rês a caminho do matadouro. Ou um palerma incoerente por ser contra a guerra colonial e ir fazê-la contra Amílcar Cabral, um dos ícones da minha juventude. Apeteceu-me desertar, depois sobrou-me o sentimento de cobardia de não o fazer, por não ter tido a coragem de largar um lar ainda em parto entusiasmado do começo. Foi ainda neste sofrimento fresco, contra a guerra e contra mim próprio, que subi as escadas do Niassa em Maio de 1969. Depois, o contacto com a guerra limitou-se a agravar a nódoa original. Que não foi pouco. Afinal, nós tínhamos mesmo o nosso Vietname.
O famoso stress levou-me a cometer uma loucura que me marcou a vida para sempre. Na visão alucinada da morte que julgava prometida, nesse medo humano de deixar corpo e alma aos vinte e poucos anos de vida, egoisticamente, entendi que não ia deixar o canastro na Guiné, morrendo e matando contra uma minha causa, sem deixar no mundo uma semente que me continuasse a vida, aquela que eu temia perder. E foi assim, emocionalmente, que convenci a minha companheira que engravidasse durante as minhas primeiras férias.
Desse acto egoísta, de desespero vital, nasceu a minha filha Catarina. Não me arrependo da obra saída, ela é uma mulher que me encheu e enche parte importante da minha vida (e estou a dever-lhe um neto que não é coisa pouca), mas não me perdoo, ainda hoje, de, pelo meu egoísmo desesperado, ter colaborado em metê-la no mundo para depois, conhecê-la fugazmente com dois meses, numas segundas férias, e tê-la para educar e amar já com mais de um ano de idade, sendo recebido com a repulsa com que, nessa idade, se recebe um estranho que entra casa dentro. Claro que custou mas ... foi. Quanto à marca do egoísmo meu, essa ficou-me sempre. Até hoje. Talvez porque, felizmente, tenha sido a marca mais perdurável de ter passado pela guerra na Guiné. Ou seja, cada qual com as suas dores.
Perdoem o pessoalismo da partilha. Abraço para ti. Abraços para todos os estimados tertulianos.
João Tunes
Caro Luís,
Confesso que já começo a ficar saturado de te elogiar a árdua labuta. Porque se não se deve embirrar com alguém estando sempre a expor os seus defeitos, isso do elogio perpétuo também não é coisa boa. Porque por este andar, tens por aí, tarda nada, numa qualquer parada de um quartel, ainda a salvo da passagem a condomínio privado, uma estátua e peras (e uma pêra nessa estátua, diga-se, esteticamente falando, até não descondizia com a ilustre personagem na reprodução do seu marcial recorte facial).
E, acho eu, a última coisa que um homem deseja, enquanto vivo (depois, é como diz o outro - façam o que quiserem que já não estou cá para me ralar), é virar feito pedra, bronze ou platina que seja. Assim, desculparás se, um dia destes, conseguir lobrigar defeito teu, daqueles de monta ou mesmo sem monta (que nenhum de nós foi de Cavalaria), como são os da condição humana, e to despeje por aqui. Não será por mal nem menor consideração, toma nota desde já. Apenas a amizade sincera de não permitir que entres na galeria dos mitos, o que deve ser aborrecido até dizer chega. Que mais não seja pelas péssimas companhias que obrigatoriamente lá se devem ter por falta de direito a escolha.
Ainda não é desta que te descomponho o porte impoluto de castrense miliciano de gema e, mais uma vez, vai um elogio e um agradecimento. Refiro-me à tua boa inspiração de descobrires e transcreveres a excelente entrevista do nosso camarada Luís Carvalhido ao Jornal de Barcelos. Ela revela um saber de profundidade serena, em que a acutilância e o grito não se perdem. Sobretudo na forma inspirada como nos mostra a essência do conflito entre o que foi o nosso estar, no que vivemos e no tempo restante em que defrontamos a memória, sempre em desarranjo continuado com uma sociedade que tão mal sempre viveu com o seu passado, pronta a cantar o hino com os sucessos e as glórias e metendo para debaixo do tapete as patifarias, sobretudo as mais grossas. Gostei particularmente, se o realce me é permitido, da passagem em que o nosso camarada Luís Carvalhido disse:
Na altura éramos todos meninos de nossa mãe. Não tínhamos sido ensinados a fazer mal, não tínhamos, sequer, sido ensinados a resistir ao mal. Na recruta fomos muitas vezes despersonalizados até ao mais pequeno pormenor. Os oficiais tentavam preparar homens para uma guerra - não sei se da melhor ou da pior maneira - e o que é certo é que o faziam duma forma que agredia sistematicamente o indivíduo. Isto aumentava o tal stress, mas havia outros. Fazíamos a recruta, a especialidade e ficávamos já com outro stress que era ficar à espera dos dez dias fatídicos. Sempre que nos ofereciam dez dias de férias sabíamos que era o caminho para a guerra. E depois perguntávamos: eu vou para a Spinolândia? A Spinolândia era a Guiné, porque estava lá o Spínola, e a Guiné era um Vietname. Era o terror de quem tinha 20 anos
E se apreciei particularmente este trecho do falar lúcido do nosso camarada, isso prende-se a ele colocar os pontos nos ii quanto ao chamado stress pós-traumático dos ex-combatentes, localizando, com rigor, o início do distúrbio. Pela minha experiência pessoal e vivencial colectiva, tudo começava onde ele colocou a génese - a militarização forçada, depois a espera do resultado da roleta da mobilização, na esperança de lhe não calhar a bola mais preta (a Spinolândia), que, afinal, a tantos calhou em desdita. De facto, o stress maior não foi com o desembarque nem com os azares nos caminhos e nas bolanhas (qualquer gajo, como animal de hábitos que é, a tudo se adapta, melhor ou pior). Ali, julgo que só nos agravámos.
Falando por mim. Estava eu na santa vida quarteleira do Regimento de Infantaria 1, na Amadora, perto de casa, com transporte à porta e horário de funcionário público, casadinho de fresco para mais, quando num dia que marcou - no negro - a minha vida, me chamam ao comando, entregam-me uma licença para gozo imediato de férias pré-mobilização e uma outra guia, esta de marcha, para me apresentar, após as férias de nojo, no quartel de Porto Brandão e embarque breve num Batalhão de Caçadores destinado à Guiné.
Pelo que soube então, o Batalhão em que era incorporado já estava a terminar o IAO tendo acontecido que o alferes de transmissões, um qualquer Chico mas daqueles bons e felizes, insatisfeito por tão reduzida prestação guerreira que lhe queriam calhar na lide com rádios, antenas e criptografia, se havia oferecido para os rangers e haviam resolvido fazer-lhe a vontade. Assim, o alferes Chico largou o IAO e foi direito a Lamego cumprir o treino da sua ambição guerreira e, com o rolar da escala, calhou-me substituí-lo.
