quarta-feira, 29 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4754: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (2): João Turé, um menino da tabanca e quartel de Binta (Parte 2)


1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira, foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), é jornalista profissional conhecido no seu meio por “JERO” e enviou-nos uma mensagem , com data de 24JUL2009, e o título: Tempo Africano, cuja 1ª parte foi publicada no poste P4751:



II PARTE


2 - «Começo pelo nosso Alferes Tavares, cujo verdadeiro nome para nós, crianças da minha geração, era os olhos de gato, “o Feiticeiro”.


E sabem porquê? Porque as minas que montava nas mais variadas armadilhas resultavam sempre. Nunca falhavam. Eram sempre accionadas pelo inimigo.


Era uma verdadeira feitiçaria para todos nós, meninos a aprender ser homens. É uma figura que ficará para sempre na memória de todos nós.


3 - Também o nosso Alferes António Duarte Santos, era o mais admirado por todos os milícias de Binta, pelo modo como sabia conduzir os seus homens, quer nas mais variadas situações no teatro operacional, quer nos tempos de lazer que conseguiam ter. Será sempre recordado passem os anos que passarem.


3 - TEMPO AFRICANO


Damos seguimento às estórias do guineense João Turé num dia em que se encerra mais um triste capítulo da história recente da Guiné.

Morreu em Lisboa Luís Cabral, exilado desde há cerca de 30 anos em Portugal.

Luís Cabral tinha sido feito Presidente da Guiné em 1973, o mesmo ano em que o seu irmão Amílcar Cabral tinha sido assassinado em Conacri, em circunstâncias que ainda hoje não estão bem esclarecidas.Luís Cabral fora deposto em 1980 por Nino Vieira que há bem poucos meses foi executado em Bissau.No Editoral do “Diário de Notícias”, de 1 de Junho, refere o jornalista que a Guiné-Bissau não é hoje nada do que Amílcar Cabral sonhou(a não ser independente). Antes deste final dramático o articulista refere, a meio dos seus considerandos, que os múltiplos episódios de golpes, guerras e assassínios dos últimos anos fazem da Guiné-Bissau um “Estado falhado” !Perante o dramatismo destes factos as recordações de João Turé serão um bálsamo longínquo da vivência de meninos que, nos seus primeiros tempos de vida ,cruzaram com militares de uma Companhia de Caçadores.

As estórias que temos vindo a relatar aconteceram na região onde nasceu no norte da Guiné - mais propriamente em Binta, a 20 kms. da fronteira com o Senegal - no período compreendido entre Junho de 1964 e Abril de 1966.

A estória nº. 3 deste “TEMPO AFRICANO” foca de novo as reminiscências de alguns militares que nessa altura mais impressionaram os meninos da aldeia de Binta.

JERO


Ao volante do jipe o Alf. Médico Dr. Martins Barata.
O Fur. Enfermeiro Oliveira encara a objectiva.

3 - Não posso esquecer, também, o nosso Alferes Médico, Dr. Alfredo Martins Barata, para quem quero, em meu nome e, tenho a certeza, em nome de toda a população de Binta, apresentar os mais penhorados agradecimentos, por tudo o que fez por nós, quer de dia quer de noite, quer fizesse chuva ou fizesse sol, sabíamos que e sua ajuda chegava sempre na hora certa. Uma pessoa impar que continuará sempre connosco.

Também recordar o nosso Furriel Enfermeiro José Eduardo Reis de Oliveira, de todos conhecido como o “Furriel Pica”, pelo seu inesquecível apoio a toda a população de Binta, nas mais difíceis ou simples situações, onde eu me incluo, pois, dei-lhe muito trabalho com um profundo corte num pé, suturado com muitos pontos.

Por tudo isto, ainda hoje é recordado com muito carinho pelas gentes de Binta. Todos recordaremos sempre o muito que fez por nós.


4 - TEMPO AFRICANO


Acrescentamos mais um capítulo às estórias do guineense João Turé, numa fase da história recente da Guiné-Bissau marcada por múltiplos episódios de golpes, guerras e assassínios .

