segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2439: Guiledje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (8): Informações úteis (Pepito)


1. Mensagem que acabo de receber do Pepito, em nome da organização, com pedido urgente de divulgação:


SIMPÓSIO > DIA A DIA > Informações úteis




(i) VISTO DE ENTRADA NA GUINÉ-BISSAU


A organização do Simpósio pretende, através da Direcção Geral de Cooperação do Ministério dos Negócios Estrangeiros, facilitar a obtenção do visto de entrada em Bissau, pelo que solicita a todos os oradores, convidados e participantes no Simpósio, para que até às 13h00 do dia 17 de Janeiro, façam chegar à organização (ad@orange-bissau.com):

- Nome
- Número de passaporte
- Nacionalidade.



Em tempo útil a organização informará das disposições que cada um deverá tomar para ter acesso a esse visto.


(ii) ALOJAMENTO E ALIMENTAÇÃO


A todos os oradores e convidados a organização do Simpósio irá assegurar o alojamento em quartos individuais, alimentação e transporte em Bissau e em Guiledje.

Para os restantes participantes a organização irá assegurar o transporte de Bissau para Guiledje, o alojamento e alimentação em Iemberém [, sede de delegação da AD - Acção para o Desenvolvimento, no Cantanhez] , pedindo desde já, a maior benevolência a todos, para que compreendam e aceitem as condições de alojamento durante os 2 dias em que permanecerem na zona de Cantanhez.

Consideramos ser um dever nosso receber todos os amigos, sem exclusão, que um dia estiveram em Guiledje e que desse tempo guardam uma recordação da sua juventude e que agora regressam de avião e carro.


(iii) CARTÃO DE ACESSO AO SIMPÓSIO


Todos os oradores, convidados e participantes no Simpósio disporão de um crachá que lhes dará acesso a todas as organizações e sessões do Simpósio.

Para isso cada um deverá enviar para a organização ((ad@orange-bissau.com) os seguintes elementos:

- Nome
- Funções que ocupa actualmente,
- Foto tipo passe
- indicação da data de chegada e partida


para que seja produzido o cartão, o qual lhe será entregue logo à chegada a Bissau.

Para todos os que foram militares em Guiledje, agradecemos que nos informem do nome da Companhia e do ano de estada.


(iv) PARTICIPANTES INSCRITOS NO SIMPÓSIO


Até este momento está confirmada a vinda dos seguintes participantes que se deslocam do exterior da Guiné-Bissau:


Adelino Handem (Guiné-Bissau)

Agnelo Dantas (Cabo Verde)

Alexandre Coutinho e Lima (Portugal)

Alfredo Caldeira (Portugal)

Álvaro Manuel Oliveira Basto (Portugal)

António Jorge Neto Pimentel (Portugal)

António M. Almeida e Silva (Portugal)

Armando Gonçalo Silva Oliveira (Portugal)

Armindo Ferreira Pereira (Portugal)

Carlos José Pereira da Silva (Portugal)

Carlos Matos Gomes (Portugal)

Catarina Santos (Portugal)

Delfim Joaquim Marques Santos (Portugal)

Diana Andringa (Portugal)

Diana Lima Handem (Guiné-Bissau)

Eduardo Costa Dias (Portugal)

Fátima Proença (Portugal)

Francisco Allen (Portugal)

Francisco J. F. Silva (Portugal)

Iva Cabral (Guiné-Bissau)

João Alfredo Teixeira da Rocha (Portugal)

Jorge Neto (Portugal)

José António Carioca (Portugal)

José Estêvão Ferreira Pires (Portugal)

Josep Sánchez Cervelló (Espanha)

José Teixeira (Portugal)

José Rocha (Portugal)

Julião Soares (Guiné-Bissau)

Júlio Balde (Guiné-Bissau)

Júlio de Carvalho (Cabo Verde)

Leopoldo Amado (Guiné-Bissau)

Luís Graça (Portugal)

Luís Moita (Portugal)

Luís Torgal (Portugal)

Manuel Amante da Rosa (Cabo Verde)

Maria Alice Ferreira Carneiro (Portugal)

Nuno Rubim (Portugal)

Óscar Oramas (Cuba)

Patrick Chabal (Inglaterra)

Paulo Santiago (Portugal)

Pedro Lauret (Portugal)

Silvério Ribeiro Lobo (Portugal)

Ulisses Estrela (Cuba)

Victor Ramos (Portugal)

Guiné 63/74 - P2438: História de vida (9): O Último Adeus ou as peripécias da minha partida no N/M Ambrizete (Helder Sousa)


Guiné > Bissau > s/d [1970-1972] > O Hélder Sousa no seu quarto em Bissau... Sinais dos tempos: um poster do 'Che' Guevara, um ícone da juventude da época, mas também um grande amigo do PAIGC... Ao ler a história de vida do Hélder, podemos perguntar-nos se o Exército não foi ver a ficha dele na PIDE/DGS, para saber se ele era um tipo de confiança para trabalhar em transmissões...

Foto: © Helder Sousa (2007). Direitos reservados.



1. Texto do Hélder Sousa (ex-Fur Mil de Transmissões TSF, Piche e Bissau, 1970/72) (1):


História de vida > "O Último Adeus"

Caro Luís e ilustres co-editores:

Conforme prometi, pretendo agora ser um pouco mais proactivo e, para isso, nada melhor do que começar pelo princípio.

Mas o que é o princípio?

Disse, na minha apresentação, que tendo vivido a minha infância e juventude em Vila Franca de Xira, fui naturalmente infuenciado pelas suas muitas e variadas escolas.

Podia então começar por aí, falando como fui formado no meio do gosto pela tauromaquia, nos ecos (e não só...) das lutas operárias da região, dos camponeses do outro lado do Tejo, do Ribatejo e Alentejo, da observação da vivência dos Avieiros, do facto de se estar no seio onde o neo-realismo materializou maior expressão, das Tertúlias das discussões sobre a política que se vivia e que se queria mudar, discussões essas levadas para outros locais, Nazaré, Foz do Arelho, etc.. Depois podia continuar pela descoberta da vida na cidade grande, o natural integrar no movimento associativo estudantil, o serviço militar nas suas etapas, 1º Ciclo do CSM em Santarém, 2º Ciclo em Lisboa, no BT, estágio em Tancos, na EPE, colocação para dar instrução e formação no Porto, no RT, a mobilização, etc.

Podia, de facto, começar por aí, onde certamente algumas coisas melhor se explicariam, mas é sempre bom deixar alguma coisa para dar largas à imaginação, para cada qual encontrar a sua leitura e, por isso, vou começar pelo último adeus.

E o que é isso? Pelo menos colocado deste modo?

Trata-se simplesmente de relembrar o que foi para mim a despedida dos familiares aquando do embarque para a Guiné, certamente idêntica à de tantos de nós que estão representados na Tabanca e dos outros também.

A minha teve algumas particularidades. Se na essência foi igual à de muitos outros, teve a vantagem (ou desvantagem) de ser quase confidencial pois, por minha vontade, foi restringida aos familiares mais chegados (pais, irmã e namorada) já que me tinha despedido do círculo de amigos e companheiros em tempo oportuno. Por esse aspecto não se reuniu do dramatismo que estavam associados ao grande aglomerado de pessoas que eram presentes aquando da partida dos Batalhões e cujo clamor eu ouvia distintamente, aumentando de forma a assumir um tom angustiante, nas manhãs em que chegava cedo a Lisboa e passava algum tempo no Jardim sobranceiro ao Cais.

A partida/despedida ocorreu na manhã do dia 23 de Outubro de 1970, 6ª feira, data em que oficialmente embarquei para a Guiné mas, na verdade, não foi assim.

Fui em rendição individual, como relatei quando me apresentei à porta da Tabanca, e o transporte designado foi um velho cargueiro, o Ambrizete, que foi abatido ao serviço algum tempo depois, sendo que esse cargueiro dispunha de 6 cabinas duplas para passageiros e, desse modo, levava nessa viagem 6 civis e 6 militares.

Os seis civis eram uma mulher grande e seus três filhos que ocupavam duas cabinas sendo a outra dos civis lotada com um homem já com uma idade relativamente avançada (pelo menos era isso que me parecia, naquela altura em que eu tinha 22 anos) que tinha estado emigrado em França e que ia agora para a Guiné trabalhar por conta da Tecnil na construção duma estrada qualquer e um outro indivíduo, mecânico de automóveis, da zona da Malveira, que encontrou na entrada naquele barco para um serviço qualquer à aventura na Guiné a solução para o problema que tinha pelo facto de se ter tomado de amores pela legítima esposa dum padeiro o qual, tendo descoberto a paixão e não concordado com ela, queria limpar-lhe o sebo, situação para a qual encontrou uma aliada na esposa do mecânico, razão do nosso homem se encontrar a bordo apenas com a roupa que tinha no corpo. Durante a viagem, e porque já tresandava, lá arranjámos maneira de, conluiados com a tripulação, lhe darmos um banho forçado ....

Os militares eram todos Furriéis de Transmissões, sendo 3 TPF de cursos posteriores ao meu e que não conhecia nem me lembro hoje como se chamam (disso me penitencio e peço-lhes desculpa) e os outros 3 eram, para além de mim, o Nélson Batalha que levei ao encontro em Pombal, que esteve em Catió onde foi ferido num ataque ao quartel, em Abril de 1991, e o Manuel Martinho Martins que esteve em Tite, os quais mais tarde, apartir de Agosto de 1991, formaram comigo e também com os Furriéis Eduardo Santos Pinto e José Manuel Lopes Fanha, o núcleo duro do Centro de Escuta do Agrupamento de Transmissões.

Acontece então que na época tinham ocorrido algumas acções que procuravam corporizar a oposição ao esforço de guerra através de actos como a sabotagem das Berliets e a bomba no navio Cunene, razão pela qual o nosso Ambrizete, para mais carregado com material de guerra, para além de géneros alimentícios e outras peças e maquinarias, estava ancorado ao largo, no meio do Tejo. Quando abandonámos o cais, com os familiares a dizerem o último adeus, e entrámos na lancha que nos levaria ao transporte, os elementos da tripulação que iam fazer a rendição dos que estavam lá de serviço confidenciaram-nos que "não vale a pena tanta lamúria na despedida porque não vamos hoje de certeza". E assim foi!