O repentino da sucessão breve no tempo até embarcar no Niassa representou duas das semanas mais negras da minha vida. Havia o espectro da Guiné e a falta de tempo de adaptação. O mundo pareceu-me que tinha caído à minha volta. Casado há um ano, senti perder sentido tudo aquilo que tinha projectado em partilha com a minha companheira. E senti-me, verdade seja dita, uma rês a caminho do matadouro. Ou um palerma incoerente por ser contra a guerra colonial e ir fazê-la contra Amílcar Cabral, um dos ícones da minha juventude. Apeteceu-me desertar, depois sobrou-me o sentimento de cobardia de não o fazer, por não ter tido a coragem de largar um lar ainda em parto entusiasmado do começo. Foi ainda neste sofrimento fresco, contra a guerra e contra mim próprio, que subi as escadas do Niassa em Maio de 1969. Depois, o contacto com a guerra limitou-se a agravar a nódoa original. Que não foi pouco. Afinal, nós tínhamos mesmo o nosso Vietname.
O famoso stress levou-me a cometer uma loucura que me marcou a vida para sempre. Na visão alucinada da morte que julgava prometida, nesse medo humano de deixar corpo e alma aos vinte e poucos anos de vida, egoisticamente, entendi que não ia deixar o canastro na Guiné, morrendo e matando contra uma minha causa, sem deixar no mundo uma semente que me continuasse a vida, aquela que eu temia perder. E foi assim, emocionalmente, que convenci a minha companheira que engravidasse durante as minhas primeiras férias.
Desse acto egoísta, de desespero vital, nasceu a minha filha Catarina. Não me arrependo da obra saída, ela é uma mulher que me encheu e enche parte importante da minha vida (e estou a dever-lhe um neto que não é coisa pouca), mas não me perdoo, ainda hoje, de, pelo meu egoísmo desesperado, ter colaborado em metê-la no mundo para depois, conhecê-la fugazmente com dois meses, numas segundas férias, e tê-la para educar e amar já com mais de um ano de idade, sendo recebido com a repulsa com que, nessa idade, se recebe um estranho que entra casa dentro. Claro que custou mas ... foi. Quanto à marca do egoísmo meu, essa ficou-me sempre. Até hoje. Talvez porque, felizmente, tenha sido a marca mais perdurável de ter passado pela guerra na Guiné. Ou seja, cada qual com as suas dores.
Perdoem o pessoalismo da partilha. Abraço para ti. Abraços para todos os estimados tertulianos.
João Tunes
quarta-feira, 2 de agosto de 2006
Guiné 63/74 - P1019: O ataque a Bambadinca (28 de Maio de 1969) (Carlos Marques dos Santos)
Foto: © David J. Guimarães (2005)
Texto do Carlos Marques dos Santos (ex-furriel miliciano da CART 2339, Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69):
O ataque a Bambadinca (1)...
Dia 28 de Maio de 1969 ... Por volta das 00.30h ouvimos rebentamentos para os lados da Moricanhe. Mansambo ficava a sul de Bambadinca.
Afinal era Bambadinca. Era a primeira vez que tal sucedia.
As minhas notas dizem que a 29 de Maio de 1969 fui informado às 05.30h que o meu Pelotão, o 3º da CART 2339, iria reforçar a sede de Batalhão por 15 dias.
Reforçar a sede do Batalhão? Coisa grossa, pensámos.
Seguimos e aí tomámos conhecimento da destruição parcial do pontão do Rio Udunduma [, afluente do Geba, na estrada Xime-Bambadinca].
Chegados à sede de Batalhão, iniciámos às 16h, com o Pel Caç Nat 63, a ocupação do pontão para sua defesa e de Bambadinca.
No dia 30, fomos rendidos por 2 pelotões. Dia 31, pelas 14.00h fomos novamente para a ponte.
Dia 2 de Junho de 1969, pelas 20.30h, rebentamentos. Era Amedalai. 15 minutos depois Demba Taco e imediatamente Moricanhe.
Dia 4 Moricanhe era evacuada para reforço de Amedalai. Dia 11, Mansambo era atacada e logo depois o Xime.
Regressámos a Mansambo.
A futura CCAÇ 12 passou aqui nestes dias conturbados para iniciar a sua comissão.
CMS
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Nota de L.G.
(1) Vd. posts:
1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo!
31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1008: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2): o saudoso Pimbas, 1º comandante do BCAÇ 2852
Guiné 63/74 - P1018: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (III): E o jipe nunca voou
Terceira parte de um conjunto de três posts do João Tunes (1):
Fonte: Bota Acima, blogue do João Tunes > 6 de Abril de 2004
E O JIPE NUNCA VOOU
As noites dos oficiais em Catió seguiam a rotina própria de quem não tem outra escolha que dar cabo do tempo. Esperando que a comissão chegasse ao fim. Esperando. Não havia trincheiras nem valas e os edifícios eram todos cobertos (apenas) de chapas de zinco. Spínola não permitiu a abertura de valas de abrigo para que a tropa não se degradasse em espírito defensivo. Isto dizia ele. Não havia condições para se sair do quartel e, mesmo que houvesse, não havia para onde ir.
Na época, Catió já estava isolada dentro da zona ocupada pelo PAIGC. O abastecimento era feito apenas de avião. E estes não voavam de noite nem quando as condições meteorológicas eram adversas. Na época das chuvas, então, passavam-se semanas de completo isolamento. A comida era má e repetitiva e a falta de frescos (legumes, tubérculos, fruta) muito frequente. Passavam-se semanas a fio em que, ao almoço e ao jantar, se repetia a ementa de enlatados (comemos chispe com feijão de conserva, dias e dias). Quando a repugnância não permitia ingerir mais chispe com feijão, o recurso era consumir quilos e quilos de ostras e camarões, em que o rio próximo era rico, comprados à população a preços insignificantes. Até se enjoar a ostra e o camarão e se conseguir voltar a atacar a chispalhada enlatada.
Era usual o Nino Vieira mandar morteiradas para flagelar o quartel durante a noite. Com a continuação, a direcção de tiro era eficiente e praticamente todas as granadas acertavam dentro do quartel. Havia que retaliar de imediato com artilharia pesada e tratar das baixas quando as havia. Depois, avisar Bissau e esperar pela madrugada seguinte para que os caças Fiat fizessem estragos nas posições do PAIGC e os helis evacuassem os mais azarados na roleta da guerra.
Naquelas condições, terminado o jantar, não apetecia mesmo nada ir para a cama. Porque o que custava mais era estar-se deitado na cama, olhando o tecto zincado e constatar que aquilo era o mesmo que uma mera folha de papel como obstáculo à entrada de um morteiro. Depois de jantar, todos os oficiais se juntavam no bar e bebia-se, bebia-se, até deixar de se ter medo por não se ter lucidez para se sentir o quer que fosse. Os serões iam decorrendo tristes porque se estava num estado de letargia de espera, sempre à espera. Por volta das onze da noite, era habitual o Major Rodrigues, Segundo Comandante e com uma licenciatura em Farmácia, ir ao quarto buscar um calhamaço de Química Orgânica e organizar comigo (único parceiro com formação em Química) uma interminável sabatina de acerto de equações de reacções químicas. Até as cabeças nos doerem e termos coragem inconsciente de irmos à deita.