Nos primeiros dias do passado mês de Junho tomámos conhecimento pelos serviços noticiosos de mais mortes eventualmente ligadas a mais uma tentativa de golpe de Estado.Entre outras notícias de jornais nacionais salientamos a divulgação de um comunicado atribuído ao Governo da Guiné, que referia:"O Conselho de Ministros tomou conhecimento, através das chefias militares e responsáveis da Segurança de Estado, que estava em curso no país uma tentativa de golpe de Estado e que as mortes de Baciro Dabó, deputado da nação e ministro da Administração Territorial, Hélder Proença, entre outras, ficaram a dever-se ao facto de, presumivelmente, terem tentado resistir à ordem de prisão, enquanto outros mentores se terão entregues sem qualquer resistência", refere o governo em comunicado.

"(...) O Conselho de Ministros teve a oportunidade de escutar gravações, envolvendo os principais protagonistas, através das quais se poderá inferir os seus propósitos, tendo com efeito condenado qualquer acto tendente a alterar a ordem constitucional, por vias não legais", refere o comunicado o governo guineense.No documento, o governo lamenta o "trágico acontecimento, que vitimou duas personalidades políticas e de quem ainda se esperava uma contribuição valiosa para o processo de desenvolvimento da Guiné-Bissau".

Perante o dramatismo destes factos as recordações de João Turé, que temos vindo a publicar, são notoriamente ingénuas e respeitantes a um longínquo tempo conturbado.

Vivia-se em guerra ,mas os meninos da infância de João Turé estavam longe de supor que o seu País, décadas mais tarde, viria a viver quase dia sim, dia sim acontecimentos trágicos que impedem o desenvolvimento normal da Guiné-Bissau.As estórias que temos vindo a relatar aconteceram na região onde nasceu no norte da Guiné - mais propriamente em Binta, a 20 kms. da fronteira com o Senegal - no período compreendido entre Junho de 1964 e Abril de 1966.


5 - A estória nº. 5 deste “TEMPO AFRICANO” foca de novo as reminiscências de alguns militares que nessa altura mais impressionaram os meninos da aldeia de Binta.

Recorda João Turé:o nosso Furriel Luís Moreira foi um militar importante na estrutura de apoio aos mais necessitados.

Dele aparecia sempre, como arte de ilusionismo, um pouco de comida para uns, outro pouco para outros, remediando todos aqueles que necessitavam.

Eu, menino e moço, chamava-lhe “padrinho”. Estará sempre na nossa memória o muito que nos ajudou.

E agora o nosso Furriel Miguel mais conhecido pelo “Furriel tocador”, das figuras mais conhecidas e importantes, pois era o tocador que, com o seu acordeão, abrilhantava todas as festas e bailaricos, com especial relevo as festas de S. João.

Era uma pessoa imprescindível e reconhecida por todos.

Também não será esquecido por todos nós.

Por fim, e seguindo o velho ditado que diz:« que os últimos são sempre os primeiros»… o nosso General Tomé Pinto.

Não é fácil falar dum militar como o Senhor General.

Que poderei dizer, eu, o menino João Turé a quem o senhor General tratava como um filho.

Talvez duas coisas muito simples. A primeira, que só um militar do gabarito do Senhor General, seria capaz de formar uma companhia com a qualidade e categoria da Companhia de Caçadores 675.

A segunda, com a amizade o carinho que me dedica, tendo sempre uma palavra de apoio e ajuda quando preciso, os muitos ensinamentos que me deu, sabe que o considero, do fundo do coração, o meu segundo pai.

Senhor General, meus amigos e amigas, bem hajam pelo muito que fizeram por mim e pelo meu povo.


Bem hajam.
João Turé

Legenda:

(1)- Pequena povoação ,aldeia .
(2) - Sucesso, motivo de festa, de espanto.


Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:

terça-feira, 28 de julho de 2009

Guiné 64/74 - P4753: Documentos (9): ”PAIGC – Análise dos tipos de resistência , 2 - Resistência económica” - Páginas 5 a 9 (Magalhães Ribeiro)

1. Do arquivo pessoal do Eduardo José Magalhães Ribeiro, ex-Fur Mil
Op Esp (Ranger) da CCS do BCAÇ 4612/74, Mansoa 1974.
Camaradas,
Dando continuidade à publicação iniciada no poste - P4721, seguem-se as páginas 5, 6, 7, 8 e 9, dum total de 28 páginas, do caderno: ” PAIGC - ANÁLISE DOS TIPOS DE RESISTÊNCIA, 2 - Resistência económica, Aos camaradas participantes no seminário de quadros, realizado de 19 a 24 de Novembro de 1969, (Este texto é escrito a partir de uma gravação das palavras do secretário geral)”.
Um abraço Amigo,
Magalhães Ribeiro
Documentos: © Eduardo José Magalhães Ribeiro (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Guiné 63/74 - P4752: Estórias do Mário Pinto (3): A “Feira Popular” em Mampatá


1. Mais uma divertida estória, enviada pelo nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá", Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71:

Camaradas,

Cá vai mais uma história pitoresca da CART 2519, passada na Tabanca de Mampatá:



A Feira Popular em Mampatá

O nosso aquartelamento de Mampatá não tinha refeitório para praças, nem messe para oficiais e sargentos. Tinha somente uma cozinha de campanha, com um Vaguemestre e um 1º Cabo Cozinheiro, que faziam milagrosas refeições apesar de bastante contestados por todo, mas com os géneros que tinham à sua disposição, garanto-vos que era impossível fazer melhor. Assim, como é óbvio, o rancho era igual para todos sem distinção.

Claro que, com este panorama alimentar, cada um desenrascava-se como podia.

Sempre que íamos para o mato, era-nos distribuída a famosa ração de combate que, para aqueles que tiveram a felicidade de nunca ter tido uma à sua frente digo: era imprópria para ser consumida a frio, nos habituais “piqueniques” em missões longe do quartel. A sua composição era à base de alimentos cozinhados e conservados, em produtos gelatinosos gordos, devidamente enlatados e salgados, complementada por um ou outro doce.

Ora como não podíamos andar pelo meio do mato fazer fogueiras (que pelos fumos debitados era um grande sinalizador à distância da presença humana) para aquecermos as latitas, na generalidade, cada um de nós retia-as no seu “armazém” pessoal, à espera de uma melhor ocasião para as consumirmos, ou lhe darmos qualquer outro destino.

Certo dia um grupo de furriéis resolveu, junto ao Posto de Comando que também servia de "messe" de Oficiais e Sargentos, abrir um conjunto dessas latas que continham sardinhas em banho de óleo, enxugá-las da gordura e pô-las à assar sobre uma chapa.

Logo que o aroma típico que emanava de tal “pitéu” se espalhou por toda a Tabanca, o pessoal desatou a acorrer ao local, com cara de poucos amigos, julgando que já estava a ser descriminado, secreta e degustativamente, em relação aos seus superiores.

Quando se aperceberam da que na realidade se passava, a Tabanca passou imediatamente a ganhar outra alegria e disposição, tomando o aspecto de “Feira Popular”, só faltando os carrosséis e os carrinhos de choque.

Creio bem que nesse dia, até o IN que nos detectava a quilómetros apenas pelo nosso odor do suor, com aquele cheirinho da sardinhada esteve para vir petiscar connosco.

Um abraço,
Mário Pinto
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Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:

Guiné 63/74 - P4751: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (1): João Turé, um menino da tabanca e quartel de Binta (Parte 1)


1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira, foi Fur Mil Enf da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), é jornalista
profissional conhecido no seu meio por “JERO” e enviou-
nos uma mensagem , com data de 24JUL2009, e o título: Tempo Africano:


Boa noite Luís,

Porque hoje é sábado... lembrei-me de fazer serão e de te mandar mais um "escrito".