O barco estava com problemas de arrumação e distribuição da carga, tinha uma inclinação para a esquerda que nos fazia andar de lado, tendo o Comandante informado que iríamos largar para navegar ao largo da baía de Cascais para tentar resolver o problema, voltaríamos ao porto de Lisboa para manutenção das câmaras frigoríficas e, na melhor das hipóteses, sairíamos então a partir da 2ª feira seguinte, dia 26. É claro que os familiares, no Cais, não sabiam nada disto e ficaram a ver o barco manobrar, aproar à barra do Tejo e lá ficaram a acenar o último adeus.

Bem, encurtando a narrativa, posso adiantar que a partida aconteceu apenas no dia 3 de Novembro, mais de uma semana depois do que o Comandante previra e, durante esse tempo, não voltei mais ao barco. Todos os dias de manhã apresentava-me na Companhia de Navegação, informava-me das previsões e ia acompanhando as indicações: se era só para o dia seguinte já não contactava mais, se diziam "talvez logo à tarde já se saiba",então telefonava com as devidas cautelas para efeitos de identificação.

E assim fui andando até que no dia 3 de Novembro, dia em que efectivamente embarquei, fui com a minha namorada, ainda hoje minha mulher e companheira, ver um filme que tinha estreado na véspera, no então cinema Tivoli, com o sugestivo e felizmente não premonitório título de O Último Adeus, filme com o título original de I Girasoli, de Vittorio de Sica, com Marcello Mastrioani e Sofia Loren, que relatava a odisseia de uma mulher italiana numa desesperada busca pelo seu marido, soldado considerado desaparecido algures na Rússia quando integrava um dos Batalhões de italianos que acompanharam os alemães na invasão e acções bélicas naquele imenso território gelado.

Por ocasião do 2º intervalo estava na hora de contactar para saber das novidades quanto à partida. De manhã tinham-me dito que era muito provável que fosse o dia, mas para ligar por volta das 17 horas. Assim fiz, do foyeur do 2º Balcão (não havia dinheiro para plateis), telefonando dum daqueles orelhões que por lá havia, tendo sido o primeiro a chegar e nem tendo reparado que depois se formou uma pequena fila à espera de vez. É que eu já estava a ver as horas a passar, já seriam 17.10, quando o intervalo ocorreu e precisamente numa daquelas interrupções em situação dramática, que deixam os mais sensíveis a retomar o fôlego, quando o protagonista, alvo da busca pela mulher, é retratado em flashback andando perdido no meio da estepe gelada (andava às voltas) e reencontra o cadáver congelado dum camarada seu e ao tentar erguê-lo quebra-se o braço congelado, ficando com uma parte separada do corpo.

Certamente que essa cena estaria na mente das pessoas que estavam atrás de mim para telefonar e que me ouviram identificar como "O Furriel que ia para a Guiné no barco avariado", confirmando então que a partida seria nessa noite. Quando acabei de telefonar, pousei o telefone e me virei, deparei com três ou quatro rostos com olhos muito abertos a olhar para mim, fazendo-me sentir como a próxima vítima. Para além da ida p'ra guerra em si, a palavra Guiné era na altura já sinal de uma angústia maior.

Felizmente não foi assim. Nem sempre o último é o último. Pelo menos naquela ocasião O Último Adeus foi apenas o título de um filme, e o nosso último adeus foi apenas o último daquele dia.

Outros dias se sucederam!


Até breve

Hélder Sousa
Fur Mil Transmissões TSF

___________

Nota dos editores:



(...) Chamo-me Hélder Valério de Sousa, vivo actualmente em Setúbal, fui Furriel Miliciano de Transmissões, do STM, cumprindo a comissão de serviço na Guiné entre 9 de Novembro de 1970 e 10 de Novembro de 1972, tendo estado cerca 7 meses em Piche (contemporâneo do BCAV 2922) e o resto da comissão ao serviço do Centro de Escuta e de Radiolocalização do Agrupamento de Transmissões da Guiné (...).

Guiné 63/74 - P2437: Estórias de Guileje (1): Num teco-teco, com o marado do Tenente Aparício, voando sobre um ninho de cucos (João Tunes)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1967 > CART 1613 (1967/68) > Um DO 27 na pista, de terra batida, do aquartelamento. Foto do saudoso Cap Ref José Neto (1927-2006) (1).

Guiné > Região de Tombali > 1967 > CART 1613 (1967/68) > Foto aérea do aquartelamento e tabanca, vendo-se ao lado direito o heliporto. Foto do saudoso Cap Ref José Neto (1927-2006).

Fotos: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). (Reeditadas por Albano Costa). Direitos reservados.



Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1970 > "Junto foto do meu arquivo referente a uma das alturas em que estive em Guileje, datada de Maio de 1970 [ao tempo da CART 2410]. Em primeiro plano, a rede de protecção em arame farpado. Atrás, abrigos e porta de armas. Vêm-se ainda os telhados, da esquerda para a direita, da caserna, do refeitório e do posto de transmissões".

Foto e legenda: © João Tunes (2006). Direitos reservados


1. Na expectativa do Simpósio Internacional Guiledje na Rota da Independência da Guiné-Bissau (Bissau, 1-7 de Março de 2008), que será também o da celebração da amizade entre os nossos dois povos e entre os antigos combatentes de um lado e do outro, damos início à publicação de histórias/estórias tendo como sujeito/objecto o aquartelamento e a tabanca de Guileje, as NT que os defenderam e, eventualmente, os guerrilheiros do PAIGC que nos combateram até ao abandono daquela posição militar no sul da Guiné, em 22 de Maio de 1973.
Vamos recuperar alguns textos já publicados na 1ª série do nosso blogue (Abril de 2005/Maio de 2006) que já estão esquecidos ou na altyra foram lidos por menos gente do que a que temos hoje a visitar as nossas páginas. Vamos também incentivar a produção de novos textos, desafiando a criatividade e a memória dos nossos camaradas que andaram por aquelas paragens.

E, para começar, nada melhor do que uma estória do nosso amigo e camarada João Tunes, que conheceu Guileje quando foi tranferido para Catió, vindo do chão manjaco... Como Alferes Miliciano de Transmissões, da CCS do Batalhão sedeado em Catió, ele tinha que ir mensalemente, em serviço, a Guileje, como ele nos explicou em poste anterior, publicado em 6 de Outubro de 2005:

"Vivi uma pequena parte (mas marcante e bem) da odisseia de Guileje. Como o quartel estava sob a jurisdição do batalhão sedeado em Catió (assim como Gadamael e Cacine), eu tinha de lá ir uma vez por mês (ficando lá,uma semana) para ver como estavam as transmissões e mudar as cifras das mensagens e esperar por transporte de regresso a Catió. Porque, é claro que só lá chegava e de lá vinha por via aérea. E enquanto lá estava era 'sempre a assoar'. E julgo que em nenhum outro lugar da Guiné se sofreu tanto a intensidade e a impotência da guerra" (...) (2).

Obrigado, João. E desculpa o abuso desta re-republicação... A tua estória merece maior visibilidade. É também uma homenagem à tua pessoa, à tua frontalidade, à tua camaradagem. E, já agora: sabes o que é, hoje, feito deles ? Do Aparício e do Gouveia ? A história do concurso de pesca em Guileje é fabulosa: contava-se à boca cheia no meu/nosso tempo, em Missau, mas é bom lê-la nos teus escritos, contada pelas tuas palavras... Essa e outras cenas dos "sitiados de Guileje" merecem figurar no futuro Núcleo Museológico de Guiledje, com uma leitura sócio-antropológica do Suplício de Sísifo que foi, para muitos de nós, a guerra colonial na Guiné... (LG).

2. Estórias de Gulieje > Um voo com muita valentia
por João Tunes (2)
Subtítulos e notas da responsabilidade do editor L.G.



(i) O Tenente Aparício, o único piloto-aviador de DO que aterrava em Guileje


O Tenente Aviador Aparício, lenço azul ao pescoço e ar de quem está meio cá meio lá, entre a terra e o céu, aterra a Dornier (3) na pista de terra batida de Catió. Quando encontra o primeiro militar que o foi receber, diz-lhe, rindo-se:
- Então, aqui come-se e bebe-se? - Claro que havia. Havia sempre para o Tenente Aparício.

O aviador é levado, de jipe, ao bar de oficiais e são-lhe servidas as melhores iguarias disponíveis, acompanhadas de cervejas bem geladas. Sabia-se do voo que já era, aliás, aguardado ansiosamente há vários dias. Os aviadores eram sempre recebidos como VIPs na messe de oficiais do batalhão de Catió, lugar que, na maior parte do ano, só tinha ligações com o exterior pelo ar. O aterrar de um avião ou de um heli era sempre motivo especial e que comportava a emoção de confirmar que Catió existia no mapa.

Entre todos os aviadores em serviço na Guiné, o marado do Tenente Aparício era o mais festejado e o mais bem-vindo. Não por ser marado mas por ser o mais marado de todos, tanto que era o único que se dispunha a aterrar de Dornier em Guileje. E Guileje era a posição mais martirizada e mais isolada da área de intervenção do batalhão e em toda a Guiné. Por causa disso, a tropa encaixava bem as risadas sem motivo e uma ou outra frase desconexa que ia largando, pelo valor único que ele representava para o batalhão e para o pessoal de Guileje.

Após meia hora a descansar, a comer e a beber, o Tenente Aparício ajeitou o lenço azul e levantou-se:
- Vamos a isto -, disse com os olhos a brilharem. Se era o único que aterrava em Guileje, aquele era o sítio onde ele mais gostava de ir. Cada viagem era uma aventura. E o Aparício adorava aventuras.

Carregado o correio, medicamentos, algumas peças e acessórios, tudo em quantidade limitada por causa do pouco peso que a aeronave podia transportar, o Tenente Aparício despediu-se. E mandou-me subir. Naquele dia eu ia ser seu companheiro de viagem até Guileje.
- Vamos a isto -, repetiu, repetindo também uma nova risada.

Ia para passar uma semana em Guileje, como fazia quase todos os meses, para tratar de problemas com as transmissões e trocar os códigos das cifras da criptografia. E, daquela vez, seria companheiro de viagem do Tenente Aparício. E uma ida a Guileje era sempre uma emoção, pelo risco e por rever os camaradas martirizados e isolados bem junto da fronteira com a Guiné-Conacri. Para mais, com o aviador mais marado da Guiné.