Uma certa noite, o Major Pessoa, o Oficial de Operações, lembrou-se de fazer um inquérito e perguntar aos presentes quem era a favor da continuação da guerra contra o PAIGC. Só um alferes miliciano (que, entretanto, metera os papéis para seguir carreira na GNR e que os restantes desprezavam por ser chico) disse que sim, concordava com a presença portuguesa na Guiné. Todos os restantes, oficiais, milicianos e de carreira, entendiam que era um estupidez teimar numa guerra perdida. Na altura, estava longe de saber que o Movimento dos Capitães já germinava em algumas cabeças...
Às vezes, o Comandante, Tenente-Coronel Melo, não se aguentava com os copos e procedia a uma liturgia que se repetiu muitas vezes. Levantava-se a custo e dizia-nos, autoritário:
- Senhores oficiais, façam favor de embarcar no meu jipe.
E lá ia toda aquela dezena de oficiais que havia no quartel, à molhada numa viatura de quatro lugares. O Comandante compunha a boina e conduzia o jipe para a pista de aviação em terra batida. Durante uma dúzia de vezes, o Tenente-Coronel acelerava o jipe pela pista fora, simulando o descolar de um avião.
Aquelas gincanas eram acompanhadas pelos gritos desafinados do oficialato etilizado de Catió, em que dominavam "TIREM-ME DAQUI!", "A GUINÉ É UMA MERDA!", "QUERO IR PRA CASA!", "MORTE AO CABRÃO DO CACO!", para só citar as passíveis de transcrição.
O jipe do Comandante nunca levantou voo. Quando convencido desta evidência, ele parava o jipe e dizia:
- Como esta merda não levanta voo, vamos fazer uma manifestação contra a PIDE.
Era então que ele embalava o jipe até parar frente às instalações da delegação da PIDE em Catió (era fora do quartel e chefiada por um agente europeu que vivia lá com a mulher). Então, normalmente por volta das duas da manhã, o oficialato da Guiné deitava cá para fora toda a força que restava e gritava, em uníssono, "MORTE À PIDE!".
Depois de o protesto se repetir meia dúzia de vezes, era o tempo de regresso, darmos voltas pelo escuro até irmos para a cama e esperar, esperar sempre, confiando que a noite não trouxesse trovoada. E assim se foi fazendo a catarse da espera em Catió.
A maioria de nós regressou. Não no jipe do Tenente-Coronel Melo mas sim de navio ou de avião requisitado à TAP. Andamos por aí com os parafusos mal apertados. Mas houve tantos, tantos, que só esperaram. Sem direito a viagem de volta. E sem terem terminado a catarse. Apenas remetidos ao silêncio absoluto com a vantagem única de não ouvirem os patrioteiros de hoje, saudosistas do império, dizerem que estivemos ali a defender a Pátria.
Abraços amigos e camaradas para todos os estimados tertulianos.
João Tunes
____________
Nota de L.G.
(1) Vd. posts de:
28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P999: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (I): tudo bons rapazes!
28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1003: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes)(II): tirem-me daqui!
Fonte: Bota Acima, blogue do João Tunes > 6 de Abril de 2004
E O JIPE NUNCA VOOU
As noites dos oficiais em Catió seguiam a rotina própria de quem não tem outra escolha que dar cabo do tempo. Esperando que a comissão chegasse ao fim. Esperando. Não havia trincheiras nem valas e os edifícios eram todos cobertos (apenas) de chapas de zinco. Spínola não permitiu a abertura de valas de abrigo para que a tropa não se degradasse em espírito defensivo. Isto dizia ele. Não havia condições para se sair do quartel e, mesmo que houvesse, não havia para onde ir.
Na época, Catió já estava isolada dentro da zona ocupada pelo PAIGC. O abastecimento era feito apenas de avião. E estes não voavam de noite nem quando as condições meteorológicas eram adversas. Na época das chuvas, então, passavam-se semanas de completo isolamento. A comida era má e repetitiva e a falta de frescos (legumes, tubérculos, fruta) muito frequente. Passavam-se semanas a fio em que, ao almoço e ao jantar, se repetia a ementa de enlatados (comemos chispe com feijão de conserva, dias e dias). Quando a repugnância não permitia ingerir mais chispe com feijão, o recurso era consumir quilos e quilos de ostras e camarões, em que o rio próximo era rico, comprados à população a preços insignificantes. Até se enjoar a ostra e o camarão e se conseguir voltar a atacar a chispalhada enlatada.
Era usual o Nino Vieira mandar morteiradas para flagelar o quartel durante a noite. Com a continuação, a direcção de tiro era eficiente e praticamente todas as granadas acertavam dentro do quartel. Havia que retaliar de imediato com artilharia pesada e tratar das baixas quando as havia. Depois, avisar Bissau e esperar pela madrugada seguinte para que os caças Fiat fizessem estragos nas posições do PAIGC e os helis evacuassem os mais azarados na roleta da guerra.
Naquelas condições, terminado o jantar, não apetecia mesmo nada ir para a cama. Porque o que custava mais era estar-se deitado na cama, olhando o tecto zincado e constatar que aquilo era o mesmo que uma mera folha de papel como obstáculo à entrada de um morteiro. Depois de jantar, todos os oficiais se juntavam no bar e bebia-se, bebia-se, até deixar de se ter medo por não se ter lucidez para se sentir o quer que fosse. Os serões iam decorrendo tristes porque se estava num estado de letargia de espera, sempre à espera. Por volta das onze da noite, era habitual o Major Rodrigues, Segundo Comandante e com uma licenciatura em Farmácia, ir ao quarto buscar um calhamaço de Química Orgânica e organizar comigo (único parceiro com formação em Química) uma interminável sabatina de acerto de equações de reacções químicas. Até as cabeças nos doerem e termos coragem inconsciente de irmos à deita.
Uma certa noite, o Major Pessoa, o Oficial de Operações, lembrou-se de fazer um inquérito e perguntar aos presentes quem era a favor da continuação da guerra contra o PAIGC. Só um alferes miliciano (que, entretanto, metera os papéis para seguir carreira na GNR e que os restantes desprezavam por ser chico) disse que sim, concordava com a presença portuguesa na Guiné. Todos os restantes, oficiais, milicianos e de carreira, entendiam que era um estupidez teimar numa guerra perdida. Na altura, estava longe de saber que o Movimento dos Capitães já germinava em algumas cabeças...
