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Fajonquito > 1964 > Um poilão centenário... Na foto, o irmão do nosso camarada Tino Neves, Sérgio Neves, Fur Mil Mec Auto, que pertenceu à CCAÇ 674 (1964/66) (*) ... Esta subunidade terá sido a primeira passar por Fajonquito (**)... Estranhamente, temos pouca documentação fotográfica sobre Fajonquito... Por outro lado, não têm aparecido no nosso blogue camaradas pertentes a subunidades que tenham passado por Fajonquito, entre 1970 e 1974. Uma delas é CCAÇ 3549 / BCAÇ 3884 (1972/74). Esperemos que o nosso Chico encontre malta do seu tempo, nomeadamente de Fajonqito, 1970/74...
Foto: ©
Tino Neves (2006). Direitos reservados.
1. Mais um texto do Cherno Baldé, membro da nossa Tabanca Grande, autor da série
Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (aqui na foto, à esquerda).
Nascido em Fajonquito c. 1960, viu em 1965, em Cambaju, os primeiros homens brancos; aprendeu as primeiras letras, em português, com os militares portugueses. Depois de 1975, foi para Bissau, licenciou-se na Ucrânica em Planificação e Gestão Económica, tendo feito no inícios os anos 9o uma pós-graduação em gestão, em Lisboa, no ISCTE; vive em Bissau, onde trabalha no Ministério das Infraestruturas, Transportes e Comunicações, em Bissau, onde é director do gabinete de estudos e planeamento
É casado desde 1992 com a Geralda Santos Rocha, natural de Bissau.(**)
2. Memórias do Chico,menino e moço (Cherno Baldé) (8) > FAJONQUITO (1970 – 1975)
No início dos anos 70, Fajonquito é quase um burgo com muitos milhares de almas. Aqui estavam misturadas várias comunidades. Diferentes subgrupos da comunidade fula (Fulas-pretos, Fulas-forros, Futa-fulas), Mandingas (ou do que restava desta comunidade em consequência da guerra), algumas famílias Balantas, Saracolés, Manjacas e mesmo Bijagós que o comércio do amendoím e a guerra tinham trazido consigo.
O número de Fulas-pretos era maioritário em Fajonquito e seus arredores. A convivência era pacífica mas tensa com muita desconfiança e medo à mistura. A garantir esta convivência de circunstância estavam as autoridades tradicionais, as milícias cujos chefes saiam entre pessoas de confiança ou famílias dos chefes tradicionais e uma companhia de tropas portuguesas comandadas por um Capitão, que de resto, a bem dizer, pouco se metia na vida civil da aldeia.
O ambiente era tão diferenciado quão diferente era o tamanho da aldeia, o número de tropas e o mosaico étnico, social e cultural. O estado de alerta era permanente mas num nível fraco e muito dependente dos postos mais avançados situados nos quatro pontos cardeais: Sare-Wali, Cambaju, Sare-Djamaram, Suna, Cantacunda.
Aqui os acontecimentos da guerra estavam mais relacionados com as deslocações (minas e emboscadas nas estradas), particularmente a estrada para Cambaju, ou ainda as grandes operações para o Oio (Kola-Carresse) que mobilizavam tropas de outros ramos vindas de Bissau, Bafatá ou Bambadinca. Nessas ocasiões nós acompanhávamos tudo até a saída do último soldado. Via-se pelo semblante que o estado de espírito dos que iam para a frente não era muito alegre, salvo raras excepções. Os da retaguarda, invariavelmente, carregavam obuses ou as granadas das bazucas, levando a sua arma nas costas. Na nossa opinião de crianças, isto era das coisas que um soldado não devia fazer.
Entretanto, no meio da população civil e sobretudo a malta jovem, a descontracção era visível e reinava um ambiente de festa e paródia nos fins-de-semana com futebol à tarde e baile de gira-discos à noite. A festa era sobretudo
afro, como diziam na época, mas nunca faltava a presença de soldados portugueses, vestidos à paisana ou mesmo fardados à procura de diversão ou à cata de bajudas.