(ii) Voando sobre um ninho de cucos...


O aviador conduziu a aeronave com os jeitos e o ar de condutor habituado a uma estrada de todos os dias. E ia sempre a rir. De repente, a janela da Dornier do meu lado salta e desaparece. O ar entra em turbilhão e faz esvoaçar toda a papelada solta. O aviador riu-se ainda mais. Como tendo achado que aquele incidente só ia tornar mais insólita e mais típica aquela viagem e ainda dava para gozar com a cara azulada da preocupação do seu companheiro inquieto e que duvidava que, sem janela, aquela geringonça se pudesse aguentar no ar. O aviador comentou, contendo o riso:
- Eu bem disse na Base que essa merda estava mal apertada, mas não faz mal, o avião não cai, ficamos é com as ideias mais frescas.

A viagem decorreu, num regalo de vista sobre as matas luxuriantes de verde intenso como era típico do sul da Guiné, permanentemente atravessadas por enormes e serpenteantes cursos de água. Sempre a sobrevoar uma zona controlada pelo PAIGC. É que, no sul, tirando os quartéis isolados e sitiados de Catió, Guileje, Gadamael e Cacine, todos sob o comando militar de Catió, a zona era inteiramente controlada por guerrilheiros. Estes, só eram contrariados no seu domínio pelo exército português através de bombardeamentos aéreos, fogo de artilharia e surtidas temporárias das forças especiais. E isto durou até o PAIGC receber os mísseis dos soviéticos, porque, a partir daí, todos os aviadores se recusaram a voar no sul. Mas isso foi mais tarde, já o Aparício de lá tinha saído. Voar, naquela zona, era um desafio permanente às clássicas antiaéreas e havia que confiar na divina providência ou coisa do género. Naquela viagem, o risco era o costume, a beleza da paisagem idem, só a ventania dentro da cabine estava fora da rotina.

(iii) Aterrando numa espécie de campo de futebol de terra batida

As palmeiras da periferia do quartel de Guileje perfilaram-se na frente da Dornier. À frente delas, distinguia-se o que parecia ser um quartel em estado degradado e meio despedaçado com uma bandeira portuguesa comida pelo sol e rota nos cantos, içada no meio dos casinhotos. O avião fez uma rápida volta de reconhecimento, rasou as copas das palmeiras, baixou repentinamente de altitude na clareira entre o palmeiral e o quartel, apontou o nariz direito a uma espécie de campo de futebol em terra batida, aterrou num movimento brusco e parou a poucos metros de uma carcaça de outra antiga Dornier que, antes, não tinha conseguido parar a tempo e se espatifara contra o muro do quartel. Era este risco permanente de as aeronaves imitarem a sua irmã espatifada que levava a que todos os camaradas do Aparício se recusassem a aterrar em Guileje. Mas ele preferia aquela viagem sobre todas as coisas na vida. Há homens para tudo, é o que vale aos abandonados pela sorte.

Indolentemente, alguns soldados montaram segurança à Dornier. Sem dirigirem palavra aos recém-chegados. Rostos fechados, olhares distantes e desinteresse ostensivo. O Tenente Aparício não queria sair do avião pois tinha de regressar a Bissau enquanto era dia. Só deu tempo para descer e tirar a carga destinada a Guileje. A guarda estava montada, G3 carregadas ao ombro, nada mais. Nenhum oficial ou graduado apareceu e os soldados da guarda não falavam. Disse alto e com bom som:
- Então não descarregam as vossas coisas? Porra, pelo menos, tirem o vosso correio.

Nada de reacção. Tivemos de ser, eu e o Aparício, que resolvemos o impasse mandando com os embrulhos e o saco do correio para o chão da pista, para que a Dornier pudesse regressar vazia.

(iv) O famoso concurso de pesca de Guileje

Os militares em Guileje queriam lá saber das peças e dos acessórios. Inclusive, não mostravam qualquer interesse em ler as cartas dos familiares. Queriam lá saber da família. Ali, naquele sítio, nada interessava. Se calhar, já nem estavam interessados em sair dali. Talvez porque achassem que já não eram pessoas mas ratos metidos dentro de uma ratoeira, destinados a apanhar porrada, só apanhar porrada.

O Tenente Aviador Aparício regressou a Bissau sem a janela do lado direito. Que se lixasse o raio da janela.
- Talvez tenha acertado na cabeça do Nino -, disse com voz sumida.

E levantou voo rumo a Bissau. Sem se rir. Talvez porque achasse que tinha visto, não uma companhia de militares portugueses, mas sim um bando de humanóides sem vontade de viver.

Enclausurados dentro do quartel, morteirada todos os dias em cima, com baixas quando iam buscar água a um quilómetro, comendo com uma perna fora da mesa para se atirarem para uma vala quando a primeira granada caísse, os militares de Guileje sentiam-se mais perto de outra vida que da vida vivida.

Os que não estavam malucos por lá andavam perto. Saudável, mesmo saudável, não havia quem servisse de amostra. O único divertimento era juntarem-se à volta de um bidão cheio de água do pântano que trazia meia dúzia de peixes minúsculos, dobrarem alfinetes, amarrá-los a uma linha, meterem uma côdea de pão em cada alfinete e tentarem pescar os ínfimos peixes. Cada um que apanhava um peixito, contava alto o seu score de pescador e voltava a deitar o peixe para dentro do bidão antes que morresse e o jogo tivesse de acabar por falta de motivo. E ali estavam horas naquilo, só se ouvindo, uma vez por outra, uma voz dizer oito, ou cinco, ou dez. No fim, nem o campeão se interessava por dizer que tinha sido ele a ganhar o concurso de pescaria. Em Guileje, ninguém se atrevia a dizer que ganhava o quer que fosse. Ali, a sensação era que só se perdia.


(v) Um alferes médico, maluco, que deu baixa psiquiátrica a uma companhia inteira


Perguntei pelo Alferes Médico Gouveia, pândego como poucos e meu companheiro inseparável na viagem de vinda no Niassa.
- Já cá não mora-, foi a resposta seca que obtive.

Só muito mais tarde me explicaram a sorte do meu amigo médico. O Alferes Médico Gouveia, quando foi destacado para Guileje, declarou toda a companhia em baixa psiquiátrica e requereu a sua substituição imediata.
- Está tudo maluco -, afirmou com a sua autoridade de médico.

Ninguém lhe passou cartão. Ao fim de estar três meses em Guileje, o Alferes Médico teve autorização para ir passar férias a Portugal. Quando chegou a Bissau, exigiu que uma auto-metralhadora fosse disponibilizada para o levar à pista para embarcar no avião da TAP. Oficiais amigos conseguiram arranjar maneira de lhe fazer a vontade. E foi dentro de um blindado ligeiro que o Alferes Médico Gouveia se aproximou da escada de acesso ao avião pousado na pista civil de Bissau. Saiu do blindado, subiu a escada do avião, no cimo voltou-se, fez uma continência para a linha do horizonte e embarcou. Não regressou. Durante as férias, foi visto por uma junta médica e considerado inapto para o serviço militar. E safou-se de mais Guileje e de mais Guiné. Estava mais maluco que os malucos que ele não conseguira evacuar.

Muitas vezes mais haveria de fazer companhia ao Tenente Aviador Aparício, nos seus voos aventureiros pelos céus da Guiné. Mas a sensação de voar sem janela, essa nunca se repetiu. Repetia-se, isso sim, o resto: o aviador ria-se, sem jeito nem propósito, até chegar a Guileje, voltava sempre calado e de rosto fechado. Mas, continuava a ser o único que aterrava uma Dornier na pista de Guileje. Enquanto esteve na Guiné, ninguém quis disputar o título de aviador mais marado que pertencia, com todo o direito, ao Tenente Aviador Aparício.

João Tunes

_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (Fim): o descanso em Buba

(2) Originalmente publicado num dos blogues do autor, o Bota Acima, 7 de Abril de 2004. Depois retomado, por nós, na 1ª série do nosso blogue:
6 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXXII: Os sitiados de Guileje (João Tunes).

(3) Dornier DO-27. Segundo a página do João Gil, dedicada a "algumas aeronaves militares usadas na Guerra Colonial em Moçambique" (T-6, Do-27, Fiat g-91, Noratlas, etc.), a Dornier DO-27 "foi o primeiro avião feito na Alemanha (Oeste) depois da Grande Guerra, seguindo o mesmo conceito do Fieseller Storch. Foram manufacturados 628, e tanto teve uso civil como militar". Citando como fonte a FAP, o autor diz que "os aviões Do 27, de que a Força Aérea teve 133 exemplares nas versões A3 e A4, começaram a ser recebidos em 1961", tendo sido "adquiridos para operação no Ultramar, em missões de transporte ligeiro, evacuação sanitária e reconhecimento armado, para o que eram equipados com lança foguetes".

Ainda segundo a mesma fonte, eis algumas das especificações do Dornier DO-27:

Motor: 270 hp;Envergadura: 12,00 m; Comprimento; 9,54 m; Altura: 3,28 m; Superfície Alar: 19,40 m2; Peso vazio: 983 Kg; Peso equipado: 1570 Kg; Velocidade máxima: 250 km/h; Raio de acção; 870 km; Razão de subida: 198 m/min; Tecto de serviço: 5500 m; Tripulação: 1 + 5. Ver ainda página, em inglês, dedicada ao DO27.

domingo, 13 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2436: Diorama de Guileje (2): a casota do gerador Lister... Agora só faltam os torpedos bengalórios (Nuno Rubim)

Diorama de Guiledje > 2008 > A casota do gerador Lister: miniatura, da autoria de Nuno Rubim.

Fotos: © Nuno Rubim (2008). Direitos reservados 


 1. Mensagem do Nuno Rubim, com data de 11 de Janeiro: 

 Caro Luís: Nem de propósito ! Eu acabar o modelo da casa do gerador de Guileje e ir ao blogue ver se encontrava algo de novo sobre os torpedos bangalore (1). E dou de caras com o poste sobre o motor Lister ! (2) Tirei logo duas fotos ! Pois o Vítor Condeço foi de grande ajuda. E aqui vai o se pôde fazer. 

