1. Quarto episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 12 de Janeiro de 2011:
4.º EPISÓDIO
Continuam a inspecção, tendo o Alferes Magalhães manifestado interesse em ver a zona da fonte, tanto mais que a água que tinham recolhido na passagem pela tabanca de Umaro Cossé, era branca, parecia leite ou cal de pintar paredes. Descem a pequena encosta desembocando numa zona ensombrada onde mulheres lavam roupa. Por se ter passado duma zona com muita luz para a obscuridade o nosso Alferes tem alguma dificuldade em distinguir todos os vultos presentes. Porém um sobressai de imediato pelo seu porte altivo. Rapidamente os olhos do Alferes, forçados pelo desejo incontido, se adaptaram àquela luz difusa não precisando de antes ter fechado um olho como tinha aprendido na instrução no Quartel do Convento de Mafra. O que tinha à frente dele reportou-o por momentos ao tempo em que, na Escola de Belas Artes do Porto, tinha estudado a história da Grécia antiga e a perfeição das suas mulheres representadas na profusa estatuária da época.
Bajuda, sim, esta tinha que ser bajuda. Tomava banho. Como era costume mantinha só os panos de baixo. Bastava a parte superior do corpo, qual sereia, para enfeitiçar um marinheiro, neste caso um guerreiro. Antes que fosse tarde e se desvanecesse aquela imagem surreal o Alferes Magalhães sacou da sua Fujica e sem sequer pedir permissão, como era seu costume, dispara não em todas as direcções mas numa só. O João aproveita o momento e vai dizendo:
- Esta é a Asmau, filha do Adramane, Chefe de Tabanca.
O Alferes, absorto continua a contemplação. Nova interrupção do João:
- Não queria ver a nascente de água?
Como que sonâmbulo inteirou-se das condições, verificando rapidamente que com uma pequena escavação se conseguiriam encher os garrafões de pé. Sobem à tabanca e o nosso Alferes desculpando-se com afazeres relacionados com a sua acomodação retira-se, altamente atarantado, para a morança que lhe tinha sido destinada. (Trinta anos mais tarde, com uma qualquer máquina digital teria a possibilidade de sozinho, na morança, rever aquele corpo esbelto mas atlético, de olhar altivo e sorriso algo enigmático, qual figura de Da Vinci).
Totalmente ausente, só deu por si quando o Dionildo, o soldado que passaria a fazer de seu ordenança, o veio chamar para o almoço, bem à sua maneira:
- F… meu Alferes, não quer vir comer o c… do almoço?
Como que acorda. Passa um pouco de água pela cara e junta-se aos seus sete camaradas para comerem a primeira refeição, sobre os joelhos, à sombra de uma morança. A fome já era muita mas só por um lapso de tempo deixou de pensar no que agora já lhe parecia ter sido uma simples miragem.
O primeiro almoço em Madina Xaquili. O Dionildo que se viria a revelar totalmente marado, é o único sentado no chão, ao sol.
A seguir à refeição, nesse dia de princípio da época das chuvas, o calor húmido é insuportável. Todos se retiram para as moranças que lhe haviam destinado, para dormir a sesta. O nosso Alferes vai para a sua. Deita-se nu no colchão de espuma que tinha trazido e que colocara sobre a cama de esteira existente na morança, deixada pela família que antes lá vivera. Como que passou pelas brasas, mas não passou. Não podia passar. O seu estado de excitação era tal que se lembrou da esposa do Major Saraiva, em Báfata, que por um dia ter mascado cola andou três dias sem dormir. Tem a maior erecção da sua vida. Tinha ouvido ao médico que o priapismo em forma aguda até pode ser perigoso. Não era hora de haver lavadeiras na fonte. Aproveita o facto e vai tomar um banho de água fria da nascente. Fica mais calmo, no entanto precisa agora de tornar a ver aquela deusa.
A guerra não ia parar e o Alferes Magalhães a meio da tarde tem que reunir os homens, metropolitanos e africanos e, sempre de acordo com o Comandante da Milícia, João Sanhá, distribui as tarefas de cada grupo, para o dia seguinte. Prioritária é a abertura de dois abrigos, um para o morteiro, só o cano e 16 granadas (ah se o PAIGC soubesse disto…) e outro para a pouca população civil ainda existente na tabanca. Penduram-se as primeiras garrafas de cerveja vazias no arame farpado da vedação e ainda nesse fim de tarde se começam a destruir os enormes morros de baga-baga da zona desmatada, refúgio perfeito para os guerrilheiros durante um ataque. Aos metropolitanos são dadas instruções específicas, tal como: Nada de sexo, pois praticamente só havia mulheres grandes. Teriam que ser criativos, e foram, como mais tarde se veio a verificar. Como ainda não havia latrinas, quando fossem à mata teriam que levar um camarada armado, como segurança.
Chega a hora do jantar e a refeição já ia ser servida à mesa, então improvisada. Aqui, o Alferes Magalhães, devido ao seu estado de alma, a pairar nos ares como jagudi à procura de comida, comete uma imprudência que lhe podia ter ficado muito cara, no mínimo impedindo-o que à noite, no “bentem”, pudesse conduzir a conversa no sentido de obter informações sobre o fanado praticado na tabanca, sobre a idade de casar das bajudas, sobre cabaços e duma forma geral sobre tudo que o aproximasse da bajuda Asmau. Obsessão, efeitos do clima, ou muito simplesmente amor à primeira vista?
Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 11 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7598: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (39): Na Kontra Ka Kontra: 3.º episódio