A presença das milícias locais era cada vez menos suportável entre os homens adultos. Eles roubavam as mulheres mais jovens e as bajudas da aldeia, roncando com suas fardas apertadas ao corpo como faziam os comandos africanos e com o dinheiro da cola aos pais que os outros jovens não tinham, com excepção dos professores, claro. O conflito arrastava-se em surdina mas as autoridades, de forma geral, controlavam a situação. De vez em quando transferiam os mais recalcitrantes.
O quartel de Fajonquito: um autêntico fortim
Em Fajonquito, foi difícil conseguir entrar no quartel. Comparado com Cambaju isto aqui era um autentico fortim, com sentinelas nas duas portas de entrada e arame farpado de todos os lados, confeccionado tão meticulosamente que mesmo um gato não conseguia penetrar. Notava-se que o número de tropas era muito maior mas pareciam menos amistosos.
Algumas crianças entravam e saíam mas eram sobretudo mulheres solteiras e meninas que o faziam. Eram lavadeiras ou
lava-tudo, como as más-línguas lhes chamavam. O movimento de viaturas junto à saída era permanente e havia de todos os tipos, desde o pequeno
Jeep do Capitão ao imponente Berliet Tramagal que esmagava as minas nas picadas, como diziam as crianças. Também havia o Unimog e o Wheels [?]. Este último, era o nome dado pelos populares, ao tipo de veículo pequeno, parecido com o Unimog. Normalmente as pessoas civis detestavam este tipo de veículo devido aos solavancos que dava nas estradas. [, Wheels era um jipe, o Cherno deve querer referir-se o
burrinho, o Unimog 411].
Na primeira tentativa de entrar pela porta de armas levei com um pontapé do sentinela. O primeiro que, por sinal, seria seguido de muitos outros. Este primeiro doera a valer tendo batido com a cara no chão, pois ainda não tinha aprendido a técnica de os receber ou esquivar. Mais tarde, o desafio seria de não só saber esquivar-se mas ser capaz de identificar o perigo de longe.
A maior ameaça dentro do quartel eram os pontapés que podiam vir de todos os lados. As melhores surpresas eram os pedaços de pão com marmelada ou melhor ainda com chouriço. Quando tinha a sorte de conseguir aqueles chouriços vermelhos, tirava o pedaço dentro do pão e metia-o dentro do bolso assim, para o comer aos pedacinhos durante muito tempo, longe dos olhares dos outros, com aqueles arrotos saborosos.
Um dia a minha avó, que era intrometida e gostava de controlar a vida dos outros, disse a minha mãe:
- Olha, filha, toma cuidado com o Cherno Abdulai, pois ele anda metido há tanto tempo no meio desses descrentes que já cheira a carne de porco.
Era esperta a minha avó que, certamente, teria encontrado um daqueles pedacinhos de chouriço nos meus bolsos. Quando a queria provocar, trazia do quartel, a massa de esparguete. Na opinião dos mais velhos, os esparguetes eram bichos (germes) da raça das minhocas que os brancos secavam e quando as metia dentro da boca todos fechavam os olhos horrorizados e fugiam para não ver a insuportável cena. Por motivos religiosos o meu pai proibia a entrada da sopa dentro da casa. As únicas coisas que admitia eram as latas de sardinha ou a Coca-Cola.
O único fula-forro no meio do grupo
Passei os primeiros meses a familiarizar-me com os colegas. Por força do meu talento com a bola consegui entrar facilmente no grupo de elite da aldeia, com Sambaro Djau à testa, o chefe mais tirânico que conheci em toda a minha vida. Se acontecia a equipa perder com outra, ele embirrava com toda a gente e maltratava os mais fracos como era o meu caso. Se acontecia a equipa ganhar ai, em vez de satisfação, ele era cometido de uma raiva doentia e sempre inventava um outro desafio desta vez de boxe ou coisa parecida, entre os elementos da equipa, para nos arreliar até às últimas. Nós o detestávamos mas ele continuava a ser o chefe e ditava as regras no grupo.