A casota do gerador (ainda sem telhado, que era em chapa de zinco ondulada), com o seu grupo Lister, dois bidões com as cores indicadas pelo Condeço (3) e dois jerricãs. Claro que no Diorama isso será dificilmente visível, mas que me deu um grande gozo fazê-la, lá isso deu ... E se eu tivesse a vista e as mãos de há vinte ou trinta anos ... 

 Um abraço, Nuno Rubim 

  2. Comentário de L.G.: 

 Nuno, a verdade é que ninguém sabe o que eram esses tais torpedos bengalórios, a que se refere o Idálio Reis... Alguém sabe ? Eu confesso a minha ignorância, mas na Wikipédia, na versão inglesa, encontrei uma definição, além de uma imagem (espero que isto dê uma ajudinha). Já agora, acrescentarei que em português, no Google, só encontrei duas referências ao termo "torpedos bengalórios" - uma das quais remetendo para o nosso blogue (1) - e cerca de 20 mil ao termo "bangalore torpedo"... Agora percebo que fizesse sentido o PAIGC usar estes engenhos explosivos para cortar o arame farpado ou abrir brechas nos nossos campos de minas... 

  "A Bangalore torpedo is an explosive charge placed on the end of a long, extendable, tube. It is used by combat engineers to clear obstacles that would otherwise require them to approach directly, possibly under fire. It is sometimes colloquially referred to as a Bangalore mine, bangers or simply a Bangalore. It has been estimated that the modern Bangalore torpedo is effective for clearing a path through wire and mines up to 15 metres long and 1 metre wide". 

 É descrita também a sua origem histórica e as suas primeiras utilizações no teatro de operações: 

  (...) "The Bangalore torpedo was first devised by Captain McClintock, of the British Army Bengal, Bombay and Madras Sappers and Miners at Bangalore India, in 1912. He invented it as a means of exploding booby traps and barricades left over from the Boer and Russo-Japanese Wars. The Bangalore torpedo would be exploded over a mine without the sapper having to approach closer than about three metres (ten feet). "(...) By the time of World War I the Bangalore torpedo was primarily used for clearing barbed wire before an attack. It could be used while under fire, from a protected position in a trench. "The torpedo was standardized to consist of a number of externally identical 1.5 metre (five foot) lengths of threaded pipe, one of which contained the explosive charge. The pipes would be screwed together using connecting sleeves to make a longer pipe of the required length, and a smooth nose cone would be screwed on the end to prevent snagging on the ground. It would then be pushed forward from a protected position and detonated, to clear a 1.5 metre (five foot) wide hole through barbed wire " (...).

Israel > Museu Batey ha-Osef > Um torpedo bengalório...

Fonte: Wikipedia (2008) (imagem do domínio público, copyleft)

_______________ 

 Notas de L.G.: 


 (...) Assunto - Torpedos bengalórios (...) "Dos 372 ataques/flagelações que Gandembel sofreu, o maior foi a 15 de Julho (de 1968) e, com consequências mais desastrosas, bem diferenciado dos 2 que tiveram lugar na 1ª quinzena de Setembro. É que quando se quer quantificar o arsenal que o IN fez utilizar, somente lhe posso reconhecer que foi variado e imenso, ter a sensação do tempo dispendido, avaliar o tipo de armamento posto nesse teatro e tentar reconhecer os resultados. Fui incapaz de reconhecer quanto armamento ou efectivos se cercaram de Gandembel. "A utilização dos 'torpedos bengalórios' fez-se incidir muito em especial em 15 de Julho, em que se tornou bem visível que houve destruição do arame farpado em frente ao paiol" (...). 


 (3) Vd. postes de: 


sábado, 12 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2435: PAIGC - Quem foi quem (6): Pansau Na Isna, herói do Como (Luís Graça)

1. Texto do editor L.G.:

PAIGC - Quem foi quem > Pansau Na Isna, herói do Como (1)

- Pansau Na Isna… Sabe quem foi ? – pergunto eu a um médico, guineense, meu aluno, filho de um antigo comandante da guerrilha, que actuou no Morés, entre 1963 e 1974.
- Sim, sei que é um dos nossos heróis nacionalistas.
- Sabe quando e onde morreu ? E em que circunstâncias ?
- Infelizmente, não sei…

Para a população, fracamente escolarizada da Guiné-Bissau (que tem quase 50 % de analfabetos) e sobretudo para os mais jovens (mais de 40% da população tem menos de 15 anos e apenas 3% tem mais de 65), população essa que já não têm quaisquer memórias da luta de libertação, Pansau Na Isna é apenas o nome de uma das principais avenidas da capital, Bissau (onde, por exemplo, a OMS tem a sua representação e onde fica o Hospital Nacional Simão Mendes, e a sede de diversas organizações nacionais e estrangeiras).

Eu também não sabia responder à pergunta, para vergonha minha… (Nunca ouvi o nome dele, no meu tempo de Guiné, 1969/71; também nunca estive no sul, do outro lado do do Rio Corubal). Só soube, há dias, através do episódio da série A Guerra, que passou na RTP 1, no dia 18 de Dezembro de 2007, que o Pansau Na Isna era um dos três comandantes do PAIGG que combateram os portugueses, na Ilha do Como, durante a Op Tridente.

De origem camponesa e de etnia balanta, lá encontrou a morte. Ele e outro comandante. Percebi isso do depoimento do único sobrevivente dos três, cujo nome não retive (Agostinho ?). Pansau Na Isna terá sido morto pelos fuzileiros navais. Os seus restos mortais repousam hoje, no Forte da Amura, ao lado de outros heróis da luta de libertação como Amílcar Cabral, Domingos Ramos e Titinha Silá.

A seguir à independência, Pansau Na Isna foi efígie de uma nota de 50 pesos (de que reproduzimos uma parte), moeda que hoje já não circula, substituída pelo CFA, uma moeda regional…

Foi também título de canção, criada e interpretada pelo popular conjunto musical, dos anos 70/80, Super Mama Djombo, no seu álbum Super Mama Djombo (2003, etiqueta: Cobiana). Este grupo musical, sob a liderança de Adriano Atchutchi, estilizou a música tradicional e deu ao conhecer ao mundo (e às gerações mais novas da população guiense), ao ritmo do estilo Gumbé, o que foi o sonho de Amílcar Cabral, a luta de libertação e a esperança dos guineenses no futuro... A origem do grupo remonta a 1973...

Diga-se, de passagem, que é (ou foi) um grupo carismático, mítico, cuja música merece ser conhecida por nós, ex-combatentes, cotas... Aqui fica uma cheirinho desse fabuloso grupo e do seu mítico álbum de 2003 (gravado em Portugal em 1979), que é obrigatório comprar e ouvir muitas vezes... Na canção sobre sobre Pansau Na Isna diz-se que ele foi um um homem grande... Sobre a importância do grupo pode ler-se aqui:

One of the great West African electric roots bands of the 70's and early 80's. With five interlocking electric guitars and several-part vocal harmonies, this fifteen-person orchestra blazes through fresh interpretations of traditional rhythms (...).

Retomando o 9º e último episódio da 1ª Série do programa A Guerra (1):

Do lado português, bem gostaria de ter ouvido o testemunho do meu querido amigo e nosso camarada Mário Dias, que tem três notáveis textos, na 1ª série do nosso blogue, sobre a Op Tridente (e que merece ser reproduzido, novamente, nesta 2ª série: como eu já escrevi na altura, o Mário Dias é o único dos membros da nossa Tabanca Grande que pode dizer "Eu estava lá") (2). Mas não, não ouvi. Joaquim Furtado e a sua equipa privilegiou os depoimentos dos militares portugueses de alta patente, a começar pelo homem, que comandou as nossas forças terrestres, o tenente-coronel Fernando Cavaleiro, hoje coronel de cavalaria na reforma. Na altura era também o comandante do BCAÇ 490.

A justificação para a mobilização de vastos meios terrestres, aéreos e marítimos, numa operação de dois meses e tal (14 de Janeiro de 1964 a 24 de Março de 1964) teria a ver com a necessidade de impedir, ao PAIGC, a autoproclamação da República Independente do Como

A ilha, o melhor, o conjunto de ilhas (Caiar, Como, Cantungo), era um intrincado puzzle de rias, braços de mar, bolanhas, lalas, ilhotas, floresta-galeria, tarrafo, de cerca de 200 Km, onde o PAIGC não teria mais do que 400 homens armados (300, segundo o Mário DIAS), controlando no entanto uma vasta população e os seus recursos.

A ilha do Como era farta em gado e arroz, como muito bem frisou o Almirante Ribeiro Pacheco. Talvez ainda mais importante, o Como era um ponto vital para as linhas de reabastecimento do PAIGC, dada a sua proximidade com a Guiné-Conacri. E o seu controlo afectava seriamente o reabastecimento das posições portuguesas na região de Tombali.

Outro oficial da Marinha entrevistado foi o comandante (?) José Luís Gouveia, dos Fuzileiros, que também participou na batalha do Como. Um dos mitos que caiu por terra era existência de bunkers, de cimento armado, onde os guerrilheiros do PAIGC se entrincheiravam e resistiam aos bombardeamentos da aviação e da marinha portuguesea. Não havia bunkers nenhuns… Dos meios navais, retive que eram compostos por uma Fragata (Nuno Tristão), 4 Lancha de Fiscalização, 4 LDP e 2 LDM.

Nino Vieira, que também é entrevistado, era o comandante militar da Região da Sul, mas não participou directamente na batalha do Como, por se encontrar hospitalizado, na Guiné-Conacri, segundo percebi. Ora, ele é muitas vezes apresentado como o herói do Como, o que não corresponde à verdade histórica... A haver um herói - e os movimentos nacionalistas e os povos que lutam pela sua identidade, emancipação e liberdade precisam, historicamente, de heróis e de mitos - foi o Pansau Na Isna e os seus guerrilheiros-camponeses... Nino Vieira, de qualquer modo, terá sido, à distância, o principal responsável pela estratégia de defesa da Ilha do Como. Enfim, os louros da vitória (a havê-la, para um lado ou para o outro) terão que ser analisados e discutidos, com objectividade e rigor, pelos historiadores.