João Turé é um "retrato" do meu livro Golpes de Mão's - págs. 341 a 346.

O João Turé fez um discurso no lançamento do meu livro no antigo R.I. 16, em Évora, em 10 de Maio último.

No final pedi-lhe o "papel" e fiz um tratamento jornalístico do seu "testemunho"que publiquei em diversos capítulos, no meu jornal.

Se vires que tem algum interesse para o nosso blogue aqui vai ele.

Se achares que está extenso estás à vontade para cortar os meus comentários.

A partir de agora está nas tuas mãos. Bem entregue portanto.

Um abraço.
JERO

NOTA: Dada a extensão do documento, a publicação será efectuada em 2 partes (2 postes):
I PARTE: O discurso que o João Turé fez no lançamento do livro.
II PARTE: Os comentários do Jero.

I PARTE

Introdução

Diversos órgãos de comunicação local referiram-se ao lançamento do “GOLPES DE MÃO’s”, de José Eduardo Reis de Oliveira, como «…um belo livro sobre as suas vivências na guerra colonial, na Guiné (no humanismo nas cenas de guerra, nas sementes da paz junto das populações e no convívio com as crianças da “Tabanca Nova”) (1).

Uma delas o João Turé, de 8 anos, veio homem ao lançamento do livro em 2 de Maio de 2009.

Porque passaram 40 e alguns anos o João, que se define como “o preto mais branco da Companhia”, tem hoje 53 anos.

Tivemos acesso a um dos seus escritos que leu – emotivamente – numa cerimónia evocativa do regresso da C.Caç. 675 a Évora, no antigo Regimento de Infantaria nº. 16, que teve lugar em 10 Maio último.

Vamos ilustrar este “TEMPO AFRICANO” repartindo em “retalhos” o seu testemunho.

JERO

Foto do João Turé na Actualidade

1 - TEMPO AFRICANO

A chegada da Companhia de Caçadores 675 a Binta, já lá vão 45 anos, foi uma aragem nova, saudável, que trouxe para aquela zona, o ensino, a saúde, o desenvolvimento, a camaradagem e a brincadeira, que todos nós meninos de 6,7 e 8 anos desconhecíamos existir no mundo.

E quando falo de meninos estou-me a rever nos meus 8 anos, junto com muitos mais, traquinas, irreverentes, mas de olhos e ouvidos bem abertos, aprendendo aquilo que ninguém nos tinha ensinado até então.

Porque nem todas as minhas recordações de infância são boas.

Pois, nunca poderei esquecer o que se passou com o meu tio Malan Sissé, mais conhecido por Malan Grifon Sissé, anos mais tarde guia da Companhia, porque foi a primeira pessoa a ter uma bicicleta, das afamada marca “Griffon”, que era uma “ronco” (2) em todo o concelho de Farim.


Era uma personalidade conhecida e respeitada pelas suas qualidades humanas, homem sério e sensato, que defendia a nossa bandeira, não concordando com a ideologia política do PAIGC e por isso, recusando sempre a adesão ao partido, nas muitas vezes em que foi sondado e influenciando muitos a seguirem as suas pisadas.

Quando em 1964 apareceu a guerrilha no Norte da Guiné, mais concretamente no concelho de Farim, foi de imediato procurado para ser aniquilado, tendo sido destruída a sua aldeia “Genicon Mandinga”, os seus haveres e morta a sua querida mãe.

Era este o nacionalismo e a ideologia do PAIGC.

2 - TEMPO AFRICANO

Continuamos com as estórias de um guineense de nome João Turé, que nos seus primeiros tempos de vida cruzou com militares de uma Companhia de Caçadores que estiveram na região onde nasceu no norte da Guiné - mais propriamente em Binta, a 20 kms. da fronteira com o Senegal - no período compreendido entre Junho de 1964 e Abril de 1966.