Eu era o único
fula-forro do grupo por isso sofria de uma dupla opressão. Era odiado por ser fula-forro, a classe dominante no regulado mas também por ser filho de um logeiro, logo de uma família que não conhecia as dificuldades comuns de uma existência bastante dura na época.
Alheio a esta adversidade de que não tinha consciência, lutava diariamente para merecer respeito e conquistar um lugar entre aqueles que no seu subconsciente detestavam tudo o que eu representava. Tinha um irmão mais velho (o Carlos) com quem partilhava as aventuras desde sempre mas que, sendo mais cuidadoso que eu, nunca se tinha metido no meio desses grupos de aldeia.
Mais tarde juntou-se ao nosso grupo o Camões. O seu nome era Suleimane mas logo passou a ser o nosso Camões pois por qualquer motivo quando olhava para alguém, fechava ligeiramente um dos olhos. Foi o Magalhães, um condutor, que lhe deu o nome, e nós pegamos porque era mesmo divertido. No incio ele detestava mas com o passar do tempo e a insistência dos colegas não tinha outro jeito. No nosso entender, todos os zarolhos eram Camões, porque o próprio o era, nada mais normal na cabeça de uma criança da época.
A hierarquia dos tugas, segundo o Camões
O Camões era muito bom observador, e ele ajudou-nos a dar os primeiros passos na vida de rafeiro que era a nossa no quartel. Ele nos ensinou com mestria as técnicas de identificar as ameaças e oportunidades e de fazer frente aos perigos. A lição começava na identificação do perigo latente a partir do simples ambiente do momento, a fisionomia dos soldados ou a sua maneira de andar. Mas, o grande problema é que ele via perigo em quase tudo, o que tornava impossível apreender e aplicar todas as técnicas do seu manual de rafeiro.
Entre os maus e mais perigosos, segundo a tabela de Camões, figuravam: Os soldados altos e esguios, os baixinhos e magros, os cabelos ruivos, os de andar apressado, os olhos de gato, os solitários, os alcoólatras, os melancólicos, os excessivamente asseados e aprumados, os bigodatos, enfim, quase todos. Nesta sua classificação, os bons (melhores) eram sempre os atletas (não muito altos, não muito baixos, não muito magros, nem gordos, sem bigodes ou bigodes curtos, os morenos etc.). Nesse grupo entravam os futebolistas e os
vagabundos (inofensivos sem uma característica especifica) que passavam a maior parte do tempo metidos aldeia adentro ou a caçar pássaros na orla da bolanha com um bando de crianças.
Nas especialidades, ele preferia os homens das equipas de apoio ou da logística, como sejam os vagomestres, cozinheiros, condutores, mecânicos, pessoal dos combustíveis, dos correios, das transmissões etc. Aconselhava a todos que o quisessem ouvir, ficar longe dos operacionais ou dos
tigres, como ele os chamava.
- Esses são assassinos, fujam deles!... - dizia o Camões, tentando fixar-nos com aquele seu olho esmiuçado.
Os oficiais não entravam nesta tabela classificatória. Na verdade, eles constituam uma classe a parte a que as crianças tinham pouco acesso, da mesma forma que não tínhamos acesso, nas nossas sociedades, ao mundo dos adultos, situação que não nos atrapalhava em nada. Em contrapartida e apesar da fachada que os cobria de importância sabíamos que eram os campeões de
fodas com as bajudas e, sobretudo, as mulheres
lava-tudo pois, no lixo, por detrás da caserna onde dormiam alguns oficiais da segunda linha, se assim se pode dizer (Furriéis e alguns Sargentos), encontrávamos todos os dias, uma boa quantidade de preservativos com o líquido cor púrpura a brilhar lá dentro.
Oficialmente malandros, também eram os mais politizados, senão os únicos. Apesar dessa eficiência sexual, eram discretos, bons conhecedores do meio envolvente e com excelente domínio de si pelo que raramente se metiam em problemas com os nativos.