Ao que parece, em balanta, Pansau Na Isna (ou N'Isna) quererá dizer a tabanca que está a morrer. Pansau era muito próximo de Amílcar Cabral, mas analfabeto. Também li algures que ele não morreu no Como, mas mais tarde, em Nhacra, num bombardeamento da aviação portuguesa. A ter morrido em Nhacra, morreu como ele teria gostado de morrer: vestido de maneira excêntrica, cheio de roncos, de cores garridas, muito ao gosto dos balantas... Enfim, provavelmente mais um lenda... De qualquer modo, a versão da morte do Pansau Na Isna em Nhacra, posteriormente à batalha do Como, não bate certo com o depoimento que ouvi no 9º episódio do programa da RTP...

Na batalha do Como, o grande inimigo dos portugueses foi a falta de água potável, as dificuldades de reabastecimento, as rações de combate, os mosquitos, o terreno… Muitos militares portugueses já não podiam com a intragável carne de vaca à jardineira, que faziam parte da invariável ementa das NT... Valeu-lhes, de alguma maneira, o suplemento de carne de vaca, porco e cabrito que abundava pela ilha, deixada para trás pelas populações em fuga estratégica...

A G3, que fez a sua estreia em combate, também não se portou muito bem: era muito sensível, às poeira, à areia, etc. ... A densa floresta-galeria com árvores de grande porte, seculares, frondosas, tornou praticamente inofensivos os bombardeamentos da aviação portuguesa, à parte o terror que as nossas bombas inspiravam, sobretudo nas mulheres, crianças e velhos…

Por outro lado, os guerrilheiros cedo aprenderam a defender-se dos bombardementos, escondendo-se atrás de bagas-bagas. Alguém confirmou que foram utilizados aviões da NATO (F86 e PV2 e 2-5), operando a partir de Cabo Verde. Não ficou claro o uso de napalm. A FAP fez cerca de 850 missões, largou mais de mil bombas.

O PAIGC terá perdido 150 homens e 6 armas. O Mário Dias fala apenas em 7 dezenas de mortos confirmados. Os mais de 1200 militares regressaram a Bissau, depois da mais cara e mais longa operação, levada a cabo na Guiné-Bissau. Os oficiais portugueses entrevistadaos consideram a um operação um sucesso absoluto.

O PAIGC, por sua vez, transformou em mito a batalha do Como. Luís Cabral considerou a Ilha do Como como a primeira região libertada (4). Usando as clássicas tácticas da guerrilha, o PAIGC evitou o confronto directo com as NT, pondo a sua população a recato.

Pelo lado do PAIGC também foi entrevistado o Comandante Gazela, recentemente falecido em Portugal. Também foi dado o testemunho do médico da CCAÇ 557, Rogério Leitão.

2. Comentário de Pezarat Correia a este último episódio, o nono, da 1ª série do programa RTP sobre a guerra colonial:

Creio que chegou ao fim a 1.ª série do programa “A Guerra”, de Joaquim Furtado, na RTP 1. Estamos já em condições de fazer um primeiro balanço e penso que a “expectativa positiva” que registei no meu “Giro do Horizonte 6” de 17 Out, se justificou. O programa, no conjunto dos 9 episódios, merece-me um julgamento favorável.

Encerrou bem com a “Operação Tridente” na ilha do Como, T.O. da Guiné, em que o confronto entre opiniões dos responsáveis portugueses e do PAIGC puseram em destaque um paradigma da guerra colonial. Tinham razão os primeiros quando, na sua perspectiva, diziam que a operação tinha sido um sucesso, pois cumpriram as missões atribuídas, apesar dos insignificantes resultados em baixas ao IN e material capturado. Mas foram ao objectivo e, naquelas operações, os objectivos não eram para se conquistarem, eram para se ir lá. Tinham também razão os segundos quando se congratulavam por, afinal, depois da operação as tropas portuguesas terem retirado e os guerrilheiros reinstalado no terreno, tornando insustentável a vida da reduzida guarnição portuguesa que lá ficou num extremo da ilha, sem poder sair do seu buraco.

Esta controversa foi paradigmática da guerra, disse eu, porque, de facto, esta foi, para nós, militares portugueses, um somatório de sucessos de operação em operação, até ao inevitável insucesso final.

Os sucessos que os responsáveis pelas três maiores operações nos três T.O. reclamaram, “Tridente” na Guiné, “Quissonde” em Angola e “Nó Górdio” em Moçambique, às quais poderemos acrescentar a “Mar Verde” na Guiné com a particularidade de esta ter ocorrido em território da Guiné-Conakri, foram, afinal, rotundos fracassos estratégicos.

Aqui reside o fulcro da questão guerra ganha/guerra perdida, que me parece que este programa ajuda a esclarecer. Este será um dos seus méritos.


Extractos de: Blog a A25A > Pezarat Correia > 19 de dezembro de 2007 > Giro do Horizonte 17 - Guerra Colonial 2 (com a devida vénia...)
________________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores desta série:

30 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2142: PAIGC - Quem foi quem (1): Amílcar Cabral (1924-1973)

30 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2143: PAIGC - Quem foi quem (2): Abílio Duarte (1931-1996)

6 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2159: PAIGC - Quem foi quem (3): Nino Vieira (n. 1939)

18 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2190: PAIGC - Quem foi quem (4): Arafan Mané, Ndajamba (1945-2004), o homem que deu o 1º tiro da guerra (Virgínio Briote)

12 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2343: PAIGC - Quem foi quem (5): Domingos Ramos (Mário Dias / Luís Graça)


(2) Vd. post de 23 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2375: RTP: A Guerra, série documental de Joaquim Furtado (8): A Batalha do Como (Mário Dias / Santos Oliveira)

(3) Vd. o dossiê sobre a Operação Tridente, da autoria do Mário Dias, que participou nessa famosa operação:

15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias)

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXV: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)

17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias)

17 de Novembro 2005 > Guiné 63/74 - CCXXVI: Antologia (25): Depoimento sobre a batalha da Ilha do Como

(4) Vd. post de 1 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1907: PAIGC: O Nosso Primeiro Livro de Leitura (2): A libertação da Ilha do Como (A. Marques Lopes / António Pimentel)

Vd. também outros postes do Mário Dias sobre a Ilha do Como e a Op Tridente:

17 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCV: A verdade sobre a Op Tridente (Ilha do Como, 1964)

15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXX: Histórias do Como (Mário Dias)

15 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLI: Falsificação da história: a batalha da Ilha do Como (Mário Dias)

Guiné 63/74 - P2434: Antropologia (4): Kassumai, bons augúrios na cultura felupe (Luiz Fonseca / Pepito)

Guiné-Bissau > Bissau > AD - Acção para o Desenvolvimento > Foto da Semana > 17 de Dezembro de 2006 > As mulheres estão a mudar o rosto da Guiné... Elas são as portadoras do futuro... E isto é Kasumai, bons augúrios na cultura felupe: votos de paz, liberdade, felicidade... (LG).

Região do Cacheu > S. Domingos > "Maria de Lurdes é uma das mulheres de S. Domingos que decidiu aprender a ler e a escrever, como forma de melhorar a sua capacidade de intervenção numa vida profissional mais activa.

"Ela, conjuntamente com mais outros 45 pais filiados na Associação dos Afilhados de Elx, frequentam actualmente dois círculos de alfabetização que decorrem no Centro de Formação Rural (CENFOR) de S.Domingos todos os dias da semana.

"Inicialmente previsto para apenas 20 participantes, o interesse demonstrado pelas pessoas que não sabem ler acabou por ultrapassar todas as expectativas mais optimistas, sendo gratificante notar que, a nível da Guiné-Bissau, existe uma enorme procura de cursos de alfabetização funcional".


Foto e legenda: © AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Direitos reservados (Com a devida vénia...).


1. Mensagem do editor, L.G., ao Luiz Fonseca (1), com data de 3 de Janeiro:

(...) Haveremos de nos conhecer pessoalmente... Até lá, diz-me como traduzes Kassumai... Abraço ?... Quero pôr a expressão na nossa lista de abreviaturas...

Contacta o Delfim Rodrigues que ficou com o livro [do pai do Pepito] que era para ti... Gostava que fizesses uma antologia de textos sobre os "costumes jurídicos dos felupes"... O Pepito decerto que nos dará autorização... Luís


2. Resposta do Luiz Fonseca (4 de Janeiro de 2008),

Luis, acabo de ler a tua msg de ontem.

Se me permites vou dividir o suscitado no seu conteúdo em três passos:

1º - Kassumai: Tanto quanto me recordo significava uma saudação de amizade, do tipo "Bom dia", "Boa tarde", "Olá", "Passa bem". Todavia, recentemente, em ONG de cariz religioso descobri "Paz esteja contigo", "Desejo tudo de bom e o melhor para ti". Parecem-me frases demasiado longas e "complicadas" para aquela etnia.

2º - Delfim Rodrigues: Tomei a liberdade de pesquisar, mesmo antes de falar com ele, e vim a descobrir que a monografia foi editada pelo Centro Estudos Guiné Portuguesa, numa colecção denominada de Boletim Cultural que está a ser digitalizada pelo INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas) em Bissau. Até ao momento digitalizaram até ao vol. XIV, nº 56, e o que nos interessa é, cinicamente, parte do vol. XV, nº 57. Não sei se uma palavra dada ao Pepito poderia ter algum resultado.

3º - Antologia de textos: Agradeço a tua confiança mesmo antes de eu ler a cópia, prometida pelo Delfim, com quem conto encontrar-me na próxima semana. Neste momento não sei o que me espera. Mas acho que sou capaz de realizar algo de positivo, para a Grande Tabanca e também para mim próprio. Falaremos dos detalhes mais tarde.

Por agora, Kassumai.
Luiz Fonseca


3. Comentário do Pepito:

Amigo Luís

Claro que tudo o que diga respeito a um melhor conhecimento das etnias guineenses podem e devem ser difundidas por quem tem esse tipo de preocupações raras.

