
Camarada Carlos
Antes do mais felicito a magnifica equipe que mantém o blogue. Não tenham pressa, pois, parece-me, ainda haverá muito para contar, novos tertulianos a apresentar-se na Tabanca Grande, já que este despertar de recordações e permuta de experiências, será diferentemente revelado por cada um dos que passaram pela terra guineense.
Parabéns pela vossa vontade em prosseguir.
Por último, solicito a indicação da localização do espaço Grandela (**).
Para essa equipe, e para todos os tertulianos, segue um grande abraço.
José Dinis

2. Canquelifá - duas histórias e um ataque frustrado
Em Canquelifá, a localidade mais distante relativamente a Bissau, permanecemos com o 1.º Pelotão durante alguns dias. A estadia ali era muito agradável, apesar das fracas condições físicas do aquartelamento, em virtude da boa camaradagem com a Companhia local, participando o nosso pessoal nos serviços, e a divisão de tarefas incluía as actividades operacionais. Dormia-se bastante. As refeições tinham horas certas. O à-vontade era notório.
Contavam-se duas hitórias ali ocorridas, uma de desfecho trágico e ainda evidente, outra, verdadeiramente incrível.
A primeira, relacionava-se com um jovem furriel piloto aviador que ali se deslocou, aos comandos de um T-6, para eventual apoio aéreo, como era usual quando fazíamos determinadas saídas para o mato. Por vezes, até se prescindia da sua presença e o avião ia a Nova Lamego buscar géneros em falta. Havia, portanto, uma relação de amizade e cumplicidade com os pilotos. Pois nesse dia fatídico, serviu-se na messe um rancho melhorado, onde também afluiram wwiskies e cognaques, para festejar a condição aniversariante do piloto. Festa é festa e nos verdes vinte anos as festas costumam ser rijas. Com o fim da tarde a aproximar-se, o jovem foi acompanhado à pista pelos camaradas alegres e compinchas. Aos comandos da aeronave, deslizou, descolou do solo, fez movimentos de asas como quem acena na despedida e ainda quis brindar os amigos com um looping que, mal avaliado, acabou a trajectória contra uma árvore imensa dentro da localidade, do que resultou a fragmentação do aparelho e a morte do piloto.
A outra história teve origem durante uma flagelação. Uma mulher da população, seguramente de proeminente bunda, deslocava-se em busca de abrigo, quando foi apanhada por uma granada de morteiro que a atingiu sem rebentar e penetrou, alojando-se numa nádega. Foi evacuada e tratada em Bissau, cicatrizou a ferida e continuou a sua vida normal, milagrosamente conservada.
Mas não há duas sem três:
O Furriel Mecânico Auto-rodas de Canquelifá, gostava de fazer ralis, um tipo corpulento de S. Domingos de Rana cuja identidade não recordo. Essa veia para os carros transformados sublimou-a nos Unimogs da Companhia, que punha a preceito, montando as rodas com as jantes ao contrário, do que resultava um aumento da distância entre elas, tornando-se salientes em relação à carroceria e transformava os sistemas de escape nos chamados escapes livres, para que as fisionomias e os roncares dos motores fossem comparáveis com os dos cooper esses. Na picada era sempre a competir.
Uma ocasião, o 1.º Pelotão saíu para uma acção que terminava numa antiga morança a nordeste, onde foram recolhidos por viaturas expressamente deslocadas. Nós, do Foxtrot, ficámos no ripanço. Até que o capitão me chamou, explicou que uma viatura não tinha regressado, para eu reunir alguns homens e seguir para o local com um mecânico.
Lá chegados, deparei com uma GMC parada no meio das árvores, sem ter saído do local da recolha e, do meio do pessoal, surgiu o Corvo, com maus modos que só a ele é que aconteciam azares daqueles e nunca mais tomava o merecido banho. Rapidamente avaliou-se a situação. O semi-eixo da GMC partira. Disse então ao Corvo que mandasse o resto do meu pessoal, pois passaríamos a noite junto da viatura. E lá foi todo raivoso para o banho tardio.
Alguns minutos depois anunciava-se a chegada dos restantes elementos do Foxtrot, tal o banzé que as viaturas faziam através da savana densa. Com eles vinham os mecânicos que avaliaram a maleita, resolveram voltar a Canquelifá para desmontar a peça equivalente de outra viatura e, voltando ali, procederiam à substituição com facilidade. Que ainda iria dormir no aquartelamento, prometeram.
E seguiram, picada fora, ron-ron, derrapando, com as luzes acesas, que entretanto anoitecia.