Tinha criado o hábito de passar por esta caserna de oficiais, regularmente, por duas razões: Primeiro, porque reciclava o lixo que era de melhor qualidade comparativamente as outras casernas mas também, porque junto de uma das janelas, um dos seus ocupantes gostava de coleccionar latas de conserva que não consumia e eu, passando por ali ia fazendo as contas e verificar se o produto continuava lá no intuito de um dia conseguir aproveitar-se dele. Entre mim e as latas estava uma ténue rede de mosquitos e o perigo de ser surpreendido no acto. Quando finalmente as conseguimos roubar, depois de meses de rondas e de cálculos, tivemos uma grande decepção, pois da dezena de latas surripiadas, mais de metade continha carne de chocos ou lulas que, acto contínuo, deitámos fora pois, a mentalidade comunitária da época, bastante arcaica, atribuía este tipo de carnes a diferentes tipos de bichos que os brancos comiam na sua terra (insectos e répteis) que entre nós criavam horror. Infelizmente não podia devolvê-las ao(s) dono(s) pois, durante a operação
resgate tinha rasgado a rede da janela do oficial de alto a baixo com uma enorme faca de mato daquelas que os soldados levavam a cintura.
Bissau, Julho de 2009.
Cherno A. Baldé
[Revisão /fixação de texto / bold a cores / subtítulos: L. G. ]
_________________
Notas de L.G.:
(*) Vd. postes de:
14 de Dezembro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1367: Concurso O Melhor Bagabaga (3): Fajonquito (1964) (Tino Neves)
24 de Setembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2127: Estórias de vida (5): Sérgio Neves, meu irmão, um homem bom (Tino Neves)
Vd. também: 6 de Julho de 2007 >
Guiné 63/74 - P1928: Estórias de vida (3): Sérgio Neves, meu irmão: em Moçambique, o Mercenário, amigo do lendário Daniel Roxo (Tino Neves)
(**) Vd. postes de 3 de Abril de 2009 >
Guiné 63/74 - P4136: As Unidades que passaram por Fajonquito (José Martins)
14 de Novembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2266: Quem conhece o Inácio Maria Góis, autor de O meu diário, CCAÇ 674 (Fajonquito, 1964/66) ? (René Pélissier)
30 de Março de 2009 >
Guiné 63/74 - P4111: Em busca de... (68): Furs Mils Andrade e Cabrita Martins que estiveram em Fajonquito entre 1971 e 1973 (Maria Filomena Correia)
3 de Abril de 2009 >
Guiné 63/74 - P4135: Em busca de... (70): Fur Mil Andrade e Cabrita Martins que estiveram em Fajonquito entre 1971/73 (Afonso Sousa)
6 de Abril de 2009
Guiné 63/74 - P4145: Tabanca Grande (131): José Cortes, ex-Fur Mil At Inf da CCAÇ 3549/BCAÇ 3884, Fajonquito (1972/74)
17 de Outubro de 2005 >
Guiné 63/74 - CCXLV: Notícias do BCAÇ 3884 (Bafatá, Contuboel, Geba e Fajonquito, 1972/74) (Manuel Oliveira Pereira)
(***) Vd. postes anteriores da série
Memórias do Chico, menino e moço:
19 de Junho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão
24 de Junho de 2009 >
Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo
25 de Junho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio
30 de Junho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói
6 de Julho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4646: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (5): A família extensa, reunida em Fajonquito, em 1968
13 de Julho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda
21 de Julho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4714: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (7): As profecias do velho Marabu de Sumbundo
Vd. também:
18 de Junho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...
7 de Julho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4650: (Ex)citações (32): A Tabanca Grande ou... Global: de Contuboel, Fajonquito e Bissau com amizade (Cherno Baldé)
20 de Julho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4710: Blogoterapia (119): As Fantas, as Marias, as Natachas, ou o amor em tempo de guerra e de diáspora (Cherno Baldé)