Já agora em relação à questão do termo-conceito kasumai (em crioulo escreve-se com apenas um só "s", como todas as palavras que se lêem "ss"), transcrevo o que o meu pai escreveu numa comunicação (que tenho intenção de reeditar este ano) que fez em 1963:

"O poder das crenças religiosas, uma liberdade ampla, uma vida comunitária sólida e uma igualdade de fortuna, mantêm a paz social e a felicidade do povo. Entre os Felupes, há uma palavra comum para designar LIBERDADE, PAZ e FELICIDADE: kasumai"

Um bom kasumai para ti e para todos os habitantes da nossa Tabanca Grande.
pepito
____________

Nota de L.G.:

(1) Vd. último poste de Luiz Fonseca , ex-Fur Mil Trms, CCAV 3366/BCAV 3846 (Suzana e Varela , 1971/73):

6 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2410: Cusa di nos terra (13): Susana, Chão Felupe - Parte VIII: Onde se fala dum Tintin em apuros... (Luiz Fonseca)

Guiné 63/74 - P2433: Em busca de ... (16): Pessoal da CCAÇ 4946/73, madeirense + Arsénio Puim, ex-capelão, açoriano, BART 2917 (Luís Candeias)

1. Mensagem do Luís Candeias (1):

Boa Noite, Luis Graça:

(i) Obrigado pela divulgação da(s) minha(s) pergunta(s). Recebi logo 2 e-mails com informações sobre o Coronel Morna (D. Conceição, do Funchal) e sobre a Guiné e o Controle Aéreo (Henrique - Algarve). Essa informação sobre a CCAÇ 4946/73 fez soar alguns alarmes no meu album de memórias. Acho que era isso mesmo.

Vamos ver se tenho a sorte de aparecer alguém. Os graduados eram todos do Continente e os soldados eram madeirenses. Esses ainda os vi no processo de desmobilização antes de partir para Ponta Delgada.

(ii) Quanto ao Arsénio Puim prometo que vou apertar com ele. O Arsénio é uma pessoa muito querida e respeitada aqui na nossa comunidade açoriana, principalmente entre os seus conterrâneos, os Marienses.

Ele foi meu professor de História no Liceu e sempre um bom amigo. Foi enfermeiro aqui no Hospital, em Santa Maria, casou com a Leonor, também
enfermeira, e acabou mudando a sua residência para Vila Franca do Campo, na vizinha Ilha de S.Miguel, terra de origem da Leonor. Tem 2 filhos já crescidotes, o Pedro e o Miguel, estudantes Universitários.

É hoje um Enfermeiro reformado e um Mariense muito empenhado na Cultura e História marienses, e sua divulgação, com intervenção permanente no jornal
O Baluarte de Santa Maria.

A sua lucidez, sensatez , serenidade e saber são características que sempre
admirei. Ele não gosta de luzes da ribalta, mas também concordo que o que falta da história da detenção e expulsão que sofreu são peças fundamentais de uma história que tem que ser continuada,completada e divulgada. Não duvido que ele compreende isso e que irá colaborar convosco.

Um grande abraço

Luis Candeias

2. Comentário do editor, L.G.:

Luís: Não esqueço a tua promessa de nos trazeres, até aqui, ao blogue, o nosso querido amigo Puim... Em troca desse favor e em reconhecimento do teu interesse e amor pela 'nossa Guiné' (aonde poderias ter ido parar, como nós...), ficas com a porta aberta, escancarada, da nossa Tabanca Grande... Se quiseres fazer parte deste grupo (que se recusa a ser tratado como um bando de saudosistas, de veteranos, de cotas, de velhos, etc.), manda-nos uma chata tua, actual, para pôr na fotogaleria... Se tiveres uma da tropa, também podes mandar...

O tratamento aqui é o tu-cá tu-lá... Como tu poderias ter sido nosso camarada da Guiné, não tens quaisquer privilégios em termos de tratamento. Recebe um abraço (Alfa Bravo) doutro Luís que conhece e ama a tua terra (Açores), mas não conhece a tua ilha (Santa Maria)... Um chicoração para o Puim.

PS 1 - Passei férias na Terceira (onde tenho amigos), São Miguel, Faial e Pico, o percurso turístico mais fácil...

PS2 - Tive há tempos notícias de alguém que me disse que o Puim já havia pedido a um dos filhos, aqui em Lisboa, para nos contactar... Acho que o Puim chegou a pensar vir ao último convívio, em 2007, em Setúbal, do pessoal do BART 2917... Terá decidido não aparecer, à última hora, por razões (talvez ainda dolorosas, para ele) que não quis dizer...

______________

Nota de L.G.:

(1) Vd. poste de 8 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2421: Em busca de... (15): Pessoal da companhia madeirense que esteve em Jemberem (1973/74) (Luís Candeia, amigo do Arsénio Puim)

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2432: Diorama de Guileje (1): Geradores: Grupos Diesel Lister ou Frapil: fotos ou manuais, precisa-se (Nuno Rubim / Victor Condeço)


Um gerador de marca Lister, parecido com o que deveria existir em Guileje. Imgem retirada da Net: Nuno Rubim (2007). 

  
1. Mais um pedido, urgentíssimo, do Nuno Rubim com data de 3 do corrente, e que já circulou pela Tabanca Grande. Devido ao ruído de fundo, o pessoal da caserna não ligou patavina ao nosso coronel... No tempo da outra senhora, na Metrópole, isto piava mais fino... Houve uma honrosa excepção, que eu saiba: o Victor Condeço , ex-Fur Mil Mecânico de Armamento, CCS / BART 1913 ( Catió, 1967/69)... 

Desta, como da outra vez , quando pediu informações sobre as cores dos bidões de combustíveis e lubrificantes (*)... Bem hajas, Victor! 

 Pessoal da ferrugem, pessoal do serviço de material, camaradas: como nos bons velhos tempos, na Guiné, na nossa Tabanca Grande, vamos lá desenrascar o nosso homem... É por uma boa causa: O diorama de Guiledje... 

 Hoje, se eu voltasse à guerra, à nossa guerra (cruzes canhoto!), eu se calhar daria muito mais importância, mais valor, aos gajos da ferrugem, aos mecânicos auto, aos tipos do serviço de material, das nossas unidades, etc. que eram vistos pelos operacionais, com alguma condescendência ou até sobranceiria... Afinal, tanto na guerra como na paz todos somos úteis e importantes!... 

Nunca imaginei que (ou nunca me perguntei se) o gerador, em Bambadinca, podia bifar; nem nunca me preocupei se havia gasolina, gasóleo ou petróleo nos bidões (a não ser quando andava no mato, ou nas tabancas em auto-defesa, e sonhava com o meu uisquinho com 2 pedrinhas de gelo e água de Perrier)... Ou se tínhamos viaturas, em bom estado de conservação e de segurança, para fazermos, com sucesso, as nossas colunas logísticas e levar a bianda aos nossos camaradas de Mansambo, Xitole, Saltinho... 

 Hoje sei que, enquanto uns faziam a guerra, havia outros que se preocupavam com a logística, o material e até com o nosso bem-estar e conforto... Ontem como hoje... Confesso que o único mecânico de armamento que conheci na tropa foi... o nosso Victor Condeço. Ainda por cima, conhecimento virtual, já que ainda não fizémos o teste do quebra-costelas, como diria o nosso Paulo Raposo, o Almansor de Montemor-O-Novo, de quem já tenho saudades... (LG) 

 Caro Luís:

  Quando oportuno mais uma pergunta aos Camaradas do blogue. De uma relação existente em Guileje apurei a existência de : 

- Atrelado 1 Ton (Estação de serviço móvel ); 
- Motor diesel marca Lister com alternador Frapil 20 KVA;
- Motor diesel marca Lister com alternador Brush 1375 KVA ;

 Julgo que este tipo de material estaria distribuído a outras unidades da Guiné (aliás lembro-me de haver em Mansabá um gerador de um destes dois tipos, 1965). O que eu precisava: fotos ou eventualmente instruções ou manuais ilustrados destes equipamentos. 

 Obrigado.  Um abraço,   Nuno Rubim 

2. Resposta do Victor Condeço, no dia 5 de Janeiro: 

 Meu caro camarada Nuno, 

 Depois de várias pesquisas na Net e consulta ao meu camarada Alf Mil do Serviço de Material, que era responsável pela manutenção dos geradores de Catió (1967/1969), consegui pouco, apenas o que a seguir transcrevo da resposta recebida e de onde se depreende que o Grupo de 1375 KVA dificilmente terá existido no Guileje (terá havido confusão com os de 7,5 KVA ou com os de 47,5 KVA): 

"Infelizmente não posso ajudar grande coisa, pois não disponho de fotos nem de manuais, na minha posse. 

 "Em Catió, no quartel tínhamos 2 excelentes Grupos Diesel LISTER, refrigerados a ar, de 47,5 KVA – isto é seguro. Tenho quase a certeza de que os alternadores eram FRAPIL, mas a minha lembrança aqui já é menos segura. 

 "Estes Grupos de 47,5 KVA eram usados principalmente em sedes de batalhão, de certa forma pela sua potência e excelente qualidade eram ao tempo um luxo, e ainda para mais com reserva de 100%. 

 "Nas companhias mais pobrezinhas (Cachil, Ganjola) , fundamentalmente para fazer a iluminação da vedação, usavam-se uns Grupos de fabrico nacional – EFI, com alternador FRAPIL, penso que com uma potência de 7,5 KVA. 

 "Nas companhias mais importantes (Cufar, Bedanda), usavam-se os Grupos LISTER/FRAPIL de 20 KVA. 

 "Os Grupos referidos de 1375 KVA, ou seja 1 MW, isso já é outra fruta. É equipamento pesado de potência suficiente para alimentar uma pequena cidadela africana. Penso que seria equipamento para uma central civil de uma cidadela de alguma importância. 

 "Sendo a LISTER uma marca de referência no campo dos Grupos Diesel, e, estando estes tão difundidos em África, será que não conseguem arranjar localmente um manual?! O aspecto externo destes equipamentos não mudou muito."

Nuno, das minhas pesquisas na Net encontrei este site, EAGLE POWER LTD - Used and New Diesel Generators: as fotos aqui mostradas são o que de mais parecido encontrei, assemelham-se muito com os grupos existentes em Catió, embora o gerador fosse menor e a cor original era um verde, ligeiramente mais claro. Desculpa se não ajudei e te fiz perder tempo. 

 Um abraço e bom trabalho Victor Condeço 

3. Resposta do Nuno Rubim: 

 Caro Camarada Condeço: Perder tempo ???... Ganhar é que foi, pois estamos sempre a aprender qualquer coisa ! A ajuda foi importante pois, a partir da informação do seu camarada do Serviço de Material (a quem peço que agradeça em meu nome), encontrei na Net uma foto de um grupo que me parece muito semelhante ao que havia em Guileje (vd. foto acima) e que já me vai permitir fazer uma miniatura. 

 O que me envia, parece ser coisa mais moderna, mas muito obrigado pela sua colaboração. 

 Um abraço Nuno Rubim

 ____________ 

 Nota dos editores: 

 (*) Vd. postes de: 


Guiné 63/74 - P2431: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (15): Oficial e cavalheiro em Bambadinca, às ordens de Dona Violete

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Espectacular vista aérea do aquartelamento, tirada no sentido leste-oeste, ou seja, do lado da grande bolanha de Bambadinca (vd. mapa da região)

Reconstituição feita, de memória, por Humberto Reis, Luís Graça e Gabriel Gonçalves (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)... Está disponível, noutro poste, o resto das legendas (1)...

O Beja Santos estava instalado em 6 (quartos dos oficiais) e a escola primária de Bambadinca e casa da senhora professora, Dona Violete, era em 19. O aquartelamento de Bambadinca(e posto administrativo do concelho de Bafatá) situava-se numa pequena elevação de terreno, sobranceira a uma extensa bolanha (a leste). Para a esuerda da escola, e já já ñão vísíveis na foto, ficavam o edifício dos correios, a casa do administrador de posto (que era um caboverdiano, na altura), e outras instalações que chegaram a ser utilizadas por camaradas nossos que trouxeram as esposas para Bambadinca (foi o caso, por exemplo, do Alf Mil Carlão, nosso camarada da CCAÇ 12).


Guiné-Bissau > Zona Leste > Bambadinca > 1997 : "O que resta da antiga escola... A professora portuguesa do nosso tempo chamava-se Dona Violeta (eu já não me lembrava do nome, o meu amigo Zeca é que mo indicou)".

Foto e legenda: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados.


Guiné-Bissau > Zona Leste > Bambadinca> CCS do BCAÇ 2852 (1968/70) > Novembro de 1969 > O Beja Santos, tranferido para Bambadinca, com o seu Pel Caç Nat 52, em meados de Novembro de 1969, em frente às suas novas instalações,as dos oficiais... "Os primeiros tempos, Novembro de 1969... A adaptação não foi fácil, havia barulho em demasia, para quem vinha do fim do mundo,nos ermos do Cuor. Depois, a natureza da intervenção, fazendo de tudo um pouco, sem se verem resultados práticos. Mas vinha tonificado, depois de meses com idas diárias a Mato de Cão,sabia-me bem ter deixado um aquartelamento reconstruído,vinham comigo alguns dos melhores soldados da Guiné. A seguir deprimi, com patrulhamentos à volta da pista de aviação"...

Fotos: © Humberto Reis (2007). Direitos reservados.


Texto enviado pelo nosso camarada Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), em 13 de Novemrbo de 2007´:

Luis, aqui vai novo episódio. Penso que podias usar a ilustração da escola. Reenvio-te uma fotografia minha, dessa época. Quinta feira reencontro o Pires que me telefonou dizendo-me que tem recordações desse tempo. Eu estava a adoecer e não sabia, agora é que dou conta do frenesim da nossa vida em Bambadinca, as operações com guias que desconheciam o terreno, a brutalidade dos nossos horários. Os livros seguem pelo correio. Um abraço do Mário.


Operação Macaréu à Vista > Episódio XV > A PRIMEIRA DAMA DE BAMBADINCA (2)

Beja Santos


(i) Uma dificílima carta de amor, entre o pretérito, o presente e o futuro

São 10h da manhã de um dia desse Novembro que caminha para o fim. Emboscámos na estrada para o Xime, sempre com a obrigação de andar às voltas perto do campo de aviação. Regressámos pelas 3h da madrugada, agora é necessário levar mantimentos à nossa secção que está em Sinchã Mamajai, iremos depois a Afiá levar doentes que vieram à consulta, mais alguns sacos de arroz, seguir depois com o correio para Bafatá, regressar e patrulhar nos Nhabijões, jantar e emboscar de novo. Tenho uma hora antes de partir para este dia de trabalho que começa com Sinchã Mamajai, escrevo à Cristina:

“Estou na mesma messe de oficiais de onde parti em 3 de Agosto do ano passado na companhia do Saiegh, Mamadu Camará, Adulai Djaló e Sadjo Baldé. O ambiente é o mesmo dessa época, tendo partindo todos os oficiais com a excepção do Machado, do pelotão Daimler.

Presentemente, as noites são suaves, joga-se bridge, xadrez e damas, uns chegam e outros partem, mas está tudo fechado quando regresso de madrugada. Os meus soldados africanos vivem na tabanca, alugaram quartos, compraram camas e colchões nas lojas do Rendeiro, do Zé Maria, do Amiro e dos irmãos Brandão, fui fiador de todos eles, não podes imaginar o que é o dia dos pagamentos com a lista de descontos, incluindo os empréstimos e as dividas entre eles.

Felizmente, para a segurança de todos que as caixas de munições, as bazucas e os morteiros estão no paiol do quartel. A tropa europeia fica em casernas, aqui perto de mim, por detrás da capela e da escola.

Este ritmo de trabalho tem o condão de me destruir o sono repousante, venho de madrugada, demoro imenso a conciliar o sono, estou sempre a pensar no disparate destes passeios na noite cerrada, à volta de uma pista de aviação iluminada, dois atiradores de qualidade dizimavam-nos em minutos. Depois, há o barulho das portas a abrir e a fechar, as casquinadas, o palavrão. Li o 'Requiem de Terizin', de Josef Bor, um testemunho pungente, um verdadeiro tratado de dignidade humana em que os judeus executam no campo de concentração o Requiem de Verdi para os seus carrascos, sempre que um dos músicos era gazeado, outro substituía-o.

Estou a pôr em ordem o meu caderninho sobre todos os acontecimentos do Cuor, espero um dia descrever o que ali vi e vivi. O capitão Neves, que aqui comandou a CCS, e depois foi punido, comanda agora o aquartelamento de Mansambo. Tive muita alegria em revê-lo, ele ajudou-me imenso com materiais que desviou para Missirá e Finete. Tenho notícias do Pina, ficou com o dedo inteiro, embora torto. Continuo sem saber se tenho direito a ir de férias, no princípio do ano.

Logo que haja notícias consistentes, escrevo-te. Peço-te o favor de ires visitar o Alcino no serviços de ortopedia, no Hospital Militar Principal. Tal como o Casanova, recusa-se a falar, está muito engessado devido às fracturas da bacia e do fémur. Este mês tenho que poupar dinheiro, vim de Missirá com a roupa toda destruída pela Binta, trouxe meias desirmanadas, camisas puídas, a nova lavadeira trouxe-me a roupa podre, exigindo renovação, enfim, mais despesas.

Não sei se não te ando a cansar com o meu dia-a-dia. Por exemplo, amanhã tenho que ir Amedalai, uma tabanca com um destacamento de milícias a caminho do Xime porque uma grua de 16 toneladas guinou para dentro da bolanha, toda a equipa de desempanadores vai para lá, e tenho que montar segurança. Ser oficial de dia é fazer o mesmo que fazia nos Açores: rondas, assistir às refeições e às formaturas, tomar nota das ocorrências, etc.

Sei que o Carlos Sampaio está aí de férias, ele certamente vai procurar-te. A última carta que recebi dele era de uma infinita tristeza. Interrompo aqui, Ussumane veio avisar-me que a coluna está pronta para partirmos. Prometo escrever em breve. Peço-te que me dês as tuas mãos, que estejas bem a meu lado, mesmo quando te trago sombras e egoísmo. Agora vou deixar este aerograma na secretaria, ele segue esta tarde para Bafatá, dentro de dois, três dias está na tua caixa de correio. Volto em breve e deixo-te esta promessa: temos uma vida inteira para construir.”


(oo) Uma conversa insólita com Jovelino Corte Real


Era inteiramente impossível passar-me pela cabeça que o comandante, homem de fala sóbria, incapaz de uma pitada de humor, me estivesse a preparar uma praxe de arromba. Quando Bala, o seu ordenança, me viu chegar de Amedalai e comunicou que o comandante me queria falar com urgência, suspeitei que houvera uma qualquer desgraça que exigisse a nossa intervenção imediata, talvez em Finete ou mesmo Missirá, ou, quem sabe, nas tabancas a caminho de Mansambo. Apresentei-me no gabinete, Jovelino Corte Real levantou os olhos dos papéis e mandou-me sentar. Eu não acreditava no que estava a ouvir. Um de nós estava a enlouquecer ou fora do tempo.
– Mandei-o chamar porque é um assunto que precisa hoje de ficar esclarecido. Temos que cuidar das relações protocolares no sector de Bambadinca, captar a confiança dos civis com mais prestígio. Reuno habitualmente com o administrador, com o chefe de posto, com os cantineiros, com certos agentes da segurança. O quartel tem que dar apoio a quem nos faz bem e é por isso que tenho procurado manter uma relação amistosa com a professora, a D. Violete, pondo-lhe um oficial às ordens. O Machado tem exercido essa missão, tem sido quase um estribeiro-mor, acontece que ele vai partir dentro de um mês, V. é o oficial em quem eu deposito mais confiança. É culto, tem boas maneiras, até fala de coisas que as senhoras gostam, como gastronomia e decoração. Vou nomeá-lo oficial às ordens da D. Violete.
– Meu comandante, sei o que é um estribeiro-mor, o Machado nunca me falou que era o oficial às ordens de D. Violete, para o caso não tem importância, eu não percebo é porque é que a D. Violete precisa de ter um acompanhante militar, ainda por cima com a vida que eu levo, que companhia é que quer que eu dê à senhora?
– Homem, é um encargo honorífico. A senhora quer ir a Bafatá, V. acompanha-a. A senhora vive com a mãe, é solteira, quer dar um jantar, V. faz-lhe companhia. A senhora quer ir dar um passeio ao Geba, temos para aí o Sintex, vai com ela, usando de todas as cautelas. A senhora tem primos no Xitole, pois ela vai numa viatura e V. defende-a se houver uma emboscada. D. Violete é uma senhora gentil, tem muito bons modos, ajuda-nos no ensino dos nossos soldados básicos, não se esqueça ela é professora de todas as crianças de Bambadinca, muitas delas até são filhos dos seus soldados.
– Meu comandante, desculpe mas estou confuso. Ainda ontem reunimos com os majores Cunha Ribeiro e Sampaio, vou em breve para a ponte de Unduduma, até lá tenho a escala completa para duas secções e tenho uma secção sempre em Sinchã Mamajai. Ora, não me parece correcto andar a explicar a minha vida à D. Violete, contraria o segredo militar, até parece que eu estou a fugir à companhia que o comando pretende que eu dê à senhora!
– Olhe, deixe-se de dramatismos. A senhora tem direito a andar acompanhada por um cavalheiro. E V. vai manter-se respeitador, amanhã aparece lá ao fim da tarde com um ramo de flores, vai com a farda n.º 2 de calça comprida, nada de andar a mostrar a perna, não quero insinuações de falta de respeito.
– Peço-lhe desculpa, mas há aqui um equívoco. Estamos a falar da mesma senhora que me ajudou a arranjar os professores para Missirá e Finete, com idade para ser minha mãe? Acha que eu lhe ia faltar ao respeito?
– A carne é fraca, nosso alferes. Se tem dúvidas sobre o que fazer e como se comportar, vá falar com o Machado. Agora deixe-me em paz, tenho papéis para assinar, daqui a um bocado vamos todos jantar.

Claro que saí dali e fui falar com o Machado que me surpreendeu com o seu laconismo, sim, acompanhava a senhora, de vez em quando ia lá a casa, etc., é muito delicada, com ela nunca se fala de guerra, lê livros românticos e toca piano. Amaldiçoei a minha sorte, começava a minha vida em Bambadinca a tarefar, só me faltava levar a D. Violete às compras!

O que interessa é que no dia seguinte pedi ao Domingos para informar D. Violete se podia visitá-la depois das aulas, para apresentar cumprimentos. O Domingos aproveitou logo para me perguntar se quando a tropa acabasse eu dava um jeito para ele ser professor em Finete. Disse-lhe que sim.

As minhas insónias continuam e aproveito para ler a História da Guiné, de João Barreto. De novo vem à baila a guerra do Oio, em 1897, em que saiu uma expedição terrestre de três mil homens, que contou com a colaboração de Infali Soncó. Quando as tropas foram atacadas pelos rebeldes, a gente de Infali Soncó coligou-se abertamente com os rebeldes e um lugar-tenente de Infali assassinou Quecuta Mané. Foi uma retirada penosa e humilhante para os portugueses e seus aliados. Quando cheguei à campanha de 1902, conduzida pelo governador Júdice Biker, contra os oincas, em que Infali se conluiou com os soninqués, adormeci profundamente.

(iii) D. Violete, está aqui o seu oficial às ordens!


À hora aprazada, saí do meu quarto e avancei para casa de D. Violete, ao lado da escola. Levava um ramo de flores que Tunca Sanhá, que fora jardineiro em Bafatá, me arranjara no mercado de Bambadinca. Noto, contudo, um movimento desusado no passeio junto dos gabinetes do comando, vários oficiais conversam amenamente e desejam-me boa sorte.

Bato à porta, quem abre é D. Violete da Silva Aires, cabo-verdiana de pele clara, um pouco amarelecida, pôs pó de arroz e carmim, o seu cabelo oxigenado está repuxado para trás, num quase carrapito, sorri e manda-me entrar numa casa de estilo português, numa sala onde está um piano velho, há cadeiras confortáveis, muitas fotografias, sinais de alguma abastança no passado. Abre-se um mosquiteiro numa ligação de outra divisão com a sala e surge D. Ema, a mãe, um senhora de idade indefinida. De pé, com a conversa estudada, vejo a anfitriã a arremelgar os olhos enquanto me apresento.
– Senhora professora, apresento-lhe cumprimentos do senhor comandante, que lhe envia estas flores. O alferes Machado vai partir em breve, a partir de agora sempre que precisar da minha companhia, faça o favor de dispor. Como deve imaginar, terei o maior gosto de lhe dar essa companhia, o batalhão agradece-lhe imenso o serviço que nos presta e às populações da região, a partir de agora, passo a ser o seu oficial às ordens.
– Estou encantada. No passado, tive bons amigos ali no quartel. É verdade que o alferes Machado veio aqui uma vez com uns bolos e até lhe pedi boleia para ir a Bafatá, mas nunca pensei que ia ter esta companhia. O alferes Almeida levava-me de bicicleta até Samba Juli, eu ia no quadro, as minhas costas apoiavam-se no braço dele. Ele era alto como o senhor alferes, um verdadeiro homem, uma senhora gosta sempre de ser bem tratada. Posso portanto pedir-lhe ajuda no futuro? E em que é que eu lhe posso ser útil?
– D. Violete, a senhora podia ajudar-me a conhecer a história desta região. Gostava muito de conhecer o passado do Cuor, de Badora, de Bambadinca, como era a população antes da luta armada, o comércio, os usos e costumes...
– Com muito gosto. Mãe, por favor, traga chá, vamos beber com o senhor alferes. Nós as duas somos desenraizadas. Antes da guerra, vivíamos em Fá. Não se esqueça que eu sou a filha do administrador Aires. Por dever de ofício, desloquei-me frequentemente a Sansão, a Canturé (Missirá não tinha importância nenhuma na altura e Finete tinha população flutuante, que vinha para a cultura do arroz), subia até Madina, pela estrada de Geba ia até Bucol. São essas as recordações que me interessam? Sente-se mais pertinho de mim, deixe-me ver a cor dos seus olhos.

Fomos bebendo chá, falámos dos alunos da D. Violete e, inevitavelmente, de livros. D. Violete desabafou:
-Vivo numa terra de brutos. Aqui ninguém lê Stendhal, Camilo ou Eça de Queirós. Os brancos são, de um modo geral, uns analfabetos. Não pode imaginar a solidão em que vivo.

O seu olhar era súplice, D. Violete ia-se aproximando de mim. É nesse preciso instante, sabendo agora que o Machado era tão oficial às ordens como eu régulo do Cuor que pressenti que tinha caído numa armadilha. As horas escoavam-se naquela penumbra suave, do lado das casernas fervilhava a barulheira da hora do rancho. Olhei o relógio, pretextei que era muito tarde, garanti que voltava ou quando as senhoras precisassem bastava que informassem Bala, o ordenança do comandante. E despedi-me:
-Minhas senhoras, senti-me muito bem na vossa companhia. Eu vou voltar, mais não seja para conversarmos e eu tirar notas sobre esta terra de que gosto tanto.

Este foi o primeiro encontro com D. Violete e D. Ema. Quando chego à messe, sinto no olhar de todos a zomba e a mofa mal contidas. Então vinguei-me, falando directamente ao comandante, bem alto para que todos ouvissem:
-A professora ficou encantada com a amabilidade do meu comandante, agradece ter um oficial às ordens e aceitou vir cá jantar em breve, mas antes vai convidar para sua casa o comando, ela tem muito apreço por pessoas da sua idade.

Sentei-me, não sem antes ter sentido no ar atónito de Jovelino Corte Real que o feitiço se virara contra o feiticeiro. Mas quem acabou por jantar em casa de D. Violete fui eu.



Capa do romance policial de Rex Stout, A Caixa Vermelha. Lisboa: Livros do Brasil. s/d (Colecção Vampiro, 55): Capa de Cândido Costa Pinto.


(iv) A inesquecível Virgínia Woolf


Esta semana reli A Caixa Vermelha, de Rex Stout. Nero Wolfe, o paquidérmico detective novaiorquino que nunca sai de casa e passa horas junto das suas orquídeas, recebe um cliente que lhe pede insistentemente para ir a uma casa de moda onde uma manequim morreu envenenada após ter comido um bombom. Para surpresa de Archie Goodwin, o seu secretário, Wolfe saiu de casa, foi ao local do crime, falou com o proprietário e outras manequins, nada descobriu mas todos começam a bater-lhe à porta, inclusive o inspector Cramer, que está às aranhas. A trama desenvolve-se, descobrem-se relações de parentesco entre o proprietário da loja de moda e outra manequim, esta tem dois apaixonados, um deles vai ser assassinado como o próprio proprietário. É aqui que se revela a inteligência fulgurante do mais pesado de todos os detectives, a caixa vermelha acabará por fazer justiça, lá dentro Nero Wolfe pôs uma ampola de cianeto de potássio e a maldosa do romance expia os seus crimes. Como quase sempre, a capa de Cândido da Costa Pinto é uma maravilha.


Capa do livro de Virgínia Woolf, Mrs. Dalloway. Lisboa: Livros do Brasil. s/d. (Colecção Miniatura, 38). Capa de Bernardo Marques.


A grande surpresa, no entanto, foi Mrs. Dalloway, de Virgínia Woolf. É um dia na vida de Clarisse Dalloway, uma senhora de meia idade que vai dar uma festa e que sai de casa com uma grande alegria de viver, num grande frémito. Vemos passar as horas, Clarisse percorre o centro de Londres, é assaltada por memórias, todo o seu passado é reavivado ao som de cheiros cores, sons. O seu casamento com Richard não é dos mais felizes e quando regressa a casa é surpreendida pelo aparecimento de Peter, uma velha paixão.

É um romance assombroso, cadenciado pelas badaladas do Big Ben, as horas passam chega-se à festa chegam as visitas, Mrs. Dalloway exulta com as suas memórias, por, na sua solidão, ainda tocar nos corações, ainda despertar a paixão. O romance começa por uma frase que ficou célebre: “Mrs. Dalloway disse que ela própria iria comprar as flores”. No final, é Peter quem fala: “Mas que terror é este? - pensou consigo. Que êxtase me assalta? Que é que me enche de tão extraordinária excitação? É Clarisse, descobriu. Pois ela estava ali.” E a capa de Bernardo Marques é um espanto de grafismo.

Vem aí o mês de Dezembro, iremos patrulhar tabancas e sueste de Bambadinca, patrulhar entre Mero e Santa Helena, até frente de Aldeia de Cuor, continua o jogo do gato e do rato, gente de Madina camba o Geba vem obter informações e abastece-se sempre que pode, nas nossas barbas. E depois iremos participar nas operações Lua Nova e Punhal Resistente. Nada que tenha passado à história, desgastou e fez perder a paciência.

______________

Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 27 de Abril de 2007 >Guiné 63/74 - P1704: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (43): Em louvor de Bambadinca, a nossa tabanca grande

(2) Vd.poste anterior, 4 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2407: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (14): O falso descanso em Bambadinca