Às vezes, o Comandante, Tenente-Coronel Melo, não se aguentava com os copos e procedia a uma liturgia que se repetiu muitas vezes. Levantava-se a custo e dizia-nos, autoritário:
- Senhores oficiais, façam favor de embarcar no meu jipe.
E lá ia toda aquela dezena de oficiais que havia no quartel, à molhada numa viatura de quatro lugares. O Comandante compunha a boina e conduzia o jipe para a pista de aviação em terra batida. Durante uma dúzia de vezes, o Tenente-Coronel acelerava o jipe pela pista fora, simulando o descolar de um avião.
Aquelas gincanas eram acompanhadas pelos gritos desafinados do oficialato etilizado de Catió, em que dominavam "TIREM-ME DAQUI!", "A GUINÉ É UMA MERDA!", "QUERO IR PRA CASA!", "MORTE AO CABRÃO DO CACO!", para só citar as passíveis de transcrição.
O jipe do Comandante nunca levantou voo. Quando convencido desta evidência, ele parava o jipe e dizia:
- Como esta merda não levanta voo, vamos fazer uma manifestação contra a PIDE.
Era então que ele embalava o jipe até parar frente às instalações da delegação da PIDE em Catió (era fora do quartel e chefiada por um agente europeu que vivia lá com a mulher). Então, normalmente por volta das duas da manhã, o oficialato da Guiné deitava cá para fora toda a força que restava e gritava, em uníssono, "MORTE À PIDE!".
Depois de o protesto se repetir meia dúzia de vezes, era o tempo de regresso, darmos voltas pelo escuro até irmos para a cama e esperar, esperar sempre, confiando que a noite não trouxesse trovoada. E assim se foi fazendo a catarse da espera em Catió.
A maioria de nós regressou. Não no jipe do Tenente-Coronel Melo mas sim de navio ou de avião requisitado à TAP. Andamos por aí com os parafusos mal apertados. Mas houve tantos, tantos, que só esperaram. Sem direito a viagem de volta. E sem terem terminado a catarse. Apenas remetidos ao silêncio absoluto com a vantagem única de não ouvirem os patrioteiros de hoje, saudosistas do império, dizerem que estivemos ali a defender a Pátria.
Abraços amigos e camaradas para todos os estimados tertulianos.
João Tunes
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Nota de L.G.
(1) Vd. posts de:
28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P999: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (I): tudo bons rapazes!
28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1003: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes)(II): tirem-me daqui!
Guiné 63/74 - P1017: Estórias de Contuboel (iii): Paraíso, roncos e anjinhos (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Contuboel > 1998 > Foto tirada no centro da povoação, atravessada pela estrada que vai para Bafatá... Uma autêntica autoestrada, garantia o Albano Costa que por lá passou em 2005, onde o jipe podiachegar... aos 120!
Foto: © Francisco Allen & Zélia Neno (2006). Todos os direitos reservados.
O Renato Monteiro foi furriel miliciano na CART 2479 - que deu origem à CART 11 e esta, por sua vez, à CCAÇ 11 - e, mais trade, por motivos disciplinares, na CART 2520, Xime e Enxalé (1969). Encontrámo-nos, eu e ele, em Contuboel. Em Contuboel, perdemos o rasto um do outro. Há dias enviou-me a seguinte mensagem telegráfica:
Luís
Pela mão do 'Fora-Nada' (, o blogue), cheguei a Contuboel! Em que dia de Agosto nos poderemos encontrar?
Um grande a abraço,
Renato
O PARAÍSO, OS RONCOS E OS ANJINHOS
É à sombra frondosa das mangueiras, durante as breves pausas das longas oito horas diárias de instrução que Jaló, crente em Alá, me fala do paraíso perfumado, com frutos perenemente maduros, sem maçãs proibidas, abundante comida para satisfazer o apetites dos mais insaciáveis, das alegrias sem medida e das submissas mulheres de deslumbrante beleza, escolhidas a dedo, todas virgens para eterno consolo dos homens, sejam novos ou velhos.
Desse jardim implantado no céu, supremo prémio destinado aos que cuidam cumprir zelosamente não apenas com as obrigações de rezar, jejuar pela ocasião do Ramadã, fazer uma peregrinação a Meca ao longo da vida, mas também aos que recusam as tentações condenáveis pelo Islão, de que Maomé é o profeta, como o consumo de carne de porco e as bebidas alcoólicas.
Interdições que não abrangem o tabaco aspirado por cachimbos que cabem numa mão fechada ou as nozes de cola, tão azedas quanto duríssimas, que revitalizam os músculos e o resto, quando necessário, debelando a fome e dando coragem tanto para combater as agruras da vida como para enfrentar os bandidos da mata.
Nem tão pouco obrigam à fidelidade exclusiva da mulher esposada que, Jaló, tem duas e diz andar a pensar dia e noite numa terceira que vive em Gabu.
Assim não perca os roncos de couro, pagos a bom preço: o que traz atado à cintura e outro no peito, suspenso pelo pescoço, que o protegem tanto da picada dos lacraus como do veneno injectado pelas cobras; dos ferrões cravados pelas abelhas e de todo o bicho selvagem que constitua uma ameaça; da acção nefasta provocada não apenas por encontros indesejáveis com pessoas que rogam pragas, mas também contra seres diabólicos, vazios de forma e capazes de, com um único sopro, transmitirem uma enfermidade incurável morrendo-se, tarde ou cedo, dela. Ou sobrevivendo-se apenas quando se trata de uma mudez, coisa rara, ou de uma cegueira como aconteceu ao filho mais novo do antigo Chefe da Tabanca de Contuboel quando, em criança, andou perdido durante sete dias na mata, nunca mais voltando a ver as cores com que se cobre o mundo.
Com a protecção dos roncos e ainda com a inseparável e benfazeja presença do anjinho do Bem que, encavalitado num ombro do Jaló, cuida ele, há-de levar a melhor em disputa com o seu comparsa, colado ao outro ombro, ímpio por natureza e sempre pronto a pregar as mais nefastas partidas ao seu portador. Vá para onde for, mesmo em sonhos, a dormir.
Renato
O PARAÍSO, OS RONCOS E OS ANJINHOS
É à sombra frondosa das mangueiras, durante as breves pausas das longas oito horas diárias de instrução que Jaló, crente em Alá, me fala do paraíso perfumado, com frutos perenemente maduros, sem maçãs proibidas, abundante comida para satisfazer o apetites dos mais insaciáveis, das alegrias sem medida e das submissas mulheres de deslumbrante beleza, escolhidas a dedo, todas virgens para eterno consolo dos homens, sejam novos ou velhos.
Desse jardim implantado no céu, supremo prémio destinado aos que cuidam cumprir zelosamente não apenas com as obrigações de rezar, jejuar pela ocasião do Ramadã, fazer uma peregrinação a Meca ao longo da vida, mas também aos que recusam as tentações condenáveis pelo Islão, de que Maomé é o profeta, como o consumo de carne de porco e as bebidas alcoólicas.