No número anterior João Turé recordou que a chegada da C.Caç.675 a Binta, já lá vão 45 anos, foi uma aragem nova, saudável que, em tempo de guerra, trouxe para aquela zona o ensino, a saúde, o desenvolvimento, a camaradagem e a brincadeira, que os meninos de 6,7 e 8 anos desconheciam existir no mundo.

Com olhos e ouvidos bem abertos, aprenderam aquilo que ninguém os tinha ensinado até então.

Escreve, em jeito de “memórias”, quando já dobrou o meio século de existência, que guarda da infância boas e más recordações.

A que publicámos anteriormente, respeitante ao seu tio Malan Sissé, mais conhecido por Malan Griffon Sissé, por ter sido a primeira pessoa a ter uma bicicleta “Griffon”muitos quilómetros em redor da sua aldeia, foi o exemplo de uma má recordação, que terminou em tragédia na aldeia de “Genicon Mandinga”.

A estória nº. 2 deste “TEMPO AFRICANO” é diferente pois foca recordações de militares que nessa altura mais impressionaram os meninos da aldeia de Binta.

JERO
Fur Mil Enf
Legenda:
(1)- Pequena povoação ,aldeia .
(2) - Sucesso, motivo de festa, de espanto.

Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Este é o primeiro poste desta série.


Guiné 63/74 - P4750: Estórias cabralianas (53): A estranha doença do soldado Duá (Jorge Cabral)

1. Mais uma estória do nosso alfero, Jorge Cabral, que não precisa de apresentações (Cabral só há um... o de Missirá e mais nenhum, dizia-se no seu tempo):

Amigos!
Aí vai uma estória deste 'Chico-Cafre' (Tunes dixit)

Abraços Grandes
Jorge Cabral



2. Estórias cabralianas (53) > A Doença do Soldado Duá
por Jorge Cabral


Quando uma noite, em Missirá [, o último destacamento de Bambadinca, a norte do Rio Geba, no Cuor,] o Alfero passava ronda, ficou estupefacto, ao constatar que todos os Soldados de Sentinela se encontravam acompanhados das respectivas Mulheres.
- Mas que se passa? – indagou…
- É por causa da doença! O Duá apanhou a doença do Victor!
- Doença do Victor?...

Tornou-se necessário ao Alfero recuar no tempo e a Fá, para perceber. Sim, aí existira um Soldado Victor que, parecendo inconsciente, deambulava a altas horas por todo Quartel. O próprio Alfero o vira e logo diagnosticara: sonambulismo...

Depois, reunira o Pelotão, alertara o Pessoal e, crente na sabedoria popular, avisara:
- Atenção! Que ninguém o tente acordar! É perigoso. Até pode morrer. Trata-se de uma doença e grave.

O Duá, Soldado Fula e dos poucos solteiros do Pelotão, deve ter ficado impressionado. Tanto, que voluntariamente um ano depois, contraíra em benefício próprio a tal doença. E assim, todas as noites, em pose sonâmbula, entrava nas moranças dos Soldados que estavam de Sentinela e procurava as Mulheres…

Claro que não ousavam acordá-lo… pois se lembravam bem das palavras do Alfero.

Levá-las a fazer Sentinela foi a única solução...

Jorge Cabral
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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série Estórias cabralianas > 22 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4723: Estórias cabralianas (52): Em 20 de Julho de 1969, também eu poisei na Lua... (Jorge Cabral)

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4749: Álbum de memórias de Bafatá, 1968/70 (2): A vida é feita de pequenos nadas (Regina Gouveia)



1. No decorrer do IV Encontro Nacional do nosso blogue, em 20 de Junho passado, na Quinta do Paul, Ortigosa, Luís Graça convidou a Regina Gouveia, esposa do nosso Camarada Fernando Gouveia (Alf Mil Pel Rec Inf - Comando de Agrupamento 2957 -, Bafatá, 1968/70), a escrever para o nosso blogue histórias desse tempo.