Mais um bocado e... vrooom, a ruideira e as luzes que dançavam conforme os obstáculos da mata, anunciavam a aproximação dos técnicos. Montou-se o macaco, com os faróis de uma viatura iluminou-se o local de trabalho, ainda voltou a Canquelifá uma secção que troava na picada, para um lado como para o outro, em busca de qualquer coisa indispensável, até que a velha GMC, tratada da ferida, logrou deslocar-se pelos seus meios. Contentes da vida regressámos todos com a descontração da missão cumprida.
No dia seguinte recebemos a informação de que um bi-grupo IN preparava-se para atacar, mas desistiu da intenção, provavelmente, dissuadido por tanto movimento de viaturas, a indiciar deslocação de homens, cuja causa eles ignoravam ou ter-nos-iam apanhado à mão.

O Abreu
Falar do Abreu não é tarefa fácil, porque o rapaz, quando arregimentado, apareceu no quartel como se não tivesse passado, vindo de nenhures, como um bébé, de tal modo se mostrava desenraízado e inadaptado às novidades. De facto, durante a recruta integrou outro pelotão e o António Abreu, um dos seus instrutores, referia-me a dificuldade que sentia relativamente ao instruendo. Dizia-me que o rapaz ouvia tudo, tentava proceder como os restantes, mas os seus movimentos eram tão desordenados, que geravam rizadas e chacota.E o pobre militar, que não falava com ninguém, numa mudez persistente, mesmo com os instrutores, mais se acabrunhava e metia-se consigo.
Era um problema, que, parecia-me, resultava de sempre ter vivido nos recônditos da Madeira, em alguma vala ou encosta perdida, num seio familiar restrito, humilde que trabalhava no campo e de alguma maneira isolado, dias e dias entregues a si próprios, tarefas a que o pequeno Abreu começou a ajudar desde que se conhecia. Não frequentou a escola que, embora vulgar na época, acentuou essa manifestação de bicho do mato, com um relacionamento tímido e muito limitado. Não saíra do lugar onde nascera, porque naquele tempo até as maleitas eram tratadas com mezinhas naturais.
Era uma fraca figura, mas rijo. Podiam dar-lhe pesos a carregar. A nada virava a cara. Sempre calado. Mas a ordem unida, essa era infinitamente mais difícil de articular do que pegar em pesos e carregá-los.
Às perguntas que lhe dirigiam, acenava com a cabeça em sinal negativo ou afirmativo e a cabeça baixa, revelava o seu desentendimento do que o envolvia. Nunca esboçou um sorriso. Assentava-lhe mal a farda por ser de baixa estatura, mas isso não o preocupava, nem ele queria usá-la assim para ridicularizar a tropa. Simplesmente não compreendia.
Pois bem, foi neste estado e com as dificuldades referidas que fez a recruta e a especialidade, jurou bandeira e integrou o 2.º Pelotão, mais tarde o Foxtrot.
Aprendeu rudimentos de ordem unida, nem sempre atinando com a apresentação de armas. Também aprendeu rudimentos na utilização da G-3, mas era manifestamente imprevisivel. No entanto a sua atitude era de constante disponibilidade. A sua expressão de jovem imberbe não se alterava, nem por alegria, nem por tristeza.
Durante a primeira deslocação para Canquelifá tomou contacto com as primeiras letras que, esforçadamente, alguns cabos tentavam transmitir aos companheiros analfabetos, durante as horas de repouso que ali desfrutávamos. E foi carregador de muita granada e pesos que os mais espertos lhe impingiam. Deixei que assim fosse, mas estimulava-o à revolta e raras vezes intervim, pois se por um lado abusavam, com limites claro, também o estimavam, puxavam por ele e eu esperava que se desinibisse e viesse a marcar posição.
Durante o período que passámos na Guiné, o Foxtrot tornou-se uma família e o Abreu passou a participar nas conversas, a ganhar um lugar e no final já sorria de gozo, quando rejeitava carga durante as saídas para o mato e rematava que já tinha carregado o sufuciente, agora, os restantes que trabalhassem para ele. Nada de mais justo e dava alegria geral verificar a sua evolução.
O Abreu bateu-se e venceu o desenraizamento. Por isso foi herói. E foi um bom produto do Foxtrot.
Fotos e legendas: © José M. Matos Dinis (2008). Direitos reservados
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Notas de CV:
(*) - Vd. postes da série de
31 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3157: História da CCAÇ 2679 (1): Apresentação (José Manuel Dinis)
13 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3203: História da CCAÇ 2679 (2): A caminho de Piche (José Manuel Dinis)
5 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3271: História da CCAÇ 2679 (3): Início da actividade operacional (José Manuel Dinis)
15 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3319: História da CCAÇ 2679 (4): 5.º dia, o meu baptismo de fogo (José Manuel Dinis)
(**) - Não só para o Matos Dinis, mas para quem interessar, o Espaço Grandela fica na Estrada de Benfica, 419, em São Domingos de Benfica, Lisboa.