Interdições que não abrangem o tabaco aspirado por cachimbos que cabem numa mão fechada ou as nozes de cola, tão azedas quanto duríssimas, que revitalizam os músculos e o resto, quando necessário, debelando a fome e dando coragem tanto para combater as agruras da vida como para enfrentar os bandidos da mata.
Nem tão pouco obrigam à fidelidade exclusiva da mulher esposada que, Jaló, tem duas e diz andar a pensar dia e noite numa terceira que vive em Gabu.
Assim não perca os roncos de couro, pagos a bom preço: o que traz atado à cintura e outro no peito, suspenso pelo pescoço, que o protegem tanto da picada dos lacraus como do veneno injectado pelas cobras; dos ferrões cravados pelas abelhas e de todo o bicho selvagem que constitua uma ameaça; da acção nefasta provocada não apenas por encontros indesejáveis com pessoas que rogam pragas, mas também contra seres diabólicos, vazios de forma e capazes de, com um único sopro, transmitirem uma enfermidade incurável morrendo-se, tarde ou cedo, dela. Ou sobrevivendo-se apenas quando se trata de uma mudez, coisa rara, ou de uma cegueira como aconteceu ao filho mais novo do antigo Chefe da Tabanca de Contuboel quando, em criança, andou perdido durante sete dias na mata, nunca mais voltando a ver as cores com que se cobre o mundo.
Com a protecção dos roncos e ainda com a inseparável e benfazeja presença do anjinho do Bem que, encavalitado num ombro do Jaló, cuida ele, há-de levar a melhor em disputa com o seu comparsa, colado ao outro ombro, ímpio por natureza e sempre pronto a pregar as mais nefastas partidas ao seu portador. Vá para onde for, mesmo em sonhos, a dormir.
Guiné 63/74 - P1016: Cansissé, terra de mil encantos (Parte III) (Idálio Reis, CCAÇ 2317, Julho de 1969)
Guiné > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > Foi na fonte de Semba Uala, que os nossos corpos se retemperaram de energias abaladas. Também, com exasperados desejos, se buscavam encontros de encantos.
Guiné > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > Mesmo junto à parte oriental da povoação, situava-se a fonte de Cam - Sissé (Semba Uala), com data de construção de 1959. Era conhecida vulgarmente pela Fonte dos Fulas, como se constata no celebérrimo banho à fula que estas duas bajudas estão a tomar.
Guiné > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > Um troço do rio Campossa, a nossa fronteira de sul, de águas mansas, fluindo serenamente para o grande Corubal
Guiné > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > Também em Cansissé se fabricava mel. A sua proveniência resultava de colmeias fixadas na copa das árvores, a fim de que cada enxame, no seu afã continuado, produzisse esse requintado néctar.
Fotos e legendas: © Idálio Reis (2006)
Terceira e última parte do texto do Idálio Reis, ex-Alf Mil, CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69)(1)
Caro Luís:
Da narração que me mereceu Cansissé, enquanto o meu grupo esteve lá sediado, e que já tiveste a oportunidade de a inserir no nosso Blogue (2), constato que ficou incompleta, porquanto as fotos da célebre Fonte dos Fulas e de outros recantos não te chegaram.
Assim, para que este postal sobre o povoamento fique completa, seguem mais estas fotos, para que a nossa Tertúlia as possa contemplar. Poderá ser a parte III.
E sobre a nostalgia de Cansissé, é tudo.
Cordiais cumprimentos a toda a enorme caserna.
Idálio Reis
__________
Notas de L.G.
(1) Vd. posts de:
19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXIV: Um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317)
18 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXX: Um pesadelo chamado Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317, 1968/69)
12 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P866: De Cansissé e a Fonte dos Fulas ao Baixo Mondego ou como o mundo é pequeno (Idálio Reis)
(2) Vd. posts de:
12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P954: Cansissé, terra de mil encantos (Parte II) (Idálio Reis, CCAÇ 2317, Julho de 1969)
12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P953: Cansissé, terra de encantos mil (Parte I) (Idálio Reis, CCAÇ 2317, Julho de 1969)
Guiné > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > Mesmo junto à parte oriental da povoação, situava-se a fonte de Cam - Sissé (Semba Uala), com data de construção de 1959. Era conhecida vulgarmente pela Fonte dos Fulas, como se constata no celebérrimo banho à fula que estas duas bajudas estão a tomar.
Guiné > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > Um troço do rio Campossa, a nossa fronteira de sul, de águas mansas, fluindo serenamente para o grande Corubal
Guiné > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > Também em Cansissé se fabricava mel. A sua proveniência resultava de colmeias fixadas na copa das árvores, a fim de que cada enxame, no seu afã continuado, produzisse esse requintado néctar.
Fotos e legendas: © Idálio Reis (2006)
Terceira e última parte do texto do Idálio Reis, ex-Alf Mil, CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69)(1)
Caro Luís:
Da narração que me mereceu Cansissé, enquanto o meu grupo esteve lá sediado, e que já tiveste a oportunidade de a inserir no nosso Blogue (2), constato que ficou incompleta, porquanto as fotos da célebre Fonte dos Fulas e de outros recantos não te chegaram.
Assim, para que este postal sobre o povoamento fique completa, seguem mais estas fotos, para que a nossa Tertúlia as possa contemplar. Poderá ser a parte III.
E sobre a nostalgia de Cansissé, é tudo.
Cordiais cumprimentos a toda a enorme caserna.
Idálio Reis
__________
Notas de L.G.
(1) Vd. posts de:
19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXIV: Um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317)
18 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXX: Um pesadelo chamado Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317, 1968/69)
12 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P866: De Cansissé e a Fonte dos Fulas ao Baixo Mondego ou como o mundo é pequeno (Idálio Reis)
(2) Vd. posts de:
12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P954: Cansissé, terra de mil encantos (Parte II) (Idálio Reis, CCAÇ 2317, Julho de 1969)
12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P953: Cansissé, terra de encantos mil (Parte I) (Idálio Reis, CCAÇ 2317, Julho de 1969)
terça-feira, 1 de agosto de 2006
Guiné 63/74 - P1015: CART 2479, CART 11 e CCAÇ 11 (Zona Leste, Gabu, subsector de Paunca) (Carlos Marques Santos)
1. Mensagem do Carlos Marques dos Santos:
Luís:
Faz sentido que a vossa companhia (CCAÇ 2590) desse origem à CCAÇ 12 e a do Renato Monteiro (CART 2479) desse origem à CCAÇ 11.
Não faz sentido ser CART 11, pois as CART tinham origem na Metrópole, eram originadas em quartéis de Artilharia e eram quase todas companhias independentes.
Eu fui Fur Mil Atirador de Artilharia. No fundo tropa-macaca, como se dizia na época, mascarado de artilheiro.