Respondendo ao desafio eis mais uma bem simples e bonita:




A vida é feita de nadas

A vida é feita de nadas
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;
De casas de moradia
Caiadas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;
De poeira ;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.

Bucólica, Miguel Torga

Nos últimos tempos, mais concretamente a partir do momento em que o meu marido se tornou membro da Tabanca Grande, várias memórias da Guiné têm vindo a emergir à tona do consciente, volvidos que são cerca de quarenta anos. Algumas são pequenos nadas mas a vida é feita de nadas…

Verão de 1969. Bafatá. Enquanto o Fernando está no quartel eu tento ocupar o meu tempo. Acompanham-me entre outros, Hemingway, Jorge Amado, Eça, Fernando Pessoa, António Gedeão, Manuel Bandeira.

Para além da leitura, a música: Mozart, Beethoven, Korsakov, José Afonso, Chico Buarque, no meu leitor de cassetes de fraca qualidade…

Há também as crianças que, começando por vir no fim da refeição para levar o muito que sobrou (o quartel envia-nos excesso de comida), criaram o hábito de aparecer várias vezes ao longo do dia. Com elas aprendo algum crioulo que infelizmente já esqueci.

Há ainda um dos filhos dos vizinhos, com os seus quatro anitos, que aparece logo pela manhã (O “alfer” já foi?) mas que regressa a casa sempre que pressente aproximar-se a hora do Fernando chegar, seja para almoçar, seja ao fim do dia (vou embora; o “alfer” está a chegar). Nunca consegui perceber estas reacções do miúdo.

Talvez em casa ouvisse comentários negativos à tropa, não sei… Um dia, varria eu a varanda, ele chegou e comentou de imediato: Hoje até pareces uma senhora…

Ao fim da tarde, quando o Fernando regressava do quartel, passeávamos. Vêm-me à memória a Tabanca da Ponte Nova, o Geba, a ponte sobre o Colufe, a piscina, a estrada de Bambadinca, a estrada do Gabu, a vereda junto à mãe de água…

À noite, sempre que possível, o cinema. Se o Fernando estava de serviço acompanhava-o até ao agrupamento. Foi aí que conheci o Cabo Gomes.

Rodeado de livros, aproveitava todos os momentos livres para se preparar para o exame do então 5º ano liceal.

Converso com ele e apercebo-me de que as suas maiores dificuldades residem na Física e na Matemática. Passo a ajudá-lo diariamente.

Na última sessão de ajuda, quando em fins de Setembro me preparo para regressar à metrópole, propõe-se pagar-me as lições. Se algum de nós tivesse que pagar algo, era eu a si. Ajudou-me a preencher o meu tempo fazendo aquilo de que tanto gosto - ensinar, muito em particular, ensinar Física.

Regresso próximo do Natal. O Gomes espera-me com uma prenda que ainda conservo. Uma folha seca onde, por entre as nervuras, estão gravados o meu nome e o do Fernando.


No dia 24, como habitualmente, o soldado (não me recordo do seu nome, apenas sei que era da Beira Alta) chegou com o almoço. À despedida desejei-lhe bom Natal.

Não conseguiu conter as lágrimas que começaram a rolar-lhe pela face. A senhora desculpe mas hoje, particularmente, sinto muitas saudades da minha mulher e da minha menina. Já vai para dois anos que as não vejo.

Senti-me muito mal. Ali estava eu, privilegiada, a passar o Natal com o meu marido, após uma curta separação de dois meses e meio. Imaginei, apesar de na altura ainda não ter filhos, quão dura deveria ser para ele aquela separação.

Ainda o dia 24. À noite o Tenente Coronel Teixeira da Silva apareceu em nossa casa. Era uma pessoa muito afável. Como era também professor de Física conversávamos muitas vezes sobre essa área. Mas nessa noite a conversa foi essencialmente sobre a falta de sentido daquela guerra.

A dada altura reflectíamos sobre o pouco que, como colonizadores, tínhamos feito pelas colónias em geral. Recordo-me que então contou um episódio interessante. Numa das comissões tinha estado em Timor onde, em todo o território, havia 8 quilómetros de estrada (creio que era esse o número).

