Nota prévia
Em carta, como normalmente recebo as “Divagações de reformado” do meu Comandante e Amigo Pacifico dos Reis, foi-me explicada a razão por não receber a revista ASMIR, como habitualmente.
É que o texto que agora se apresenta, e que vem no seguimento de outros publicados no nosso blog, costuma ser antecedido de publicação na revista da ASMIR, como se alude sempre em cada texto, com a indicação do número em que foi publicada.
O presente texto não terá publicação prévia nessa revista, pela simples razão de que o mesmo foi “censurado” pelo parágrafo que refere o “possível futuro Presidente da Republica”, apesar de reflectir, apenas, a opinião do autor no pleno uso dos seus direitos.
Julgo que se trata de um pormenor, uma pequena “gota de água”. Mas há que estar alerta, para que não se transforme num “charco”.
José Martins
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José Martins
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Durante uma recente viagem a Inglaterra, para visita aos netos, utilizei os aviões da TAP, A viagem fez-me divagar até aos longínquos anos de 68. No decorrer da comissão, o mês de licença poderia ser passado na Metrópole e, para o efeito, eram utilizados os aviões da TAP. Mediante o pagamento do próprio, claro.
Nesse tempo a TAP era a TAP. Serviam boas refeições, com talheres de metal (mesmo na turística) vinho à discrição e engarrafado. Era a época da moda da mini-saia e as hospedeiras (na altura) eram uma visão para quem tinha estado desterrado no mato.
No meio dos meus pensamentos, a caminho do UK, um comissário (agora) atirou-me um “tijolo” (pseudo refeição recente da TAP) para cima do tabuleiro e serviu-me copo de vinho de uma garrafa de origem indefinida. Como tenho todas as “doenças da nutrição” confirmei se era o “tijolo dieta” que tinha previamente solicitado. Não era, novamente. Pela 3ª vez tal me sucedia. Reclamei mas também não espero que me respondam, como das outras vezes. Assim anda a TAP, sob administração brasileira. Será que temos TAP ou TAPIOCA?
Após as licenças era sempre difícil recomeçar. O regresso à rotina das operações, dos patrulhamentos e da vida passada nos abrigos, a má alimentação e higiene eram uma crucificação diária. Havia, no entanto, mecanismos psicológicos que amenizavam o ambiente. Um dos meus, eram os bons dias diários que me dava um pequenito negro, de cerca de três anos, que corria para mim mal saía da nossa “caserna armazém de mancarra”. Era um bálsamo que me fazia lembrar os filhos que tinham ficado em casa. Vim a saber mais tarde que tinha falecido, num dos ataques ao aquartelamento, depois de ter saído da Companhia.
O Mamaçal no habitual cumprimento matinal ao “Homem Grande” dos Gatos Pretos.
© Foto Pacifico dos Reis (1968 ?)
A C.Caç 5, como companhia da Província, tinha uma secção de recrutamento e mobilização cujo comando, conforme rezava o quadro orgânico, pertencia a um furriel. Como estivesse em falta, solicitei o recompletamento. Tempos mais tarde, quando regressou uma coluna vinda de Nova Lamego, vieram dizer-me que tinha chegado o furriel para a secção.
Dirigi-me para a coluna, mas não me apercebi que tivesse chegado alguém novo. Perguntei onde estava e, subitamente, reparei num indivíduo magro, como uma radiografia, a sair do meio das pipas e das sacas de farinha. A farda que vestia tinha uns números acima e bailava-lhe no corpo. Era o nosso furriel da mobilização. Mais tarde vim a saber que era um conhecido actor do nosso teatro de revista. O que o pobre sofreu para pôr os papeis em dia.
As emboscadas que sofríamos não eram exclusivamente realizadas pelos turras. Passo a contar: Certa vez seguíamos em “bicha de pirilau” pela mata densa quando senti que todo o pessoal africano da companhia dispersava gritando “baguera, baguera…” Somente os soldados metropolitanos não desertaram. Mantiveram-se no seu posto… mas por pouco tempo. Logo que perceberam que baguera eram abelhas, seguiram atrás dos africanos. Foi a pior emboscada que alguma vez tivemos, pois as abelhas africanas são muito ciosas do seu território e muito democráticas: tanto nos atacam, como aos turras. O que foi trabalhoso foi reunir o pessoal, uns quilómetros mais à frente.