2. Mensagem do Zé Teixeira:
Luís:
Da História da CART 2479 consta:
"Em Contuboel ministrou instrução a naturais de etnia fula criando uma sub-unidade mista que se transformou numa companhia de intervenção, formando a partir de Janeiro de 1970 CART 11"
Teve origem no RAL 5 - Penafiel.
Posteriormente terá passado a CCAÇ 11, pois também aparece registada uma CCAÇ 11 proveniente de uma CART 11 cuja origem metropolitana é o RAL 5, formada a partir de Outubro de 1972
Um abraço
Zé Teixeira
3. O Albano Costa mandou-nos a ficha desta unidade, retirada da publicação do Estado Maior do Exército, Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 3º Volume: Guiné. (Mandou-nos também a ficha da CCAÇ 12, a publicar oportunamente).
CCAÇ 11
Cmdt: Cap Mil Inf Francisco António Touças; Cap Mil Cav Nuno Falcão Moreira de Sousa.
Início: 30 de Junho de 1972 (por alteração da anterior designação de CART 11).
Extinção: 23 de Agosto de 1974.
Síntese da actividade operacional:
Foi criada por alteração da designação anterior de CART 11 e era constituída por quadros e praças especialistas metropolitanos e pessoal natural da Guiné, da etnia Fula, estando então integrada no dispositivo e manobra do BCAV 3864 e com a responsabilidade do subsector de Paúnca.
Tinha ainda um pelotão destacado em Galomaro, este em reforço do BCAÇ 3872. Após recolha deste pelotão, em finais de Junho de 1970, destacou dois pelotões para Paiama, no seu subsector,[a noroeste de Paunca] em meados de Agosto de 1972 e mantendo ali apenas um, a partir de 26 de Dezembro de 1972.
Em 19 de Agosto de 1973, então integrada no dispositivo e manobra do BCAÇV 8323/73, os militares guineenses passaram à disponibilidade, sendo efectuada a sua desactivação e entrega do aquartelamento de Paunca ao PAIGC, em 21 de Agosto de 1974, com a consequene extinção dos subsector.
E,m 23 de Agosto, so quadros e outro pessoal metropolitano recolharema a Bissau, sendo a subsunidade extinta.
Observações: Não tem História da Unidade.
____________
Nota de L.G.
(1) Vd. post de 30 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1005: Estórias de Contuboel (ii): segundo pelotão (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)
(...) "Nota de L.G. (...)"Tenho dúvidas se era CART 11 ou CCAÇ 11... Já alguém me chamou a atenção para esse facto: as companhias africanas era todas de caçadores (CCAÇ 5, CCAÇ 6, CCAÇ 12, CCAÇ 13, CCAÇ 15, CCAÇ 21...). Bom, vamos ter que esclarecer isto".
Luís:
Faz sentido que a vossa companhia (CCAÇ 2590) desse origem à CCAÇ 12 e a do Renato Monteiro (CART 2479) desse origem à CCAÇ 11.
Não faz sentido ser CART 11, pois as CART tinham origem na Metrópole, eram originadas em quartéis de Artilharia e eram quase todas companhias independentes.
Eu fui Fur Mil Atirador de Artilharia. No fundo tropa-macaca, como se dizia na época, mascarado de artilheiro.
2. Mensagem do Zé Teixeira:
Luís:
Da História da CART 2479 consta:
"Em Contuboel ministrou instrução a naturais de etnia fula criando uma sub-unidade mista que se transformou numa companhia de intervenção, formando a partir de Janeiro de 1970 CART 11"
Teve origem no RAL 5 - Penafiel.
Posteriormente terá passado a CCAÇ 11, pois também aparece registada uma CCAÇ 11 proveniente de uma CART 11 cuja origem metropolitana é o RAL 5, formada a partir de Outubro de 1972
Um abraço
Zé Teixeira
3. O Albano Costa mandou-nos a ficha desta unidade, retirada da publicação do Estado Maior do Exército, Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 3º Volume: Guiné. (Mandou-nos também a ficha da CCAÇ 12, a publicar oportunamente).
CCAÇ 11
Cmdt: Cap Mil Inf Francisco António Touças; Cap Mil Cav Nuno Falcão Moreira de Sousa.
Início: 30 de Junho de 1972 (por alteração da anterior designação de CART 11).
Extinção: 23 de Agosto de 1974.
Síntese da actividade operacional:
Foi criada por alteração da designação anterior de CART 11 e era constituída por quadros e praças especialistas metropolitanos e pessoal natural da Guiné, da etnia Fula, estando então integrada no dispositivo e manobra do BCAV 3864 e com a responsabilidade do subsector de Paúnca.
Tinha ainda um pelotão destacado em Galomaro, este em reforço do BCAÇ 3872. Após recolha deste pelotão, em finais de Junho de 1970, destacou dois pelotões para Paiama, no seu subsector,[a noroeste de Paunca] em meados de Agosto de 1972 e mantendo ali apenas um, a partir de 26 de Dezembro de 1972.
Em 19 de Agosto de 1973, então integrada no dispositivo e manobra do BCAÇV 8323/73, os militares guineenses passaram à disponibilidade, sendo efectuada a sua desactivação e entrega do aquartelamento de Paunca ao PAIGC, em 21 de Agosto de 1974, com a consequene extinção dos subsector.
E,m 23 de Agosto, so quadros e outro pessoal metropolitano recolharema a Bissau, sendo a subsunidade extinta.
Observações: Não tem História da Unidade.
____________
Nota de L.G.
(1) Vd. post de 30 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1005: Estórias de Contuboel (ii): segundo pelotão (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)
(...) "Nota de L.G. (...)"Tenho dúvidas se era CART 11 ou CCAÇ 11... Já alguém me chamou a atenção para esse facto: as companhias africanas era todas de caçadores (CCAÇ 5, CCAÇ 6, CCAÇ 12, CCAÇ 13, CCAÇ 15, CCAÇ 21...). Bom, vamos ter que esclarecer isto".
Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo! (Luís Graça)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Espectacular vista aérea do aquartelamento, tirada no sentido leste-oeste, ou seja, do lado da grande bolanha de Bambadinca.
Do lado esquerdo da imagem, para oeste, era a pista de aviação (1) e o cruzamento das estradas para Nhabijões (a oeste), o Xime (a sudoeste) e Mansambo e Xitole (a sudeste). Vê-se ainda uma nesga do heliporto (2) e o campo de futebol (3).
A CCAÇ 12 começou também a construir um campo de futebol de salão (4), com cimento roubado à engenharia nas colunas logísticas para o Xitole. De acordo com a fotografia, em frente, pode ver-se o conjunto de edifícios em U: constituía o complexo do comando do batalhão (5) e as instalações de oficiais (6) e sargentos (8), para além da messe e bar dos oficiais (8) e dos sargentos (9).
Apesar do apartheid (leia-se: segregação sócio-espacial) que vigorava, não só na sede dos batalhões, como em muitas unidades de quadrícula, uns e outros, oficiais e sargentos, tinham uma cozinha comum (19). Do lado direito, ao fundo, a menos de um quilómetro corria o Rio Geba, o chamado Geba Estreito, entre o Xime e Bafatá.
O aquartelamento de Bambadinca situava-se numa pequena elevação de terreno, sobranceira a uma extensa bolanha (a leste). São visíveis as valas de protecção (22), abertas ao longo do perímetro do aquartelamento que era todo, ele, cercado de arame farpado e de holofotes (24). A luz eléctrica era produzida por gerador... Junto ao arame farpado, ficavam vários abrigos (26), o espaldão de morteiro (23), o abrigo da metralhadora pesada Browning (25). Em 1969/71, na altura em que lá estivemos, ainda não havia artilharia (obuses 14).
A caserna das praças da CCS (11) ficava do lado oeste, junto ao campo de futebol (3). Julgava-se que o pessoal do pelotão de morteiros e/ou do pelotão Daimler ficava instalado no edifício (12), que ficava do outro lado da parada, em frente ao edifício em U. Mais à direita, situava-se a capela (13) e a secretaria da CCAÇ 12 (14). Creio que por detrás ficava o refeitório das praças. Em frente havia um complexo de edifícios de que é possível identificar o depósito de engenharia (15) e as oficinas auto (16); à esquerda da secretaria, eram as oficinas de rádio (17).
Do lado leste do aquartelamento, tínhamos o armazém de víveres (20), a parada e os memoriais (18), a escola primária antiga (19) e depósito da água (de que se vê apenas uma nesga). Ainda mais para esquerda, o edifício dos correios, a casa do administrador de posto, e outras instalações que chegaram a ser utilizadas por camaradas nossos que trouxeram as esposas para Bambadinca (foi o caso, por exemplo, do Alf Mil Carlão, nosso camarada da CCAÇ 12).
Esta reconstituição foi feita pelo Humberto Reis, completada por mim (LG).
Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
A CCAÇ 12 começou também a construir um campo de futebol de salão (4), com cimento roubado à engenharia nas colunas logísticas para o Xitole. De acordo com a fotografia, em frente, pode ver-se o conjunto de edifícios em U: constituía o complexo do comando do batalhão (5) e as instalações de oficiais (6) e sargentos (8), para além da messe e bar dos oficiais (8) e dos sargentos (9).
Apesar do apartheid (leia-se: segregação sócio-espacial) que vigorava, não só na sede dos batalhões, como em muitas unidades de quadrícula, uns e outros, oficiais e sargentos, tinham uma cozinha comum (19). Do lado direito, ao fundo, a menos de um quilómetro corria o Rio Geba, o chamado Geba Estreito, entre o Xime e Bafatá.
O aquartelamento de Bambadinca situava-se numa pequena elevação de terreno, sobranceira a uma extensa bolanha (a leste). São visíveis as valas de protecção (22), abertas ao longo do perímetro do aquartelamento que era todo, ele, cercado de arame farpado e de holofotes (24). A luz eléctrica era produzida por gerador... Junto ao arame farpado, ficavam vários abrigos (26), o espaldão de morteiro (23), o abrigo da metralhadora pesada Browning (25). Em 1969/71, na altura em que lá estivemos, ainda não havia artilharia (obuses 14).
A caserna das praças da CCS (11) ficava do lado oeste, junto ao campo de futebol (3). Julgava-se que o pessoal do pelotão de morteiros e/ou do pelotão Daimler ficava instalado no edifício (12), que ficava do outro lado da parada, em frente ao edifício em U. Mais à direita, situava-se a capela (13) e a secretaria da CCAÇ 12 (14). Creio que por detrás ficava o refeitório das praças. Em frente havia um complexo de edifícios de que é possível identificar o depósito de engenharia (15) e as oficinas auto (16); à esquerda da secretaria, eram as oficinas de rádio (17).
Do lado leste do aquartelamento, tínhamos o armazém de víveres (20), a parada e os memoriais (18), a escola primária antiga (19) e depósito da água (de que se vê apenas uma nesga). Ainda mais para esquerda, o edifício dos correios, a casa do administrador de posto, e outras instalações que chegaram a ser utilizadas por camaradas nossos que trouxeram as esposas para Bambadinca (foi o caso, por exemplo, do Alf Mil Carlão, nosso camarada da CCAÇ 12).
Esta reconstituição foi feita pelo Humberto Reis, completada por mim (LG).
Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006)
Texto de Luís Graça (ex-furriel miliciano Henriques, com a inútil especialidade de armas pesadas de infantaria, pião das nicas ou pau para toda a obra da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)(1)
- Ó Pimbas, estou aqui, não tenhas medo! – esta terá sido a expressão, patética, gritada pelo major, o segundo comandante (2), de Walther em punho, o rosto iluminado pelo clarão das explosões, ao comandante do BCAÇ 2852, o tenente-coronel Pimentel Bastos, que rastejava em trajes menores no corredor do edifício do comando, naquela noite em que o céu desabou sobre o aquartelamento de Bambadinca…
Eu não estava lá, não posso testemunhar para a história, nem muitos menos confirmar ou infirmar os detalhes… Não estava lá nem sou voyeurista… Mas esta foi a expressão que ouvi, alguns dias depois, da boca de soldados e milicianos de Bambadinca.
Havia um sentimento misto e contraditório, de alívio, de regozijo e de révanche, nesta expressão dos militares de Bambadinca que faziam do Pimbas e do seu amigo o bode expiatório do grande susto, do cagaço monummental, que todos apanharam nessa noite sem jamais o admitirem… É na desgraça que se vê a relação de amor-ódio dos povos pelos seus líderes, dos subordinados pelos seus chefes…
A história repetia-se, grotesca, desta vez num dos mais belos cenários da Guiné, que era o quartel de Bambadinca, inscrutado num pequeno planalto defronte de uma magnífica bolanha, e com o Geba a seus pés, tortuoso, pérfido, assassino, como uma surucucu…
Texto de Luís Graça (ex-furriel miliciano Henriques, com a inútil especialidade de armas pesadas de infantaria, pião das nicas ou pau para toda a obra da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)(1)
- Ó Pimbas, estou aqui, não tenhas medo! – esta terá sido a expressão, patética, gritada pelo major, o segundo comandante (2), de Walther em punho, o rosto iluminado pelo clarão das explosões, ao comandante do BCAÇ 2852, o tenente-coronel Pimentel Bastos, que rastejava em trajes menores no corredor do edifício do comando, naquela noite em que o céu desabou sobre o aquartelamento de Bambadinca…
Eu não estava lá, não posso testemunhar para a história, nem muitos menos confirmar ou infirmar os detalhes… Não estava lá nem sou voyeurista… Mas esta foi a expressão que ouvi, alguns dias depois, da boca de soldados e milicianos de Bambadinca.
Havia um sentimento misto e contraditório, de alívio, de regozijo e de révanche, nesta expressão dos militares de Bambadinca que faziam do Pimbas e do seu amigo o bode expiatório do grande susto, do cagaço monummental, que todos apanharam nessa noite sem jamais o admitirem… É na desgraça que se vê a relação de amor-ódio dos povos pelos seus líderes, dos subordinados pelos seus chefes…
A história repetia-se, grotesca, desta vez num dos mais belos cenários da Guiné, que era o quartel de Bambadinca, inscrutado num pequeno planalto defronte de uma magnífica bolanha, e com o Geba a seus pés, tortuoso, pérfido, assassino, como uma surucucu…
A expressão que eu ouvi na caserna – ó Pimbas, não tenhas medo! -, era para todos efeitos reveladora do baixo moral em que as NT se encontrava na Guiné, mau grau o efeito do fenómeno Spínola e do seu populismo…
Para uma grande parte dos militares, do contingente geral, e até e para muitos dos meus camaradas milicianos, ele era uma espécie de anjo justiceiro que vinha, de heli, castigar os maus (os incompetentes oficiais superiores que estavam à frente dos nossos batalhões) e encorajar o Zé Soldado, lídimo representante do bom povo português… Em breve, o BCAÇ 2852 seria decapitado pelo raio fulminante da justiça spinolista, para gaúdio da populaça…
Chovia torrencialmente nessa noite de 28 de Maio de 1969 – por ironia, uma efeméride, sempre grata aos homens do regime, embora o 28 de Maio de 1926, que instaurara Ditadura Militar, e abrira o caminho ao Estado Novo, já nada dissesse ao comum dos meus camaradas de armas, de camuflado novinho em folha, a caminho de Contuboel que ninguém sabia onde ficava…Uma efeméride que –anoteu eu – também foi comemorada, à sua maneira, pelos homens do PAIGC…
Umas horas antes tínhamos nós atravessado o Trópico de Câncer, a caminho da Guiné, a caminho de Bissau, Bambadinca, Bafatá e Contuboel…
- Fomos todos apanhados as calças na mão! – contou-me, ainda em alvoroço, um conterrâneo meu, 1º cabo telegrafista de infantaria – se não me engano - , mostrando-me um monte de cápsulas de granada de canhão sem recuo com inscrições em russo e em chinês.
- Podíamos ter morrido todos! – concluiu, hiperbólico, o meu amigo Agnelo Ferreira por cujas mãos havia passado, três meses antes, a terrível lista negra dos mortos do Che-Che, no Corubal, na sequência da retirada de Madina do Boé, em 6 de Fevereiro de 1969…
Depois da Lança Afiada, toda a gente dormia de cu para o ar: a Browning, junto à pista de aviação, não tinha munições; não havia segurança próxima nem valas de comunicação entre os abrigos; faziam-se quartos de sentinela sem arma; e até os básicos eram escalados como aquele maluco das cozinhas que costumava ver elefantes a pastar ao fundo da pista…
- Os gajos vieram em peso (talvez mais de duzentos!) retribuir-nos a visita que tínhamos feito ao Fiofioli… Por sorte, não houve mortos!
Ainda deu tempo para espreitar um dos quartos dos furriéis, e ver o céu estrelado: o forro tinha sido atingido por uma morteirada; a granada explodiu em cima de uma das camas; por sorte, o tuga que a ocupava, tinha-se posto a milhas, dois minutos antes...
- Por sorte não houve mortos… - comentava eu, em voz alta, para o furriel que ia a meu lado, quando a coluna retomou a marcha, agora em estrada asfaltada, em direcção à próxima paragem, em Bafatá, a capital da zona leste…
- O meu conterrâneo é capaz de ter razão: afinal nesta guerra só morre quem tem de morrer… - ironizava eu.
- Fala a voz do reviralho – interveio o Noronha que seguia à frente, ao lado do condutor – Mas olha lá, ó Camarada Sov, tu com essas ideias derrotistas e dissolventes aqui não vais longe – proferiu o Alferes, em tom de velada ameaça…
- Só espero que a sorte esteja do meu lado…
- Fia-te na Virgem e não corras!... O problema nem é esse: nesta guerra morre-se mais por erros nossos do que por mérito do inimigo… São as estatísticas que o dizem – acrescentou o Ranger, que se meteu na conversa.
- Pelo muito pouco que já vi, não me atreveria a subestimara assim tanto o adversário que temos pela frente – respondi eu.
- Deixa-te de tretas. Os turras não passam de uns cães rafeiros, que ladram mas não mordem… E os cães quando mordem, também se abatem…
- Fico a saber que não gostas de cães…
- Nem muito menos de barrotes queimados – finalizou o Noronha, já agastado com o rumo da
conversa… Por ironia do destino, iria ter que aprender a lidar, durante vinte e meses, com os barrotes queimados que lhe calharam em sorte...
Demagógico e racista, o Noronha aproveitou para contar a última que tinha ouvido, no QG, em Santa Luzia:
- Sabes como é que Deus fez o preto ?... Ao sétimo dia, depois de completada a obra da criação, Deus foi descansar mas, por esquecimento, deixou ao sol o barro com que tinha feito Adão… Quando acordou, e como já não tinha mais nada que fazer, entreteve-se a fazer bonecos, à imagem e semelhança do homem mas, para haver confusões, pintou-os de preto e mandou-os para a floresta onde já estavam os macacos…
- Grande cabrão! – não pude deixar de rosnar, para mim mesmo, ao ouvir o alarve do Noronha por quem, desde Santa Margarida, eu não podia nutrir qualquer simpatia…
E foi assim, aos solavancos, sentados costas contra costas no dorso de um mastodonte, que a nossa conversa prosseguiu, aqui e ali mais azeda, não tanto pelas diferenças de idiossincrasia, como sobretudo pela tensão e pelo cansaço da viagem, até chegarmos a Contuboel, à hora em que o sol raiava de vermelho a savana arbustiva e os bandos se macacos-cães, na orla da floresta, se organizavam para proteger os filhotes das ciladas do leopardo…
Fonte: (Pre)texto: Na Guiné, longe do Vietname (inédito) (Os nomes o pessoal da CCAÇ 12, meus companheiros de viagem, são fictícios.... As restantes personagens são verdadeiras: o Pimbas e o Agnelo, por exemplo).
Luís Graça (1981-2005)
___________
Notas de L.G.
(1) Vd. posts anteriores:
13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVIII: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã
14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau
12 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLIV: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá
13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVIII: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã
14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau
12 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLIV: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá
1 de Agostod e 2006 > Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané
(2) O 2º comandante, na altura, era o major Manuel Domingues Duarte Bispo, transferido para o Q.G., substituído pelo major Herberto Alfredo do Amaral Sampaio.
(2) O 2º comandante, na altura, era o major Manuel Domingues Duarte Bispo, transferido para o Q.G., substituído pelo major Herberto Alfredo do Amaral Sampaio.
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