Um americano que, entretanto encontrou lá (já não sei por que razão), comentou: Os portugueses não estão aqui há cerca de 400 anos? Se tivessem feito 1 km de estrada por ano, já existiriam 400 km…

Num dos dias que se seguiram ao Natal, estando eu sentada na varanda, passou uma idosa que muito simpaticamente me cumprimentou, numa algaraviada por vezes ininteligível. A dada altura percebi que me perguntava qualquer coisa relacionada com néné.

Respondi: Cá tem néné. Pôs um ar muito pesaroso e com uma voz triste repetiu Cá tem néné. Seguiu rua afora e lá longe ainda a ouvia repetir. Cá tem néné… Cá tem néné…

Eis alguns dos pequenos nadas que fui encontrar perdidos no labirinto da memória.

Regina Gouveia

Foto: Regina Gouveia (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. primeiro poste da série em:

Guiné 63/74 - P4748: Notas de leitura (12): História da Guiné e ilhas de Cabo Verde - PAIGC, 1974 (Beja Santos)


1. Do nosso Camarada Beja Santos, Missirá e Bambadinca - 1968/70, recebemos a seguinte mensagem:

História da Guiné e ilhas de Cabo Verde, PAIGC, 1974

As Edições Afrontamento iniciaram logo em 1974 a publicação de monografias sob o título “Libertação dos povos das colónias”.

O número 1 foi dedicado ao PAIGC. O destinatário desta obra, presume-se, era o quadro do PAIGC, talvez o aluno das “regiões libertadas”, talvez mesmo o estudante guineense a estudar em países do Leste, todos eles carentes de um conjunto de referências indispensáveis ao tempo: a história da Guiné-Bissau em África e na África em descolonização; os dados capitais da colonização portuguesa tanto na Guiné como nas ilhas de Cabo Verde; caracterização do movimento de libertação em África e o seu desenvolvimento nas colónias portuguesas; etapas da luta de libertação nacional da Guiné e em Cabo Verde no contexto da luta anti-imperialista; dados curriculares de Amílcar Cabral e proclamação da República da Guiné-Bissau.

É um documento histórico que merece ser ponderado, na sustentação ideológica, como manual explicativo de uma visão da identidade nacional, como bússola que desse o azimute, dentro da Guiné-Bissau e ilhas de Cabo Verde, a todas as lutas travadas em África, fazendo concertar os movimentos de libertação ao tempo sob a égide do PAIGC.

É por isso que vale a pena darmos uma síntese de um documento profundamente datado e que perdeu actualidade na Guiné-Bissau quando esta se separou de Cabo Verde.

Certamente por influência de Amílcar Cabral, os compiladores deste manual não iludem a tónica marxista, temperando-a nas suas nuances orientadas para Moscovo, mas também para o Movimento dos Não Alinhados e as sociais-democracias escandinavas, que tanto apoio concederam ao PAIGC.

O enquadramento histórico do continente africano tem destaque, abrindo com a civilização egípcia e depois a presença do Império Romano; segue-se o islamismo e a presença árabe no norte de África; uma nação que é um mosaico étnico (como é a Guiné-Bissau) precisava de várias chaves explicativas para entender os seus autóctones e os povos invasores: daí falar-se dos impérios do Mali e do Songhay, tão importantes na Idade Média.

Em capítulo autónomo, aborda-
se o povoamento da Guiné e das ilhas de Cabo Verde, percebe-se que os autores andam à procura de um elemento de coesão para a identidade destes povos, recorre-se ao artifício de que foi o colonialismo português o responsável pela desunião entre guineenses e cabo-verdianos, na época era fundamental simular que as divergências decorriam exclusivamente do colonialismo.

O relato histórico continua pelos reinos mandingas, a chegada dos fulas e depois a presença dos europeus em África. Segue-se a descrição dos estabelecimentos e entrepostos comerciais, a ascensão e a queda do comércio de escravos até se entrar na colonização contemporânea.