A outra emboscada foi realizada por um bando de macacos. Durante uma coluna a Nova Lamego atravessou-se, no caminho, um bando de macacos cão. Um pequenito macaco, que ficou para trás, foi apanhado por um dos militares da Companhia. Quando regressamos, ao passar pelo mesmo sitio, estava todo o bando de macacos, que nos mimosearam com uma gritaria incrível. Somente quando chegámos ao aquartelamento é que percebi, ao ver o macaquito, que a emboscada à coluna tinha sido efectuada para libertar o pequeno elemento do bando. O mal estava feito e o pequeno ficou como mascote.
De divagação em divagação, vejo como os valores se vão modificando com o passar do tempo. Durante a permanência na Guiné, numa operação, perdi o PSRT (documento cripto). Sendo material secreto dei de imediato conhecimento superior e não houve qualquer quebra de segurança. Mesmo assim fui punido. Agora, quarenta e dois anos depois, arriscamo-nos, nas próximas eleições, a ter um Comandante Supremo das Forças Armadas que se divertia a enviar de Argel, elementos para os turras atacarem os nossos militares. É bem verdade que hoje, em Portugal, o patriotismo se mede pelos decibéis das “vuvuzelas”, e não pela valia nas artes, nas letras, nas ciências ou na disponibilidade dos militares de dar a vida pela Pátria.
Quando chegamos a Canjadude só tínhamos, conforme já referi, um armazém de mancarra para viver.
Tornava-se necessário construir abrigos enterrados, para resistir a previsíveis ataques. Para o efeito cortamos algumas árvores, com a grossura de mais de um metro, que iriam servir de cobertura aos abrigos. Ao mesmo tempo abríamos campos de tiro. Assim construímos os nossos habitáculos que nos iriam proteger e aos que nos rendessem. O agradável nos abrigos era o cheiro que os troncos, recém cortados, emanavam para o interior dos mesmos. Sempre diluía outros cheiros menos agradáveis.
Outras das grandes necessidades era a construção de uma pista para se receber aviões que trouxessem frescos e correio. No intervalo das operações, que eram poucos, conseguimos construir uma pista com a terra dos morros salalé (que me desculpem as formigas) devidamente compactada. Começaram, logo de seguida, a aterrar os DO trazendo material apetecível e perecível. O pior foi quando um piloto mais cauteloso, ou menos experiente, resolver interditar a pista por haver umas rochas no final da mesma. Tínhamos de construir mais cem metros.
Ficamos sem frescos e sem correio. Um piloto amigo e condiscípulo no Colégio Militar prontificou-se a resolver o problema. Tinha lido num manual americano como resolviam estes problemas no Vietname. Embrulhavam os frescos em palha dentro de sacos de serapilheira e lançavam-nos a baixa altitude.
Assim foi feito. O DO passou a rasar a pista e lançou uma série de sacos. Não sei se ele leu bem o manual. O que sei é que andamos a apanhar sardinhas, carapaus e pescada pelas árvores das redondezas. Serviu muito bem para um almoço de caldeirada, pois não podíamos ser esquisitos.
Víamos a vida fluir, durante a nossa permanência naquele pequeno recanto da Guiné, chamado Canjadude. Alguma marca deixámos naquelas terras. Sem dúvida nenhuma fizemos a guerra por amor à Guiné e a Portugal.
Um abraço,
Pacífico dos Reis
Coronel na reforma
Observação:
Um abraço,
Pacífico dos Reis
Coronel na reforma
Observação:
Como o autor do texto não se recordava do nome do “pequeno”, solicitei informação ao Corceiro que, além da foto, enviou o texto abaixo:
“Amigo Martins
O miúdo era o Mamaçal, uma jóia de criança, os militares eram a sua família.
Em anexo vai uma foto, tirada no rio junto à ponte, onde estou eu, o Silva atirador mais o Dias, a dar banho ao Mamaçal.
Dá cumprimentos ao Pacífico dos Reis.
Um abraço
José Corceiro
José Corceiro
© Foto de José Corceiro.
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Nota de M.R.:
Vd. último poste da série de 23 de Julho de 2010: Guiné 63/74 – P6779: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis) (5): Só à pedrada (José Martins)