Os elementos de resistência à colonização portuguesa e a “pacificação” têm justo realce neste manual de doutrinação, enunciando até outros resistentes africanos nas periferias da Guiné-Bissau.

Seguidamente, entra-se na apresentação minuciosa do sistema colonial português e o papel que as 2 Guerras Mundiais tiveram na marcha da descolonização.

Em capítulo subsequente relata-se da história dos diferentes movimentos de libertação nas diferentes colónias portuguesas, e assim se chega aos princípios revolucionários do PAIGC.

A partir daqui segue-se a descrição da organização económica e política nas regiões libertadas em sintonia com a luta anti-imperialista no mundo.

É um manual de doutrinação redigido com sinceridade, ingenuidade, utopia mas também com hábil ilusão de factos da história real que se pretendiam solucionar mais tarde: é o caso da falsa identidade entre os povos da Guiné e Cabo Verde, que a despeito de inúmeros e profundos pontos de encontro são duas realidades culturais distintas.

Este exemplar vai ser oferecido para o espólio do blogue.



Comentário: esta ilustração de carácter propagandístico fazia parte da apresentação do PAIGC, certificava a tese dos 2/3 dos territórios ocupados. Sabe-se de há muito que não tinha verosimilhança com a situação real de territórios ocupados, mas impressionava muito enquanto cartão de visita do movimento de libertação.

Beja Santos
Alf Mil Cmdt Pel Caç Nat 52

Imagens: Beja Santos (2009). Direitos reservados.

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

Guiné 63/74 - P4747: Estórias do Mário Pinto (2): Uma erecção um tanto inconveniente



1. Mais uma pitoresca e engraçada estória, enviada pelo nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá", Buba,
Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71:

Camaradas e amigos,

O avivar da memória das nossas recordações e passá-las ao papel, que é como quem diz pelo teclado, começa a ser um hábito sadio e benéfico para o meu já quadragenário stress, por isso cá vai mais uma.

Quando da “descapinação”, ou desmatagem como queiram, do terreno para a construção da nova estrada Buba - Aldeia Formosa, mandaram para MAMPATÁ oriundos de Nhacra, cerca de 900 nativos de raça Balanta, para efectuarem os necessários trabalhos.

Os mesmos usavam sobre o corpo somente uma tanga e eram conduzidos por uns “Sipaios”, como fossem uma manada de gado (desculpem a dureza desta expressão mas não me lembro de outra), levando a efeito a referida tarefa, morosa e desorganizadamente, pois o IN flagelava o local com bastante amiúde e intensidade, apesar do nosso dispositivo de segurança.

Num dado momento um dos nativos, com a sua catana deu um corte profundo no PÉNIS, ficando extremamente aflito, debilitado e dorido.

Por não ser possível tratar o homem ali teve que ser evacuado para MAMPATÁ onde, na altura, se encontrava de serviço o nosso 1º Cabo Enf Lomba, que perante o estranho local do ferimento do sinistrado, agarrou na “massaroca” dele e muito profissionalmente, como era alias a sua obrigação, toca a cozer as partes carnais dilaceradas, causando-lhe uma erecção digna de registo, que logo que detectada originou naturais e gerais gargalhadas do pessoal presente.

O Lomba ainda hoje carrega essa desditosa cruz, pois nos almoços da Companhia lá vem sempre à “maldita” lembrança do pessoal, o relato da curiosa “efeméride” em tom mais ao menos jocoso, conforme oiça a história o Lomba ou o restante pessoal trocista e malicioso.

Depois bebemos mais um copo todos juntos e, se Deus quiser, para o ano lá estaremos todos outra vez, para almoçarmos, confraternizarmos e, porventura, relembrar a história do altivo “instrumento” que foi cozido pelo...

Um abraço amigo,
Mário Pinto
Fur Mil At Art
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Nota de M.R.:
Vd. primeiro poste da série em: