1. Mensagem da nossa amiga tertuliana Felismina Costa* com data de 16 de Março de 2011:
Caro Editor e Amigo Carlos Vinhal
Lembrando mais uma efeméride, 19 de Março, (O dia do Pai), resolvi enviar uma carta que escrevi ao meu pai, que já não vejo desde 1993, porque a morte o veio buscar, e que pretendo seja, uma homenagem a todos os pais que nela se revejam.
Quantos de nós, já temos pensado, que gostaríamos de poder escrever ao nosso pai, dizendo-lhe o que nunca lhe dissemos enquanto os tivemos junto de nós?
É isso que faço aqui!
Se achar que faz sentido, Carlos... publique.
Obrigada.
Um abraço fraterno da
Felismina Costa
Pai!
Lembras-te pai, daqueles anos em que vivíamos todos no Monte-Novo-das-Flores?
Lembras-te de me acordares todos os dias dizendo:
--São horas filha, já o sol vai alto!
O sol… nascia dentro da nossa casa!
Literalmente, nascia dentro da nossa casa!
E rapidamente se elevava, naquele céu azul, maravilhoso, umas vezes doce, suave…
E outras queimando… abrasando, impondo a sua força, em Verões caniculares!
Lembras-te pai? Daqueles dias Primaveris em que cavavas aquela terra toda, desenhando e preparando os canteiros para as sementeiras de Verão?
O cheiro bom da terra fresca, afagada, limpa, arranjada, mostrando a sua cor morena e forte, maternal e amiga, esperando apenas a semente para a transformar num espaço luxuriante de verdura, que antecedia a flor, que gerava o fruto?
O teu corpo esguio, elegante, de braços compridos e mãos grandes, firmes e determinadas, quando pegavas na enxada para transformar em matéria leve e fofa, aquela terra pesada, dura, ou encharcada de água, que te encharcava o corpo de suor, eram as mesmas mãos que depois nos acariciavam, quando sorridente nos contavas velhas e divertidas histórias, e tu, o mesmo, que determinado dizia não, quando era preciso dizer não… mesmo sorrindo, mas sem desarmar.
Pai, quantas vezes me lembro de ti!
Do teu porte varonil e belo.
Vestias com gosto a roupa limpa e arranjada que sempre brilhou no teu corpo e que sempre refiro como um exemplo de brio, de galhardia.
Um dia, enquanto varejavas a oliveira grande, tivemos uma conversa que sempre recordo, que sempre te agradeço. Grande lição de vida! Uma das maiores lições que tu me deste. Eu devia ter, os meus catorze, quinze anos, e às vezes falo dela aos meus amigos.
Contei-a aos meus filhos e ao meu neto, que a escutaram respeitosamente, compreendendo, tal como eu compreendi, o teu conselho, o teu alerta, para as ciladas da vida. Preciso, sem arrogâncias, fazias-nos acreditar que as tuas palavras, os teus conselhos, eram a ajuda certa para prosseguir a caminhada.
Que bem que nos fez a tua experiência de vida!
Pai, recordo cada frase, cada gesto, cada sorriso, cada olhar… e tenho tantas saudades tuas!
Recordo cada dia, ali vividos!
Pai, recordo cada som daquele espaço!
Os meus irmãos brincando e ajudando no trabalho da quinta, o barulho do motor a dois tempos, que puxava a água do poço para o tanque, ao fim da tarde.
O tanque cheio de agua fresca e pura… espelhava a lua… e um sapo cantava, mal virávamos as costas, encantado e agradecido.
O cantar do cuco por detrás da "Soalheirinha", até ao findar do dia.
O cantar dos grilos e das cigarras acompanhava-nos ao longo do caminho até casa, casa, que de resto, ficava tão próxima, só uns cinquenta metros mais acima, e que, em dias luminosos e calmos de Outono, nos dava uma imagem idílica da vida campestre, com o fumo saindo da chaminé, vagaroso, cinzento, inclinando-se calmamente pelo espaço, ao fim da tarde.
O cheiro bom da erva que o calor ia cada dia transformando em feno, aspirava-se a plenos pulmões, e o cansaço do dia era agora minimizado na absorção desse perfume quente, gostoso e calmante.
Tudo se traduzia num entendimento perfeito, num conhecimento total das leis que regiam a natureza.
Feliz, eu cantava as cantigas em voga, que entoavam no espaço livre.
Por vezes também te ouvia cantar, cantigas dos teus tempos idos. Ainda me recordo do princípio de uma canção, ou fado-canção, que gostavas de trautear e começava assim:
(…Era uma tarde de Inverno
Em que o céu parecia o Inferno
Andavam os astros em guerra
E a ribeira mal continha
As grandes cheias que vinham
Lá dos vertentes da serra…)
E eu ouvia atenta esse teu trautear, que animava a doce calma do lugar, enquanto ia trabalhando a teu lado, feliz e segura.
Trabalhar a terra… é uma terapia que recomendo vivamente!
Ver transformado em fruto o esforço colectivo da família, era a alegria total, o agradecimento surgia naturalmente, valorizava-se cada folha, cada flor, cada grão, cada aroma, cada forma apresentada…
As figueiras, carregadas de figos pretos e brancos, eram uma delícia, uma recompensa depois do trabalho árduo, que abria o apetite, e nos tornava gratos.
No conforto doce da casa, as refeições, à base dos produtos totalmente biológicos que criávamos, tinham um sabor único, inconfundível.
Às vezes faltava o tempo para cozinhar mas, qualquer coisa que se fizesse era gostoso, reconfortante.
Cestos de fruta acabada de colher eram as fruteiras que decoravam a mesa ou os cantos da cozinha.
O espaço que habitávamos era magnífico na sua simplicidade, na sua naturalidade.
O sol tornava-o resplandecente!
E nós tudo fazíamos para o alindar.
Dávamos à terra as sementes e plantávamos árvores para que se cumprisse a vida, para que germinando e florindo, aquele espaço desenvolvesse as suas capacidades criadoras, que nos alegrava, que nos enriquecia, enquanto seres humildes.
As aves ofereciam-nos músicas de encantar e o espectáculo dos voos e das cores da sua plumagem, qual orquestra exibindo obras imortais, com todos os seus elementos vestidos a rigor.
No ribeiro que dividia a quinta longitudinalmente, a água corria docemente e as rãs cantavam para nós.
Esse pequeno espaço… era o meu mundo e nele encontrei muitos motivos de encanto.
A paz, o sossego, a luz, as cores, os sons, o afecto, a segurança…
Nele cresci, segura e feliz, na família construída sob a tua regência.
O presente era magnífico, como me poderia assustar o futuro?
A mãe?.. que saudades da minha mãe!
Todos os minutos da sua vida foram de trabalho e dedicação, de amor, de vontade, de brio, de coragem!
Mas a carta hoje é para ti, Pai!
Há muito que andava para te escrever.
Há muito que andava para te dizer das lembranças que marcaram a minha vida.
Das lembranças que me deixaste.
Lembranças da tua força… e também das tuas fraquezas… mas, a tua presença enchia a nossa casa, era a base, a solidez, a estrutura, a confiança.
Precisava de te dizer isto.
Sempre que eu e os meus irmãos nos juntamos, falamos de vós, com alegria e emoção, com orgulho, com gratidão!
Lembramos a nossa infância e adolescência até àquele dia em que, cumprindo as leis da vida, fomos deixando a casa paterna.
Tentamos todos seguir o vosso exemplo. Tentamos todos passar para os nossos filhos os vossos exemplos, a vossa ternura, a vossa verticalidade, a vossa capacidade de enfrentar os revezes, sem alarmismos, mas com determinação. Com coragem!
Foi muito bom ter nascido do vosso amor.
Obrigada meu pai, pela companhia, pela presença, pelo afecto, pelo esforço dispendido ao longo dos anos, muitas vezes menos bem, (porque a saúde às vezes falta), pela família que me ofereceste e por teres permanecido ao meu lado, ao longo de toda a tua vida.
Agradecida e Saudosa… sou a tua filha… Felismina.
Felismina Costa
Agualva, 1 de Março de 2011
____________
Nota de CV:
(*) Vd. poste de 22 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7844: Blogoterapia (178): Regresso ao passado (Felismina Costa)
Vd. último poste da série de 18 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7961: Blogpoesia (115): Aromas de Camabatela, Quando cheguei a Luanda (1) (Albino Silva)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 19 de março de 2011
sexta-feira, 18 de março de 2011
Guiné 63/74 - P7962: Efemérides (63): 17 de Março de 1971, o regresso casa, no T/T Uíge, cansados da guerra: foi há 40 anos! (Tony Levezinho / Humberto Reis / Luís Graça)
T/T Uíge > 17 Março de 1971 > Dia da partida de Bissau para Lisboa. Regressávamos da guerra, cansados da guerra, uns mais apanhados do clima do que outros, alguns com chumbo no corpo (o Pina, o Fernandes, por exemplo, enquanto o Marques, o António Fernando Marques, iria fazer outra comissão no Hospital Militar Principal, na sequência da mina A/C em que ele caiu com mais o 4º pelotão)...
Regressávamos num navio da marinha mercante da Companhia Colonial de Navegação (uma empresa, fundada em Angola em 1922, para assegurar os transportes marítimos das colónias portuguesas com a Metrópole, sendo o paquete Vera Cruz o seu navio mais emblemático)... Uíge, de seu nome. Niassa, para lá. Uíge, para cá.
Como se tudo continuasse como dantes e a vida corresse normalmente, nessa viagem de regresso à Pátria (e à impossível normalidade, já que as nossas vidas nunca mais seriam como dantes), servia-se a bordo, na classe turística, reservada aos sargentos, uma sopa de creme de marisco, seguida de um prato de peixe (Pescada à baiana) e um de carne (Lombo Estufado à Boulanger)... Sem esquecer o luxo de uma sobremesa: a bela fruta da época, o bom café colonial, o inevitável cigarro a acompanhar um uísque velho, antes de mais uma noitada de lerpa ou de king... ou de mais uns uísques... Enfim, as pequenas delícias do sistema...
Obrigado ao Humberto Reis e à sua memória de elefante por me lembrar ontem, em comentário ao poste P7957, que o 17 de Março de 1971 foi o primeiro dia do resto das nossas vidas... E já lá vão 40 anos!...
Nomes e moradas de alguns de nós, furriéis milicianos da CCAÇ 12 (eram todos de rendição individual) ficaram registados, entretanto, numa folha de papel, nas costas da ementa do jantar a bordo, tavez no último dia, seguramente no alvoroço do regresso...
Alguns de nós nunca mais se voltaram a encontrar: foi o caso do Luciano Severo de Almeida, natural do Montijo, desaparecido em condições trágicas (ao que me contaram mais tarde) ... O António Branquinho (não confundir com o homónio do Pel Çaç Nat 63, que vive hoje na Covilhã, e que era nosso vizinho de Fá Mandinga, ele e o Alfero Cabral), esse, voltou para a Évora (e nunca mais deu sinais de vida), o Fernandes para o Barreiro e para a CUF, o Levezinho para a Sacor (mais tarde, Petrogal) e para os braços da sua querida Isabel.... O Humberto, para os da Teresa... Enfim, vidas!
Voltei a encontrar o Fernandes, o Jaquim Fernandes, em 1994, no 1º encontro do pessoal de Bambadinca, em Fão, Esposende... O José Manuel Rosado Piça, o grande Piça, para os amigos, esse, também o revi uma vez .... O que será feito de ti, camarada, com os setenta e muitos (anos) em cima das canetas ? Tinhas na altura quinze anos a mais do que nós, sendo da mesma idade do Cap Inf Carlos Brito (que também nunca mais vi, depois de 1994, sabendo apenas que vive em Braga)...
Mesmo assim, ficámos amigos... todos, para sempre ! O Tony, o Humberto, esses e eu, ainda nos encontrámos na Lourinhã, antes do 25 de Abril, com as respectivas caras metades (eu, solteirinho, que a Alice só aparece mais tarde...) num memorável almoço de safio de fricassé feito pelo meu amigo Cabeça de Abóbora (O Zé Maria, dono Café Central), já falecido há muito... E depois, mais tarde, quando fui viver para Lisboa, em 1975, reforçamos a nossa amizade... Entretanto, o Tony exilou-se em Sagres há já largos anos, com a sua Isabel.... Hoje sou vizinho do Humberto, em Alfragide, mas víamo-nos muito mais vezes... em Bambadinca: aliás, partilhávamos o mesmo quarto... Enfim, vidas! (LG)
Fotos: © António Levezinho (2006). Todos os direitos reservados
________________
Nota de L.G.:
Último poste da série > 10 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7922: Efemérides (61): Op Lança Afiada, triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, 8 a 19 de Março de 1969 (Torcato Mendonça)
Guiné 63/74 - P7961: Blogpoesia (115): Aromas de Camabatela, Quando cheguei a Luanda (1) (Albino Silva)
1. Mensagem de Albino Silva* (ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845, Teixeira Pinto, 1968/70), com data de 17 de Março de 2011:
Carlos Vinhal
Como tenho vivido estes dias a pensar em tudo o que passei, quando estive em Angola, ou seja em Camabatela de 1958 a 1961, quis acrescentar ao relato que te enviei ontem, mais este extracto de um livro que ando a escrever, a que tenciono dar o nome de AROMAS DE CAMABATELA, que comecei há pouco tempo. Ainda só escrevi ainda 27 páginas com 12 versos cada, mas quero pelo menos ir até 150 a 180.
Isto é apenas para mostrar que ainda hoje, e já passados 50 anos, continuo a gostar de Camabatela, amando-a mesmo.
Como já disse, foi devido ao dia 15 de Março de 1961 que eu vim embora, mas sempre soube guardar na minha memória aquele passado que ainda me faz sonhar com ele, tudo porque as pessoas eram boas, e Camabatela era linda...
[...]
Obrigado por todo este trabalho que te vou dando, e deixa-me recordar, já que recordar é viver.
Abraços para todos os tertulianos porque cada vez mais fazemos a nossa Tabanca Grande ser maior, proporcionando bons momentos a todos os que cá nos vêm visitar e fazem dela o seu jornal diário, como acontece comigo.
Abraços especiais aos nossos chefes de Tabanca.
Albino Silva
Aromas de Camabatela
Quando Cheguei a Luanda (1)
Um abraço acolhedor
de Angola como tal
parece que me dizia
Luanda a capital .
Beleza que me encantou
Luanda linda eu dizia
ao passar na marginal
olhando a sua baía.
Cinco dias em Luanda
tudo era lindo e bom
mas o destino era o norte
então fui para a estação.
Era uma estação grande
igual só mesmo aquela
De lá partiam comboios
Para Malange e Benguela.
De comboio deixei Luanda
destino a Camabatela
Atravessando a floresta
e vendo Angola tão bela.
Do que aprendi na escola
não me enganei mesmo nada
e daquele comboio já via
a saltar a macacada.
O comboio em sua marcha
de quando em vez apitando
via tanta a bicharada
de um lado ao outro saltando.
O comboio pachorrento
pouco andava e então
parava para meter água
meter lenha e carvão.
A fumaça era tanta
que saía para o ar
o comboio ia andando
fartava-se de apitar.
Cheguei a Lucala e fiquei
bem juntinho à estação
o comboio foi para Malange
e eu mudei de direcção.
Quando deixei o comboio
em Lucala na estação
do outro lado da ponte
havia um bar e pensão.
Em Lucala estive três dias
somente para descansar
foi até arranjar boleia
para o norte me levar.
Era um bar bem arranjado
na esquina e junto a um rio
de dia sentia o calor
à noite cacimbo e frio.
No quarto onde dormi
improvisado também
era tão grande tão grande
pois era um velho armazém.
Naquele bar de Lucala
que foi escala na viagem
paradeiro de motoristas
que lá faziam paragem.
Tinha uma grande varanda
e era bom lá estar
ao lado da via férrea
em Lucala aquele bar.
Para mim era diferente
aquele ambiente vivido
naquela terra angolana
tudo era desconhecido.
Seguir destino à boleia
que depressa apareceu ela
depois de Samba – Caju
cheguei a Camabatela.
Ao chegar à nova vila
deparei com um jardim
lindas ruas suas casas
Camabatela era assim.
Era domingo de Junho
havia muito calor
sentia o cheiro a queimadas
do capim o seu odor.
(continua)
____________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 17 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7958: O 15 de Março de 1961 (Norte de Angola) foi há precisamente 50 anos (Albino Silva)
Vd. último poste da série de 12 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7933: Blogpoesia (114): Medalha???, dedicado a um soldado metralhado (Manuel Maia)
Carlos Vinhal
Como tenho vivido estes dias a pensar em tudo o que passei, quando estive em Angola, ou seja em Camabatela de 1958 a 1961, quis acrescentar ao relato que te enviei ontem, mais este extracto de um livro que ando a escrever, a que tenciono dar o nome de AROMAS DE CAMABATELA, que comecei há pouco tempo. Ainda só escrevi ainda 27 páginas com 12 versos cada, mas quero pelo menos ir até 150 a 180.
Isto é apenas para mostrar que ainda hoje, e já passados 50 anos, continuo a gostar de Camabatela, amando-a mesmo.
Como já disse, foi devido ao dia 15 de Março de 1961 que eu vim embora, mas sempre soube guardar na minha memória aquele passado que ainda me faz sonhar com ele, tudo porque as pessoas eram boas, e Camabatela era linda...
[...]
Obrigado por todo este trabalho que te vou dando, e deixa-me recordar, já que recordar é viver.
Abraços para todos os tertulianos porque cada vez mais fazemos a nossa Tabanca Grande ser maior, proporcionando bons momentos a todos os que cá nos vêm visitar e fazem dela o seu jornal diário, como acontece comigo.
Abraços especiais aos nossos chefes de Tabanca.
Albino Silva
Aromas de Camabatela
Quando Cheguei a Luanda (1)
Um abraço acolhedor
de Angola como tal
parece que me dizia
Luanda a capital .
Beleza que me encantou
Luanda linda eu dizia
ao passar na marginal
olhando a sua baía.
Cinco dias em Luanda
tudo era lindo e bom
mas o destino era o norte
então fui para a estação.
Era uma estação grande
igual só mesmo aquela
De lá partiam comboios
Para Malange e Benguela.
De comboio deixei Luanda
destino a Camabatela
Atravessando a floresta
e vendo Angola tão bela.
Do que aprendi na escola
não me enganei mesmo nada
e daquele comboio já via
a saltar a macacada.
O comboio em sua marcha
de quando em vez apitando
via tanta a bicharada
de um lado ao outro saltando.
O comboio pachorrento
pouco andava e então
parava para meter água
meter lenha e carvão.
A fumaça era tanta
que saía para o ar
o comboio ia andando
fartava-se de apitar.
Cheguei a Lucala e fiquei
bem juntinho à estação
o comboio foi para Malange
e eu mudei de direcção.
Quando deixei o comboio
em Lucala na estação
do outro lado da ponte
havia um bar e pensão.
Em Lucala estive três dias
somente para descansar
foi até arranjar boleia
para o norte me levar.
Era um bar bem arranjado
na esquina e junto a um rio
de dia sentia o calor
à noite cacimbo e frio.
No quarto onde dormi
improvisado também
era tão grande tão grande
pois era um velho armazém.
Naquele bar de Lucala
que foi escala na viagem
paradeiro de motoristas
que lá faziam paragem.
Tinha uma grande varanda
e era bom lá estar
ao lado da via férrea
em Lucala aquele bar.
Para mim era diferente
aquele ambiente vivido
naquela terra angolana
tudo era desconhecido.
Seguir destino à boleia
que depressa apareceu ela
depois de Samba – Caju
cheguei a Camabatela.
Ao chegar à nova vila
deparei com um jardim
lindas ruas suas casas
Camabatela era assim.
Era domingo de Junho
havia muito calor
sentia o cheiro a queimadas
do capim o seu odor.
(continua)
____________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 17 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7958: O 15 de Março de 1961 (Norte de Angola) foi há precisamente 50 anos (Albino Silva)
Vd. último poste da série de 12 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7933: Blogpoesia (114): Medalha???, dedicado a um soldado metralhado (Manuel Maia)
Guiné 63/74 - P7960: Notas de leitura (220): Comício, um grande poema em defesa do ultramar, por Couto Viana (Mário Beja Santos)
1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Março de 2011:
Queridos amigos,
Agora que me estou a separar das obras do Couto Viana, depois de o ter relido com muita saudade, encontrei um poema do mais elevado recorte lírico, considero que tem total cabimento fixá-lo no blogue, ele que se considerava um acérrimo combatente na retaguarda.
Um abraço do
Mário
Um grande poema em defesa do Ultramar, de Couto Viana
Beja Santos
António Manuel Couto Viana (1923-2010) foi uma importante figura das letras e das artes plásticas em Portugal. Encenador, poeta, dramaturgo e ensaísta, foi director da revista infanto-juvenil Camarada, director do Teatro do Gerifalto, de um grupo cénico da Universidade de Coimbra, dirigiu várias revistas literárias como Távola Redonda e Tempo Presente. Encenou e dirigiu companhias de ópera, foi docente do Instituto Cultural de Macau e a sua vasta obra poética foi publicada há alguns anos pela Imprensa Nacional. Nos últimos anos dedicou-se a estudos culturais do Minho e foi publicando na Câmara Municipal de Viana do Castelo um conjunto de livros de imprevista sátira de costumes, revelou uma faceta brejeira, ele que durante toda a sua vida castigou os versos em denso lirismo, sobretudo, mas também fazendo ressoar uma espantosa toada heróica. Monárquico, apologista da direita radical, não escondia a sua ligação ao regime e aos ideais nacionalistas. Penso que o seu poema Comício é, depois do vibrante Nambuangongo, Meu Amor, de Manuel Alegre, um dos mais poderosos poemas escritos em torno da guerra, neste caso específico exaltando a oportunidade que a defesa do Ultramar daria às jovens gerações para concretizar sonhos e realizar um império como terra prometida.
Comício
Diz adeus à terra
Que te viu nascer:
Deixa aqui teus filhos
E tua mulher,
Vai buscar a pátria
Onde ela estiver!
Aqui tudo exige,
Ali tudo pede:
Acharás justiça
Para a tua sede
E o peixe divino
Cairá na rede.
Haverá domingos
Por toda a semana,
Ali tudo é firme,
Aqui tudo engana,
Ali a alegria
Tem a forma humana.
Diz adeus à terra
Que te viu gerar.
A palavra imunda
Tem aqui lugar:
Perversão da rosa,
Poluição do ar.
Ali tudo habita
No seu próprio chão.
A raiz só prende
Pelo coração
Aqueles que enlaçam
Pecado e perdão.
Aqui quem procura
Encontra o espelho:
Ali gira um jovem,
Aqui dorme um velho.
Ali todo o sangue
Azul é vermelho.
Diz adeus à terra
Onde o amor não basta.
Vai buscar a pátria
Primitiva e casta
Que o terror repele
E o orgulho afasta.
Aqui todo o espaço
Cabe num só medo.
Aqui há denúncia,
Ali há segredo.
Aqui já é tarde,
Ali muito cedo.
Aqui tens um signo,
Ali tens um nome,
Sem voz que divida,
Diminua ou some.
Ali tens a esperança
Para a tua fome.
Diz adeus à terra
Onde a vida passa
Como um rio de água
Morna, lenta e baça,
Onde o vento é brisa
E o clarim desgraça.
Vai buscar a pátria
De bandeiras vivas,
Busca os gestos livres,
Foge às mãos cativas,
Abandona as sombras
E as fontes esquivas.
Busca o teu futuro,
Nega o teu passado,
Vai erguer teu sonho
Solene e sagrado:
Vai morrer na pátria
Que te faz soldado!
Este poema foi publicado no livro Pátria Exausta pela Editorial Verbo, em 1971. Tive o privilégio de receber todos os seus livros autografados, estão agora depositados no fundo que criei à memória da minha filha Glória na Biblioteca Municipal de Pedrógão Grande. Era de elementar justiça convocá-lo para esta tribuna, basta este poema para se avaliar o seu estro heróico, o seu lirismo visionário, o seu modo de erguer uma bandeira em que ele tão convictamente acreditou.
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 16 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7952: Notas de leitura (219): A PIDE/DGS na Guerra Colonial 1961-1974 (2) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Agora que me estou a separar das obras do Couto Viana, depois de o ter relido com muita saudade, encontrei um poema do mais elevado recorte lírico, considero que tem total cabimento fixá-lo no blogue, ele que se considerava um acérrimo combatente na retaguarda.
Um abraço do
Mário
Um grande poema em defesa do Ultramar, de Couto Viana
Beja Santos
António Manuel Couto Viana (1923-2010) foi uma importante figura das letras e das artes plásticas em Portugal. Encenador, poeta, dramaturgo e ensaísta, foi director da revista infanto-juvenil Camarada, director do Teatro do Gerifalto, de um grupo cénico da Universidade de Coimbra, dirigiu várias revistas literárias como Távola Redonda e Tempo Presente. Encenou e dirigiu companhias de ópera, foi docente do Instituto Cultural de Macau e a sua vasta obra poética foi publicada há alguns anos pela Imprensa Nacional. Nos últimos anos dedicou-se a estudos culturais do Minho e foi publicando na Câmara Municipal de Viana do Castelo um conjunto de livros de imprevista sátira de costumes, revelou uma faceta brejeira, ele que durante toda a sua vida castigou os versos em denso lirismo, sobretudo, mas também fazendo ressoar uma espantosa toada heróica. Monárquico, apologista da direita radical, não escondia a sua ligação ao regime e aos ideais nacionalistas. Penso que o seu poema Comício é, depois do vibrante Nambuangongo, Meu Amor, de Manuel Alegre, um dos mais poderosos poemas escritos em torno da guerra, neste caso específico exaltando a oportunidade que a defesa do Ultramar daria às jovens gerações para concretizar sonhos e realizar um império como terra prometida.
Couto Viana na Casa do Artista, onde viveu cerca de 10 anos
Comício
Diz adeus à terra
Que te viu nascer:
Deixa aqui teus filhos
E tua mulher,
Vai buscar a pátria
Onde ela estiver!
Aqui tudo exige,
Ali tudo pede:
Acharás justiça
Para a tua sede
E o peixe divino
Cairá na rede.
Haverá domingos
Por toda a semana,
Ali tudo é firme,
Aqui tudo engana,
Ali a alegria
Tem a forma humana.
Diz adeus à terra
Que te viu gerar.
A palavra imunda
Tem aqui lugar:
Perversão da rosa,
Poluição do ar.
Ali tudo habita
No seu próprio chão.
A raiz só prende
Pelo coração
Aqueles que enlaçam
Pecado e perdão.
Aqui quem procura
Encontra o espelho:
Ali gira um jovem,
Aqui dorme um velho.
Ali todo o sangue
Azul é vermelho.
Diz adeus à terra
Onde o amor não basta.
Vai buscar a pátria
Primitiva e casta
Que o terror repele
E o orgulho afasta.
Aqui todo o espaço
Cabe num só medo.
Aqui há denúncia,
Ali há segredo.
Aqui já é tarde,
Ali muito cedo.
Aqui tens um signo,
Ali tens um nome,
Sem voz que divida,
Diminua ou some.
Ali tens a esperança
Para a tua fome.
Diz adeus à terra
Onde a vida passa
Como um rio de água
Morna, lenta e baça,
Onde o vento é brisa
E o clarim desgraça.
Vai buscar a pátria
De bandeiras vivas,
Busca os gestos livres,
Foge às mãos cativas,
Abandona as sombras
E as fontes esquivas.
Busca o teu futuro,
Nega o teu passado,
Vai erguer teu sonho
Solene e sagrado:
Vai morrer na pátria
Que te faz soldado!
Este poema foi publicado no livro Pátria Exausta pela Editorial Verbo, em 1971. Tive o privilégio de receber todos os seus livros autografados, estão agora depositados no fundo que criei à memória da minha filha Glória na Biblioteca Municipal de Pedrógão Grande. Era de elementar justiça convocá-lo para esta tribuna, basta este poema para se avaliar o seu estro heróico, o seu lirismo visionário, o seu modo de erguer uma bandeira em que ele tão convictamente acreditou.
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 16 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7952: Notas de leitura (219): A PIDE/DGS na Guerra Colonial 1961-1974 (2) (Mário Beja Santos)
quinta-feira, 17 de março de 2011
Guiné 63/74 - P7959: Estórias cabralianas (66): O meu colega Mãozinhas (Jorge Cabral)
1. Mensagem do nosso camarada e amigo Jorge Cabral (ex-Alf Mil Art, Comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, 1969/71), com data de 16 de Março de 2011:
Amigos!
Abraços e mais uma estória
Jorge Cabral
ESTÓRIAS CABRALIANAS (66)
O Meu Colega Mãozinhas
Foi na prisão de Alcoentre que conheci o Mãozinhas, por intermédio do meu amigo e cliente, o 24, nome que ganhou há muito tempo, num bordel, sito à Rua do Mundo. E porquê, 24? Ora, é fácil adivinhar. O tamanho, melhor, o comprimento...
Primeiro cliente, depois amigo, simpático vigarista, trouxe-me, o Mãozinhas, dizendo:
- Este também esteve na Guiné!
Onde e quando? Quis saber. Lá me respondeu. E qual era a sua especialidade?
- Mecânico de máquinas de escrever, esclareceu o Mãozinhas.
- Boa especialidade, concluí. E a conversa ficou por aqui.
Mas curioso, fui depois informar-me da actual especialidade do Mãozinhas. Carteirista, sem grande sucesso, sempre com um pé lá dentro, outro cá fora, pois para ele a Justiça foi sempre rápida e funcionou.
Passaram meses, eis que recebo um telefonema do Mãozinhas. Quer beber um copo e recordar “os tempos da Guiné”. E eu vou. À Tasca do Camões na Rua da Malapata. Que maravilha. Ao balcão, um zarolho - o Camões -, nas três mesas, um moldavo, um negro, duas velhas, o Mãozinhas e a “sua senhora”.
Estou entre a minha gente, que bom lugar de exílio. Até provo as pataniscas e prometo para a próxima saborear os carapaus de escabeche. O Mãozinhas é quase residente, ali passa as noites, enquanto a “sua senhora” trabalha na Rua do Desterro.
À noite na Rua do Desterro? Finalmente o Mãozinhas encontrou um bom “emprego”.
Mãozinhas é meu colega. Conta “estórias”. Pois, da Guerra e da Guiné.
Porém às vezes, os ouvintes duvidam e foi por isso que me convidou. É que há uns dias afirmou que na sua zona era frequente a tropa ser emboscada por gorilas, que atacavam à pedrada. Agora pede-me uma confirmação.
- É verdade sim senhor! ...garanti.
Que personagem o Mãozinhas! E que falta faz nesta Tabanca!
À despedida perguntei-lhe – “Tens NET, Mãozinhas?”
- “Tenho sim, respondeu, um rapaz e uma menina!”
Jorge Cabral
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 15 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7792: Estórias cabralianas (65): Os românticos... também mijam (Jorge Cabral)
Amigos!
Abraços e mais uma estória
Jorge Cabral
ESTÓRIAS CABRALIANAS (66)
O Meu Colega Mãozinhas
Foi na prisão de Alcoentre que conheci o Mãozinhas, por intermédio do meu amigo e cliente, o 24, nome que ganhou há muito tempo, num bordel, sito à Rua do Mundo. E porquê, 24? Ora, é fácil adivinhar. O tamanho, melhor, o comprimento...
Primeiro cliente, depois amigo, simpático vigarista, trouxe-me, o Mãozinhas, dizendo:
- Este também esteve na Guiné!
Onde e quando? Quis saber. Lá me respondeu. E qual era a sua especialidade?
- Mecânico de máquinas de escrever, esclareceu o Mãozinhas.
- Boa especialidade, concluí. E a conversa ficou por aqui.
Mas curioso, fui depois informar-me da actual especialidade do Mãozinhas. Carteirista, sem grande sucesso, sempre com um pé lá dentro, outro cá fora, pois para ele a Justiça foi sempre rápida e funcionou.
Passaram meses, eis que recebo um telefonema do Mãozinhas. Quer beber um copo e recordar “os tempos da Guiné”. E eu vou. À Tasca do Camões na Rua da Malapata. Que maravilha. Ao balcão, um zarolho - o Camões -, nas três mesas, um moldavo, um negro, duas velhas, o Mãozinhas e a “sua senhora”.
Estou entre a minha gente, que bom lugar de exílio. Até provo as pataniscas e prometo para a próxima saborear os carapaus de escabeche. O Mãozinhas é quase residente, ali passa as noites, enquanto a “sua senhora” trabalha na Rua do Desterro.
À noite na Rua do Desterro? Finalmente o Mãozinhas encontrou um bom “emprego”.
Mãozinhas é meu colega. Conta “estórias”. Pois, da Guerra e da Guiné.
Porém às vezes, os ouvintes duvidam e foi por isso que me convidou. É que há uns dias afirmou que na sua zona era frequente a tropa ser emboscada por gorilas, que atacavam à pedrada. Agora pede-me uma confirmação.
- É verdade sim senhor! ...garanti.
Que personagem o Mãozinhas! E que falta faz nesta Tabanca!
À despedida perguntei-lhe – “Tens NET, Mãozinhas?”
- “Tenho sim, respondeu, um rapaz e uma menina!”
Jorge Cabral
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 15 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7792: Estórias cabralianas (65): Os românticos... também mijam (Jorge Cabral)
Guiné 63/74 - P7958: O 15 de Março de 1961 (Norte de Angola) foi há precisamente 50 anos (Albino Silva)
1. Mensagem de Albino Silva* (ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845, Teixeira Pinto, 1968/70), com data de 16 de Março de 2011:
Caro Carlos Vinhal
Desta vez um pouco diferente do habitual, mando este meu trabalho que mais não lembra se não o meu início de vida em terras africanas, e da forma que eu aqui descrevo, pois é a realidade vivida há 50 anos, mas que em mim durará para todo o sempre.
Foi duro, e por vezes falta-me a coragem para falar de tantas mais coisas que lá vivi após esse malvado dia15 de Março, que sinceramente apesar dos maus bocados passados na Guiné, Camabatela nunca me saiu da memória.
Um Abraço,
Albino Silva
15 de Março de 1961 Norte de Angola
Foi há precisamente 50 Anos
Caros Camaradas da Nossa Tabanca Grande.
Normalmente escrevo aqui neste nosso refúgio que é a Tabanca Grande, referindo-me sempre à Guiné, pois foi lá fiz a minha Comissão de Serviço. Hoje, em especial, vou falar um pouco de Angola, concretamente de Camabatela bem lá no Norte que há 50 anos que deixei. Fui novo para lá, tinha somente 11 anos, pouco depois de ter acabado a Escola.
Em Camabatela trabalhei dentro de balcões para patrões que me fizeram encarar a vida do trabalho de frente, ao mesmo tempo me ensinavam a ser homem, e eu lá ia aprendendo, sentindo-me feliz, já que naquela Vila toda a gente era minha amiga e eu era um rapazito com vontade de aprender, respeitando todas as pessoas daquela linda Vila de Camabatela de quem eu já gostava imenso.
Em Dezembro de 1960 fui para uma fazenda de café chamada Roça Boa Sorte, e por lá andei até ao dia 18 de Março de 1961.
Na roça, que era muito grande, eu andava igualmente feliz. Havia empregados excelentes bem como seu Gerente e até dos nativos das sanzalas que lá havia também era amigo e com quem até brincava.
Tudo corria maravilhosamente embora andássemos um pouco desconfiados pelos acontecimentos de antes em Luanda e do assalto ao paquete Santa Maria.
15 de MARÇO. O terror, os massacres e as chacinas fizeram com que o medo se apoderasse de mim, tanto mais que naquela roça havia cerca de 300 negros a trabalhar na capinagem que depois na apanha do café, e tendo como ferramentas catanas, as afiavam todos os dias para darem melhor rendimento de trabalho. Já era normal ver isso no dia-a-dia sem imaginar outras coisas.
Manhã cedo na região do Quitexe foram assassinados nas suas fazendas os brancos incluindo senhoras e crianças, algumas delas que eu conhecia e cheguei a andar com elas ao colo, quando por essas fazendas passava. Lembro que conhecia bem o Uige, Negage, Sanza Pombo, Quitexe, e todas aquelas povoações até Maquela do Zombo.
Um amigo nosso que tinha ido ao Uige, no regresso, ao passar pelo Quitexe, deparou com os negros em correria, de paus afiados e de catanas nas mãos, já ensanguentadas, a gritarem: Upa! Upa! Upa! - e ao entrar numa loja de um amigo para beber uma Cuca, viu os negros pedirem bebidas. Quando o amigo chegou ao balcão para as entregar, logo os bandidos de catana em punho lhes cortaram o pescoço. Ao verem que estava lá outro branco, correram sobre ele mas como tinha a carrinha à porta, conseguiu em alta velocidade ir até Camabatela, avisando o Administrador e a população, e de seguida ir para a sua pequena fazenda para avisar seus empregados daquilo que tinha visto, para se acautelarem.
A sua fazenda era perto daquela em que eu estava, e ele para ganhar terreno passou pelo Roça Boa Sorte que lhe era mais perto, avisou-nos do sucedido ainda com o voz trémula e muito assustado.
Na roça trabalhavam, além do gerente, 5 homens brancos seus capatazes, o enfermeiro e o motorista que eram africanos e juntaram a nós com o medo dos bandidos da Upa. Logo se começou a montar um refúgio para nossa segurança, já que Camabatela ficava a 35Km e as estradas mais não eram senão picadas cheias de buracos com pequenos morros e perigosos que convidavam a andar devagar.
Na roça, estive escondido os dias todos durante mais uma semana. Então o motorista de nome Venâncio (soube há dias que faleceu há cerca de 6 meses) encheu-se de coragem, e de camião me trouxe para Camabatela juntamente com outras pessoas.
Em Camabatela toda a gente andava assustada, havia choros e lamentos, porque já tinha havido tentativas para invadirem a Vila, não fosse os homens de Camabatela se juntarem todos, e de armas nas mãos, ou seja caçadeiras, guardarem a Vila e protegerem as mulheres e as crianças, fazendo piquetes de vigilância quer de dia ou de noite. Durante mais de um mês, ao cair da tarde, as senhoras e as crianças iam dormir para a Igreja, e claro eu também.
A Igreja estava lotada com colchões pelo chão. Tinhamos como companhia o Padroeiro da Vila e a imagem da Senhora de Fátima a quem tanto pedíamos protecção, enquanto os homens valentes nos protegiam fora com patrulhamento em redor da Vila, até á Missão onde estavam os Capuchinhos.
Na Administração foram descobertos funcionários de raça negra que já tinham programado o dia de nos atacar. Numa lista elaborada por eles já sabiam as mulheres que cada um iam ter porque tudo estava programado. Preparavam-se para atacar quando foram descobertos. Alguns deles foram tantas vezes acarinhados pela boa gente da Vila porque faziam parte da equipa de futebol e davam glórias ao clube e a toda a Gente.
Enquanto tudo acontecia, eu continuava refugiado dentro da Igreja, a qual ainda hoje guardo na memória pelo acolhimento que me deu, e garanto que se ela falasse teria por certo muita coisa a dizer.
Pelos acontecimentos vividos e pelo perigo constante, o medo estava instalado entre nós, até que tivemos uma noticia vinda de Luanda a dizer que ia chegar tropa a Camabatela para nos dar segurança. Ficámos mais descontraídos até à chegada dessa tropa, que nos viria a surpreender, pois quando na pista aterrou um avião Dakota, dele apenas saíram sete soldados com espingarda Mauser, com mais medo do que nós, pois Camabatela não era Luanda, e apenas haviam lá os cipaios e nem esses eram seguros.
Se havia medo até ali, o mesmo continuou depois, porque apenas dependíamos dos corajosos homens de Camabatela.
Em meados de Maio deixei Camabatela porque o perigo ia alastrando por todo o Norte e era aconselhável que senhoras e crianças deixassem a vila, sendo obrigatório para os homens lá continuar para a guardar. Apenas faltava alguém que nos levasse até Luanda, mas não havia ninguém que se fizesse à estrada porque havia o receio de emboscadas no trajecto, uma vez que o capim estava bastante alto e não havia visão alguma naquelas estradas acidentadas cheias de buracos, do tempo das chuvas, com o capim bem debruçado sobre elas.
Num dia de calor bem intenso, vindo do Negage apareceu um camionista habituado à estrada já que transportava café para Luanda na época dele. Em conversa num restaurante de Camabatela “Hotel Bandeira", ofereceu-se corajosamente para nos levar até Vila Salazar que era para onde se dirigia com o seu velho camião Mercedes.
Por conselho do Administrador, em frente da Igreja de Camabatela entrámos nesse camião 42 pessoas, entre senhoras, crianças e dois velhotes, acamados uns por cima dos outros, para fazer a viagem até Vila Salazar.
Eram duas horas da tarde desse dia quando deitei os olhos pela última vez naquela linda Igreja da minha Vila e chorei quando lhe agradeci me ter guardado, também por saber que nunca mais lá voltaria.
Arrancámos com choros pelos familiares que iriam continuar naquele perigo (meu pai), todos deitados para ninguém nos ver. Lá seguimos estrada fora com muito medo, mas com muita confiança naquele camionista que nos prometeu não parar na viagem, pois podíamos ser atacados. Pelas 9 horas da noite chegámos a Lucala, e depois de uma curta paragem para descanso, seguimos viagem até Vila Salazar, onde entrámos eram 11,30 da noite, e logo fomos encaminhados para umas casas que estavam desabitadas, onde fiquei mais um mês até que o Administrador, com medo que se alastrasse o terrorismo, nos meteu no comboio para Luanda.
Em Luanda, concentrados num velho Hotel de Luanda que era perto do edifício da Cuca, comíamos e dormiamos mas também inseguros, porque dias depois infiltrou-se lá um negro para ajudar nos serviços de cozinha, com a intenção de colocar veneno na comida. Foi apanhado antes de o fazer e logo a Policia se encarregou dele.
Todos os dias em Luanda eu fazia correrias para a Cruz Vermelha Portuguesa e Caritas, para me mandarem embora, fosse de barco ou de avião, e lá via constantemente a chegar pessoas que andavam aos quinze dias pelas matas cheios de sangue e alguns feridos com catanadas, provenientes dos ataques de bandidos que matavam tudo e todos, até os de sua cor, só porque eram criados de brancos, como alguns de Camabatela que assim morreram e que eu bem conhecia porque ainda tive tempo de brincar com eles.
Ao fim de dois meses lá consegui sair daquele horror e daquele medo de morte.
Meu pai nada sabia e só passado dois meses de eu estar cá é que soube que eu tinha chegado bem junto da família que cá viveu dias tristes e com o mesmo medo.
Lembro-me de que deixei Luanda num dia às 4,00 horas da tarde, num velho Avião da TAIP, “ Transportes Aéreos Índia Portuguesa", um quadrimotor, estava a caír uma chuva miudinha que se juntou às minhas lágrimas porque sabia que jamais voltaria a Angola, e 24,30 horas depois chegava eu a Lisboa, e por incrível que pareça, Lisboa também chorava.
Tudo isto se passou comigo já lá vão 50 anos, e continuo a recordar tudo como se fosse hoje.
Fiquei deveras traumatizado e hoje vivo ainda aqueles dias de terror que por lá passei.
Cá, com medo de voltar para lá, fugi de assalto para França quando estava a chegar a altura de ir à inspecção militar, mas durante um ano em França não me sentia bem em pensar que outros teriam de ir na minha vez e que nada conheciam. Devia ser eu a me vingar daquele passado, e comecei a ter remorsos.
Voltei para fazer a tropa, e quando julguei que ia para Angola, fui para a Guiné. Lá cumpri minha Missão.
Cinquenta anos depois ainda vivo tudo isto, mas com saudades de Camabatela e daquela linda Igreja que vi construir e que deixei ainda por acabar mas que me agasalhou. É esta que envio e que me dá alegria em a olhar assim tão linda.
OBS:
Dos diversos Blogues sobre Camabatela, tenho o mais recente em:
camabatelaemagia.blogspot.com/
Lá esta adicionado a nossa Tabanca Grande.
O meu actual E-mail é, bynisil@hotmail.com
Um especial abraço para toda a nossa Tabanca.
Revisão e fixação do texto:
Carlos Vinhal
____________
Nota de CV:
(*) Vd. poste de 15 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7945: (Ex)citações (133): Editor, precisa-se! (Albino Silva, ex-Sold Maq, CCS/BCAÇ 2845, Teixeira Pinto, 1968/70,... com saudades da linda vila de Camabeta, Angola)
Caro Carlos Vinhal
Desta vez um pouco diferente do habitual, mando este meu trabalho que mais não lembra se não o meu início de vida em terras africanas, e da forma que eu aqui descrevo, pois é a realidade vivida há 50 anos, mas que em mim durará para todo o sempre.
Foi duro, e por vezes falta-me a coragem para falar de tantas mais coisas que lá vivi após esse malvado dia15 de Março, que sinceramente apesar dos maus bocados passados na Guiné, Camabatela nunca me saiu da memória.
Um Abraço,
Albino Silva
15 de Março de 1961 Norte de Angola
Foi há precisamente 50 Anos
Caros Camaradas da Nossa Tabanca Grande.
Normalmente escrevo aqui neste nosso refúgio que é a Tabanca Grande, referindo-me sempre à Guiné, pois foi lá fiz a minha Comissão de Serviço. Hoje, em especial, vou falar um pouco de Angola, concretamente de Camabatela bem lá no Norte que há 50 anos que deixei. Fui novo para lá, tinha somente 11 anos, pouco depois de ter acabado a Escola.
Em Camabatela trabalhei dentro de balcões para patrões que me fizeram encarar a vida do trabalho de frente, ao mesmo tempo me ensinavam a ser homem, e eu lá ia aprendendo, sentindo-me feliz, já que naquela Vila toda a gente era minha amiga e eu era um rapazito com vontade de aprender, respeitando todas as pessoas daquela linda Vila de Camabatela de quem eu já gostava imenso.
Em Dezembro de 1960 fui para uma fazenda de café chamada Roça Boa Sorte, e por lá andei até ao dia 18 de Março de 1961.
Na roça, que era muito grande, eu andava igualmente feliz. Havia empregados excelentes bem como seu Gerente e até dos nativos das sanzalas que lá havia também era amigo e com quem até brincava.
Tudo corria maravilhosamente embora andássemos um pouco desconfiados pelos acontecimentos de antes em Luanda e do assalto ao paquete Santa Maria.
15 de MARÇO. O terror, os massacres e as chacinas fizeram com que o medo se apoderasse de mim, tanto mais que naquela roça havia cerca de 300 negros a trabalhar na capinagem que depois na apanha do café, e tendo como ferramentas catanas, as afiavam todos os dias para darem melhor rendimento de trabalho. Já era normal ver isso no dia-a-dia sem imaginar outras coisas.
Manhã cedo na região do Quitexe foram assassinados nas suas fazendas os brancos incluindo senhoras e crianças, algumas delas que eu conhecia e cheguei a andar com elas ao colo, quando por essas fazendas passava. Lembro que conhecia bem o Uige, Negage, Sanza Pombo, Quitexe, e todas aquelas povoações até Maquela do Zombo.
Um amigo nosso que tinha ido ao Uige, no regresso, ao passar pelo Quitexe, deparou com os negros em correria, de paus afiados e de catanas nas mãos, já ensanguentadas, a gritarem: Upa! Upa! Upa! - e ao entrar numa loja de um amigo para beber uma Cuca, viu os negros pedirem bebidas. Quando o amigo chegou ao balcão para as entregar, logo os bandidos de catana em punho lhes cortaram o pescoço. Ao verem que estava lá outro branco, correram sobre ele mas como tinha a carrinha à porta, conseguiu em alta velocidade ir até Camabatela, avisando o Administrador e a população, e de seguida ir para a sua pequena fazenda para avisar seus empregados daquilo que tinha visto, para se acautelarem.
A sua fazenda era perto daquela em que eu estava, e ele para ganhar terreno passou pelo Roça Boa Sorte que lhe era mais perto, avisou-nos do sucedido ainda com o voz trémula e muito assustado.
Na roça trabalhavam, além do gerente, 5 homens brancos seus capatazes, o enfermeiro e o motorista que eram africanos e juntaram a nós com o medo dos bandidos da Upa. Logo se começou a montar um refúgio para nossa segurança, já que Camabatela ficava a 35Km e as estradas mais não eram senão picadas cheias de buracos com pequenos morros e perigosos que convidavam a andar devagar.
Na roça, estive escondido os dias todos durante mais uma semana. Então o motorista de nome Venâncio (soube há dias que faleceu há cerca de 6 meses) encheu-se de coragem, e de camião me trouxe para Camabatela juntamente com outras pessoas.
Em Camabatela toda a gente andava assustada, havia choros e lamentos, porque já tinha havido tentativas para invadirem a Vila, não fosse os homens de Camabatela se juntarem todos, e de armas nas mãos, ou seja caçadeiras, guardarem a Vila e protegerem as mulheres e as crianças, fazendo piquetes de vigilância quer de dia ou de noite. Durante mais de um mês, ao cair da tarde, as senhoras e as crianças iam dormir para a Igreja, e claro eu também.
A Igreja estava lotada com colchões pelo chão. Tinhamos como companhia o Padroeiro da Vila e a imagem da Senhora de Fátima a quem tanto pedíamos protecção, enquanto os homens valentes nos protegiam fora com patrulhamento em redor da Vila, até á Missão onde estavam os Capuchinhos.
Na Administração foram descobertos funcionários de raça negra que já tinham programado o dia de nos atacar. Numa lista elaborada por eles já sabiam as mulheres que cada um iam ter porque tudo estava programado. Preparavam-se para atacar quando foram descobertos. Alguns deles foram tantas vezes acarinhados pela boa gente da Vila porque faziam parte da equipa de futebol e davam glórias ao clube e a toda a Gente.
Enquanto tudo acontecia, eu continuava refugiado dentro da Igreja, a qual ainda hoje guardo na memória pelo acolhimento que me deu, e garanto que se ela falasse teria por certo muita coisa a dizer.
Pelos acontecimentos vividos e pelo perigo constante, o medo estava instalado entre nós, até que tivemos uma noticia vinda de Luanda a dizer que ia chegar tropa a Camabatela para nos dar segurança. Ficámos mais descontraídos até à chegada dessa tropa, que nos viria a surpreender, pois quando na pista aterrou um avião Dakota, dele apenas saíram sete soldados com espingarda Mauser, com mais medo do que nós, pois Camabatela não era Luanda, e apenas haviam lá os cipaios e nem esses eram seguros.
Se havia medo até ali, o mesmo continuou depois, porque apenas dependíamos dos corajosos homens de Camabatela.
Em meados de Maio deixei Camabatela porque o perigo ia alastrando por todo o Norte e era aconselhável que senhoras e crianças deixassem a vila, sendo obrigatório para os homens lá continuar para a guardar. Apenas faltava alguém que nos levasse até Luanda, mas não havia ninguém que se fizesse à estrada porque havia o receio de emboscadas no trajecto, uma vez que o capim estava bastante alto e não havia visão alguma naquelas estradas acidentadas cheias de buracos, do tempo das chuvas, com o capim bem debruçado sobre elas.
Num dia de calor bem intenso, vindo do Negage apareceu um camionista habituado à estrada já que transportava café para Luanda na época dele. Em conversa num restaurante de Camabatela “Hotel Bandeira", ofereceu-se corajosamente para nos levar até Vila Salazar que era para onde se dirigia com o seu velho camião Mercedes.
Por conselho do Administrador, em frente da Igreja de Camabatela entrámos nesse camião 42 pessoas, entre senhoras, crianças e dois velhotes, acamados uns por cima dos outros, para fazer a viagem até Vila Salazar.
Eram duas horas da tarde desse dia quando deitei os olhos pela última vez naquela linda Igreja da minha Vila e chorei quando lhe agradeci me ter guardado, também por saber que nunca mais lá voltaria.
Arrancámos com choros pelos familiares que iriam continuar naquele perigo (meu pai), todos deitados para ninguém nos ver. Lá seguimos estrada fora com muito medo, mas com muita confiança naquele camionista que nos prometeu não parar na viagem, pois podíamos ser atacados. Pelas 9 horas da noite chegámos a Lucala, e depois de uma curta paragem para descanso, seguimos viagem até Vila Salazar, onde entrámos eram 11,30 da noite, e logo fomos encaminhados para umas casas que estavam desabitadas, onde fiquei mais um mês até que o Administrador, com medo que se alastrasse o terrorismo, nos meteu no comboio para Luanda.
Em Luanda, concentrados num velho Hotel de Luanda que era perto do edifício da Cuca, comíamos e dormiamos mas também inseguros, porque dias depois infiltrou-se lá um negro para ajudar nos serviços de cozinha, com a intenção de colocar veneno na comida. Foi apanhado antes de o fazer e logo a Policia se encarregou dele.
Todos os dias em Luanda eu fazia correrias para a Cruz Vermelha Portuguesa e Caritas, para me mandarem embora, fosse de barco ou de avião, e lá via constantemente a chegar pessoas que andavam aos quinze dias pelas matas cheios de sangue e alguns feridos com catanadas, provenientes dos ataques de bandidos que matavam tudo e todos, até os de sua cor, só porque eram criados de brancos, como alguns de Camabatela que assim morreram e que eu bem conhecia porque ainda tive tempo de brincar com eles.
Ao fim de dois meses lá consegui sair daquele horror e daquele medo de morte.
Meu pai nada sabia e só passado dois meses de eu estar cá é que soube que eu tinha chegado bem junto da família que cá viveu dias tristes e com o mesmo medo.
Lembro-me de que deixei Luanda num dia às 4,00 horas da tarde, num velho Avião da TAIP, “ Transportes Aéreos Índia Portuguesa", um quadrimotor, estava a caír uma chuva miudinha que se juntou às minhas lágrimas porque sabia que jamais voltaria a Angola, e 24,30 horas depois chegava eu a Lisboa, e por incrível que pareça, Lisboa também chorava.
Tudo isto se passou comigo já lá vão 50 anos, e continuo a recordar tudo como se fosse hoje.
Fiquei deveras traumatizado e hoje vivo ainda aqueles dias de terror que por lá passei.
Cá, com medo de voltar para lá, fugi de assalto para França quando estava a chegar a altura de ir à inspecção militar, mas durante um ano em França não me sentia bem em pensar que outros teriam de ir na minha vez e que nada conheciam. Devia ser eu a me vingar daquele passado, e comecei a ter remorsos.
Voltei para fazer a tropa, e quando julguei que ia para Angola, fui para a Guiné. Lá cumpri minha Missão.
Cinquenta anos depois ainda vivo tudo isto, mas com saudades de Camabatela e daquela linda Igreja que vi construir e que deixei ainda por acabar mas que me agasalhou. É esta que envio e que me dá alegria em a olhar assim tão linda.
OBS:
Dos diversos Blogues sobre Camabatela, tenho o mais recente em:
camabatelaemagia.blogspot.com/
Lá esta adicionado a nossa Tabanca Grande.
O meu actual E-mail é, bynisil@hotmail.com
Um especial abraço para toda a nossa Tabanca.
Revisão e fixação do texto:
Carlos Vinhal
____________
Nota de CV:
(*) Vd. poste de 15 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7945: (Ex)citações (133): Editor, precisa-se! (Albino Silva, ex-Sold Maq, CCS/BCAÇ 2845, Teixeira Pinto, 1968/70,... com saudades da linda vila de Camabeta, Angola)
Guiné 63/74 - P7957: A minha CCAÇ 12 (14): Op Borboleta Destemida, 14 de Janeiro de 1970: a ferro a fogo no Poindon/Ponta Varela ou... como nunca confiar num guia-prisioneiro (Luís Graça)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) >CCAÇ 12 (1969/72) > Progressão de um dos Gr Comb da CCAÇ 12, o 1º Gr Comb , comandado pelo Alf Mil Op Esp Francisco Magalhães Moreira (que vive hoje em Santo Tirso), numa lala, na região do Xime ou do Xitole, já no final da época das chuvas, no 2º semestre de 1969... Na primeira foto, Moreira é visível, é um dos seus primeiros da coluna, e usa boina castanha, com crachá... Dos soldados africanos do 1º Gr Comb, lembro-me das caras, mas já não dos nomes... O 1º Gr Comb da CCAÇ 12 era, em minmha opinião, o melhor dos qautro da CCAÇ 12, em grande parte devido às qualidades de comando do Alf Mil Op Esp Moreira (LG)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) >CCAÇ 12 (1969/72) > Uma helievacuação em Madina Colhido (muito provavelmente), no subsector do Xime... Pelos vestígios de queimadas, noata-se que estávamos na época seca, logo a foto será dos primeiros meses de 1970... O riquíssimo Álbum Fotográfico do meu querido amigo e camarada Arlindo Teixeira Roda (naturald e Pousos, Leiria, a viver em Setúbal há décadas) não tem, legendas...
Fotos: © Arlindo Teixeira (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados
Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Carta do Xime (1961) (1/50000) (pormenor) > As principiais referências toponómicas da subregião do Xime, um triângulo definido pela margem esquerda do Rio Geba (a norte), a Foz do Rio Corubal (a oeste) e o a estrada Xime-Bambadinca (a leste): Xime, Ponta Varela, Poindom, Ponta Colhido, Gundagé Beafada, Baio, Buruntoni... e estrada (abandonada) Xime-Ponta do Inglês...
A. Continuação da série A Minha CCAÇ 12 (**), por Luís Graça
(7.2.) Op Borboleta Destemida: Uma emboscada de meia-hora na zona de Poindon/Ponta Varela
Do interrogatorio do elemento IN capturado por forças da CART 2413 (Xitole) no decorrer da Op Navalha Polida, apurou-se o seguinte: (i) disse chamar-se Jomel Nanquitande, (ii) ser de etnia balanta, (iii) ter uma Espingarda Simonov distribuída e (iv) ser chefe da tabanca de Ponta Varela... Confirmámos o que já suspeitávamos, que o IN voltara a instalar-se na área do antigo acampamento do Poindon/Ponta Varela destruído pelas NT em Setembro de 1969 durante a Op Pato Rufia.
O efectivo era de 25 homens, dispondo de Morteiro 82, cinco RPG-2 e armas automáticas. O dispositivo de segurança, mais rigoroso do que no tempo das chuvas, compunha-se de 4 sentinelas na estrada Xime-Ponta do Inglês (dois para cada lado).
O IN saía todas as manhãs a fim de montar segurança à população que trabalha na bolanha, regressando ao meio-dia e voltando à tarde até às 17h.
Com base nestes dados, foi decidido executar um golpe de mão clássico sobre o acampamento a fim de capturar ou aniquilar os elementos IN assim como o material e meios de vida nele existentes (Op Borboleta Destemida).
Desenrolar da acção:
Em 13 de Janeiro de 1970, às 23h, a CCAÇ 12 a 4 Gr Comb (Dest A) e forças da CART 2520, a 2 Gr Comb (Dest B) davam início à operação, com duração prevista de dois dias, e com intenção de executar um golpe de mão a um acampamento IN situado em XIME-3C1-29, composto por 8 moranças e paralelo à estrada Xime-Ponta do Inglês.
A progressão fez-se cuidadosamente pela estrada Xime-Ponta do Inglês até Madina Colhido, seguindo a corta-mato em direcção a Gundagué Beafada.
Devido à noite se encontrar excepcionalmente escura e o capim muito alto, os guias (compostos por 2 picadores do Xime e o prisioneiro) acabaram por perder-se. De forma que teve de retroceder-se até Madina Colhido onde se retomou o trilho.Só se alcançou Gundagué Beafada por volta das 6h do dia seguinte, 14 de Janeiro. Devido a este contratempo, seguiu-se imediatamente a corta-mato rumo ao trilho do Baio que se atingiu pelas 7.45h. Aqui o Dest B (CART 2520) separou-se encaminhando-se para o seu local de emboscada.
Entretanto, o prisioneiro informou que dali até ao acampamento (Ponta Varela / Poindon) ainda era muito longe e que podia seguir-se o trilho até mais à frente, cortando-se depois à esquerda. O comandante do Dest A (***) insistiu para que se cortasse já ali, mas como o prisioneiro afiançasse que podia fazê-lo mais à frente sem perigo e como se mostrasse muito seguro do que dizia, aquele concordou em prosseguir tendo recomendado ao prisioneiro que, ainda longe do acampamento, cortasse à esquerda, a fim da nossa aproximação não ser detectada.
Progredíamos com redobrada cautela quando o prisioneiro informou que já estávamos perto e cortou por um trilho à esquerda que disse ir dar ao Buruntoni. Seguindo o mesmo, encontrou-se outro, em sentido inverso, que o prisioneiro declarou ser um dos trilhos de acesso ao acampamento.
Enveredando por ai, e passados uns 100 metros, os homens da frente (1º Gr Comb da CCAÇ 12, comandado pelo Alf Mil Op Esp Moreira) (***), ao entrarem numa clareira, detectaram um grupo IN emboscado atrás de baga-bagas e de árvores. Evidenciando grande rapidez de reflexos, e com excepcional coragem, o apontador de LGFog 8,9 Braima Jaló, foi o primeiro a abrir fogo.
No mesmo instante começámos a ser violentamente flagelados com Mort 82, LGFog e rajadas de metralhadora. Uma granada de morteiro rebentou junto da 2ª secção do do 1º Gr Comb, tendo os estilhaços atingido o Furriel Mil Pina (comandante da secção), o 1º Cabo Atirador Valente e os soldados Baiel Buaró e Sajo Baldé .
Após os primeiros momentos de surpresa e confusão, reagimos com determinação e, manobrando debaixo de fogo, obrigámos o IN a recuar. Por escassos segundos interrompeu-se o fogo para logo recomeçar com redobrada violência (Mort 82, LGFog e armas automáticas), quando já estávamos quase dentro do acampamento,
Desta vez seriam atingidos pelas balas do IN os soldados do 1º Gr Comb Leite (Transmissões) e Mamadu Au. A nossa reacção foi de tal modo pronta que o IN foi compelido a retirar definitivamente, com baixas prováveis, e em várias direcções. O fogo tinha durado mais de meia-hora.
Feita batida a zona, encontrou-se apenas 1 granada de RPG-2, 1 carregador de Metr Lig Degtyarev, peças de vestuário e diversos artigos. Foram destruídas todas as casas de mato.
Verificou-se, após a batida, que tínhamos passado a menos de 50 metros do acampamento e que o "trilho do Buruntoni" era nem mais nem menos que a estrada Xime-Ponta do Inglês, disfarçada pela abundância e altura do capim.
Tornava-se evidente que a colaboração do prisioneiro se mostrara altamente comprometedora. Levou da primeira vez as NT até próximo do acampamento, para depois afastá-las, dando a nítida impressão de querer acima de tudo mostrá-las. Claro que, quando chegámos ao objectivo, já o IN estava emboscado.
Interrogado ainda sobre o depósito de material de cuja existência falara, disse que não era naquele acampamento e que ficava muito longe dali. Notou-se durante a batida vários buracos onde teriam estado enterradas munições e outro material.
Depois dos primeiros socorros, iniciou-se o sempre penoso regresso a corta-mato em direcção ao Xime, transportando-se os feridos mais graves às costas (ou em macas im provisadas) e progredindo-se cautelosamente a fim de evitar uma eventual emboscada entre Gundagué Beafada e Madina Colhido.
Só aqui, aliás, é que o Dest A (CCAÇ 12) voltou a encontrar-se com o Dest B (CART 2520), em virtude da ligação-rádio ter falhado no decorrer da operação.
Feitas aqui as heli-evacuações, reatou-se a marcha, tendo os 2 Destacamentos chegado ao Xime por volta do meio-dia do dia 14.
Entretanto, o Dest B, nesse dia, 14, pela manhã, tinha seguido por Gundagé e, a corta mato, tinha-se encaminhado para o local de emboscada que estava planeado (Ponta Varela). Tendo encontrado o trilho de Baio, seguiu-o em direcção à estrada Xime-Ponta do Inglês até cerca de meio quilómetro desta. Aí seguiu um grupo de combate para cada lado do trilho, ficando os dois Gr Com em semicírculo.
Por volta das 8h45 o fogo do IN e das NT. Não puderam entar em contacto com o Dest A por avaria do rádio deste. Cessado o fogo, às 9h15, na impossibilidade de cintacto com o Dest A, seguiram para o Xime. Próximno do cruzamento para Ponta Varela foi sobrevoado pela FAP (T 6), tendo-se sabido nessa altura que havia feridos no Dest A.:
Dos feridos foram evacuados para o Hospital Militar 241 (Bissau) os seguintes militares da CCAÇ 12, todos do 1º Gr Comb (e que pertenciam à 2ª secção, com excepção do Sold Trms)
(i) o Fur Mil At Inf Joaquim João dos Santos Pina (que ficou inoperacional),
(ii) o 1º Cabo 1º Cabo Manuel Monteiro Valente (Ap Dilagrama) (que ficou também operacional, com vários estilhaços pequenos e um músculo ligeiramente atrofiado),
(iii) o Soldado Mamadu Au (Ap Metr Lig HK 21)( que ficou com uma bala ainda por extrair na coxa);
(iv) o Soldado Trms [TICA] José Leite Pereira.
______________
Notas de L.G.
(*) Composição do 1º Gr Comb da CCAÇ 12 (1969/71)
Comandante Alf Mil Op Esp 00928568 Francisco Magalhães Moreira [ vive hoje em Santo Tirso]
1ª secção
1º Cabo 8490968 José Manuel P Quadrado (Ap dilagrama) [vive na maregm sul do Tejo]
Soldado Arvorado 82107469 Abibo Jau (Fula) [, dmais trade da CCAÇ 21, dado como fuzilado depois da independência]
Soldado 82105869 Demba Jau (Fula)
Sold 82107769 Braima Jaló (Ap LGFog 8,9) (Futa-fula)
Sold 82106069 Sajo Baldé (Mun LGFog 8,9) (Futa-fula)
old 82106869 Suleimane Djopo (Ap Dilagrama) (Futa-fula)
Sold 82105469 Baiel Buaró (Fula)
Sold 82106269 Mamadu Será (Futa-fula)
2ª Secção
Fur Mil 04757168 Joaquim João dos Santos Pina [, natural de Silves, onde ainda hoje vive, professor reformado]
1º Cabo 17765068 Manuel Monteiro Valente (Ap Dilagrama) [, era também o nosso barbeiro, residente em Vila Nova ]
Soldado Arvorado 82106369 Vitor Santos Sampaio (Mancanhe, ntaural de Bissau)
Soldado 82106469 Mamadu Au (Ap Metr Lig HK 21) (Fula)
Sold 82105969 Samba Camará (Mun Metr Lig HK 21) (Futa-fula)
Sold 82105269 Sherifo Baldé (Fula)
Sold 82106669 Mussa Bari ((Futa-fula)
Sold 82106969 Mamadu Jau (Fula)
Sold 82105369 Mamadu Silá (Ap LGFog 3,7) (Fula)
Sold 82107669 Ussumane Sisse (Mun LGFog 3,7) (Mandinga)
3ª Secção
Fur Mil 19904168 António Manuel Martins Branquinho [, reformado da Segurança Social, Évora]
1º Cabo 18998168 Abílio Soares [, morada actual desconhecida];
Soldado Arvorado 82107169 Mamadu Baló (Fula
Soldado 82106569 Mustafá Colubalii (Ap Mort 60) (Futa -fula)
Sold 82106169 Sana Camará (Mun Mort 60) (Futa -fula)
Sold 82105669 Amadu Baldé (Futa -fula) [, mais tarde da CCAÇ 21, poderá ter sido fuzilado após a independência]
Sold 82106169 Saico Seide (Fula)
Sold 82107569 Gale Jaló (Futa-fula)
Sold 82105569 Sana Baldé (Ap Dilagrama) (Fula)
(**) Vd. postes anteriores:
2 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7888: A minha CCAÇ 12 (13): Janeiro de 1970 (13): assalto ao acampamento IN de Seco Braima e captura de Jomel Nanquitande (Luís Graça)
24 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7852: A minha CCAÇ 12 (12): Dezembro de 1969, tiritando de frio, à noite, na zona de Biro/Galoiel, subsector de Mansambo (Luís Graça / Humberto Reis)23 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7322: A minha CCAÇ 12 (8): O armamento do PAIGC no meu sector L1 (Bambadinca, 1969/71)
22 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7655: A minha CCAÇ 12 (11): Início do reordenamento de Nhabijões, em Novembro de 1969 (Luís Graça)
8 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7401: A minha CCAÇ 12 (10): O inferno das colunas logísticas Bambadinca - Mansambo - Xitole - Saltinho, na época das chuvas, 2º semestre de 1969 (Luís Graça)
28 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7354: A minha CCAÇ 12 (9): 18 de Setembro de 1969, uma GMC com 3 toneladas de arroz destruída por mina anticarro (Luís Graça)
28 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7048: A minha CCAÇ 12 (7): Op Pato Rufia, 7 de Setembro de 1969: golpe de mão a um acampamento IN, perto da antiga estrada Xime-Ponta do Inglês, morte do Sold Iero Jaló, e ferimentos graves no prisioneiro-guia Malan Mané e no 1º Cabo António Braga Rodrigues Mateus (Luís Graça)
7 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6948: A minha CCAÇ 12 (6): Agosto de 1969: As desventuras de Malan Mané e de Mamadu Indjai... (Luís Graça)
7 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6686: A minha CCAÇ 12 (5): Baptismo de fogo em farda nº 3, em Madina Xaquili, e os primeiros feridos graves: Sori Jau, Braima Bá, Uri Baldé... (Julho de 1969) (Luís Graça)
25 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6642: A minha CCAÇ 12 (4): Contuboel, Maio/Junho de 1969... ou Capri, c'est fini (Luís Graça)
29 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6490: A minha CCAÇ 12 (3): A única história da unidade, no Arquivo Histórico-Militar, é a que cobre o período de Maio de 1969 (ainda como CCAÇ 2590) até Março de 1971... e foi escrita por mim, dactilografada e policopiada a stencil (Luís Graça)
25 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6466: A minha CCAÇ 12 (2): De Santa Margarida a Contuboel, 5 mil quilómetros mais a sul (Luís Graça)
21 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6447: A minha CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, Maio de 1969/Março de 1971) (1): Composição orgânica (Luís Graça)
(***) Francisco Magalhães Moreira, a viver hoje em Santo Tirso: julgo que não visite o nosso blogue... Constou-me que quer "esquecer a Guiné"...
Guiné > Zona Leste > Contuboel > 15 de Julho de 1969 > CCAÇ 2590/CCAÇ 12 > Um das raras fotos do Alf Mil Francisco Magalhães Moreira, à esquerda, acompanhado pelo Tony Levezinho (furriel), o Humberto Reis (furriel), o José António G. Rodrigues Rodrigues (alferes, natural de Lisboa, já falecido) e o Joaquim Augusto Matos Fernandes Fernandes (furriel), preparando-se para sair até Sonaco (a nordeste de Contuboel).
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados
Guiné 63/74 - P7956: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (85): Na Kontra Ka Kontra: 49.º e último episódio
1. Quadragésimo nono e último episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 16 de Março de 2011:
NA KONTRA
KA KONTRA
49º EPISÓDIO
O miúdo que a foi chamar, talvez lhe tenha dito que género de pessoa a procurava. Talvez a arranjar-se demorou algum tempo, o que a Magalhães Faria pareceu uma eternidade. Sentado debaixo do alpendre lateral da oficina do Tchame não a viu chegar. Só deu por ela quando já estava junto dele.
Cedeu-lhe a cadeira e ficaram a olhar um para o outro como se nunca tivesse acontecido KA KONTRA, ela sorrindo, ele admirando talvez a forma impecável como vinha vestida e o rosto sem uma ruga. Conversaram tanto que, quando deram por isso, já tinha ido embora todo o pessoal que se tinha juntado com a chegada do visitante. Ela chegou a dizer-lhe que andava com alguns problemas de saúde e que ali em Bafata não sabiam o que ela tinha. Ele foi-lhe dizendo que se sentia muito só.
Asmau e Magalhães Faria.
EPÍLOGO
Asmau acaba por contar a Magalhães Faria tudo o que passou naquilo que, a seus olhos, foi uma longa existência: Desde que o Alferes a comprou por “vaca e meia”, tinha ela dezasseis anos, até agora com cinquenta e seis. Ou seriam cento e cinquenta e seis como diria Teresa Batista (Jorge Amado)?
Bafata tinha sido o seu destino quando, cansados de guerra, ela e a família, fugiram de Madina Xaquili. Não tinham ido por Galomaro para a tropa não os detectar. Em Bafata tinham familiares que os acolheram, até recomporem as suas vidas. O pai Adramane era parente do Régulo de Canquelifá, pai de Ibraim. Este ajudou a nova família a instalar-se. De imediato iniciou o relacionamento com a Asmau que conduziu, mais tarde, ao casamento dos dois. Tudo se encaixava, pensa Magalhães Faria: O Ibraim logo tinha sabido o que se tinha passado em Madina Xaquili, entre a Asmau e ele próprio.
Cada um sabia o que se tinha passado até à fuga para Bafata. Ela conta o que se passou daí para a frente. Refere que enquanto o Alferes esteve em Bafata, pouco saía das imediações da morança, por não querer encontrar-se com ele. O Ibraim levou-a pela primeira vez ao cinema só após o Alferes ter ido embora de vez. Logo a seguir casaram.
Demoram algum tempo a ter o primeiro filho mas logo vieram mais seis, ao todo quatro rapazes e três raparigas. Mas não demorou muito até morrer um, logo o mais velho. O Ibraim sofreu, talvez mais do que ela, com a morte desse filho por se tratar do primogénito e logo macho.
Ela, com vinte e tal anos, já tinha passado por muita adversidade: O divórcio do Alferes aos dezasseis anos, a morte trágica do marido Samba, a fuga para a nova vida e agora a morte de um filho.
Faltava ainda descrever muitas mais adversidades: O Ibraim, que já tinha tido um pequeno ataque de coração, não sobreviveu ao segundo. Sobreviveu ela. Sobreviveu ao divórcio do Alferes, ao Samba e agora ao Ibraim. Desgraças sucessivas. Só africana passa pelo que ela passou. Mais tarde, com a morte de dois outros filhos, com SIDA, carregou o fardo quase sozinha. Os pais pouca ajuda lhe deram antes de morrerem. Tudo suportou. Difícil diz ela, “foi aprender a chorar”, tal como diria Teresa Batista (Jorge Amado).
Gosto da maneira como vem vestida, interrompeu ele, tanto para fazer esquecer as tristes lembranças dela, como para mudar a conversa para assuntos mais prosaicos. E continuando:
Hoje, Asmau, já não vai haver tempo para irmos ao hospital ver o que se passa com a sua saúde, mas amanhã volto aqui e trataremos disso. No dia seguinte, bem cedo, chegava a Bafata, dirigindo-se directamente à morança da Asmau, aonde a tinha acompanhado no dia anterior.
Ir a um qualquer hospital procurar tratamento, pode ser muito complicado quando não se conhece ninguém, porém no de Bafata trabalhava lá uma médica portuguesa que muito facilitou o atendimento. À custa de um pequeno “óbolo” ao hospital por parte Magalhães Faria, tudo ficou à disposição para o tratamento de Asmau.
Já eram horas de almoço quando os dois se despacharam. Sem a convidar para almoçar, quando deram por eles estavam sentados no restaurante do seu amigo Dionísio Castro, situado no prédio da sede dos “Médicos do Mundo”. Talvez não tivessem reparado no que comeram mas o que é certo é que a conversa se prolongou por toda a tarde.
KA KONTRA foi o que cada um prometeu ao outro não mais acontecer. Ela estava a viver sozinha: O único filho vivo estava a trabalhar em Portugal e as três filhas estavam com os maridos, duas em Bissau e outra para os lados do Gabu.
Logo ali combinaram, que dada a mútua solidão, ele a viria buscar passados dois dias, o tempo necessário para ela reunir alguns pertences a levar para a que iria ser a sua nova casa.
Mas definiram bem que ela iria ter o seu quarto, que o que ambos precisavam era de afecto, que ela iria ter um ordenado para justificar o pouco trabalho que iria ter na empresa dele, como orientadora do pessoal menor. Também teria sempre um carro com condutor à disposição, para a levar quer a Bafata, quer a qualquer lugar, sempre que se quisesse encontrar com amigos e familiares.
Nem sempre ele a levava a Bissau. Lá tinha negócios e “negócios”, como homem que era. Quando a levava não se coibia de a “mostrar”. Compra-lhe os melhores vestidos, perfumes e algumas jóias embora para ela “qualquer latão fosse ouro”, mais uma vez como diria Teresa Batista (Jorge Amado).
O aeroporto fascinava-a por causa dos aviões. Quando ele ia esperar amigos de Portugal sempre ela o acompanhava. Pressentindo que ela gostaria de um dia voar, depressa programa uma viagem, num táxi aéreo, até aos Bijagós. Felicidade dos dois. Ele deliciou-se só de ver as expressões de felicidade dela ao contemplar, lá do alto, matas, tabancas, rios, ilhas, ilhotas. Viu pela primeira vez o mar aberto, com que ficou deslumbrada, como deslumbrado estava ele só de a contemplar.
Para recordar os velhos tempos, um dia, fizeram uma refeição em que a “bianda “ foi confeccionada por ela, agora com sal, tendo comido sentados numa esteira no chão, debaixo do grande mangueiro. Muito se riram, muitos olhares trocaram. Momentos de muita ternura.
Quando ao fim da tarde ele se senta sozinho debaixo do mangueiro desfilam na sua memória todos os casos “amorosos” e profissionais, mas agora, numa paz de espírito não supostamente alcançável, mas alcançada. A sua ex-bajuda torna-se numa fonte de ternura não antes imaginável. Paixão. Um amor casto.
Renovam-se os afectos expressos na ternura de palavras, sorrisos, olhares, gestos, como se de um casal de namorados se tratasse.
Sexo é coisa que agora, ele e também ela, sabem separar do amor e da ternura. Ele raramente a trata por tu, talvez por não querer recordar a intimidade que outrora houve mas que agora é outra, sublimada.
Todos os fins de tarde, sentados ou na varanda ou debaixo do mangueiro, ele não se cansa de olhar para ela. Muitas vezes ela faz o mesmo. Gosta muito de a ver dormir na cadeira de lona, especialmente encomendada por ele de Portugal.
Um dia descobre que o sexo o impedira de amar. (como diria a personagem do velho jornalista num dos últimos livros de Gabriel Garcia Márquez). Como que descobre a vida novamente. Desperta nele o amor julgado perdido. Os negócios passam a uma fase de excelência e os amigos regozijam-se ao vê-lo prosperar.
Vários anos se iriam passar. O Dionildo deixaria de vir África abaixo a trazer as carrinhas. A sua coluna ressentir-se-ia da vida agitada que sempre levou. A Sextafeira há muito que tinha deixado de lhe dar atenção.
Whisky ele, e ela uma “fanta”, era o que invariavelmente tomavam quando à noite ficavam até tarde na varanda da casa. Ela recostada na cadeira de lona portuguesa.
Xilogravura no tronco do mangueiro com um coração e as letras A e MF traduz um amor que tinha parecido inatingível.
Y(e, em crioulo), numa ida a Bissau, não se esquece de por em favor dela a sua apólice de seguro de vida.
Zumbidos de mosquitos era a única coisa que se iria ouvir naquela noite serena de fim da época das chuvas, com os dois dormitando sentados na varanda daquela casa para os lados de Safim. Notando ela que ele não se levantava para se irem deitar foi tocar-lhe ao de leve para lhe lembrar que já era tarde. Os dois, trôpegos, amparando-se mutuamente, dirigem-se para o quarto que agora já compartilham.
FIM de NA KONTRA KA KONTRA
**********
Agradecimentos:
Ao “Blog Luís Graça e Camaradas da Guiné” em particular ao próprio Luís e ao editor Carlos Vinhal que me tem aturado todo este tempo.
A António Pimentel:
Por ter sido quem “provocou” tudo isto, na visita que ambos fizemos à Guiné-Bissau em Março de 2010, ao apresentar-me ao empresário que estava interessado em produzir a primeira telenovela guineense. Pelo apoio que deu ao longo destes meses de escrita.
A Francisco Allen pelo apoio dado na Guiné-Bissau e Artur Rêgo pelo seu apoio.
Ao verdadeiro Alferes:
Cuja sua história serviu de base para este seriado.
À verdadeira Asmau:
A “bajuda “ mais espectacular da Guiné Portuguesa.
Ao verdadeiro Dionildo:
Que pela sua maneira de ser proporcionou muitas dicas ao autor.
Ao verdadeiro Ibraim:
Grande amigo do autor, já falecido.
A João:
Que em Madina Xaquili muito ensinou ao autor.
À verdadeira Bobo:
Que sempre tinha um sorriso para com o autor.
A Sadjuma:
O milícia mais aprumado do seu Pelotão.
A Braima:
Que na “Tabanca” deliciou o autor com os seus acordes.
A Ibraim:
Que, além de dar o nome a uma personagem, muitos ensinamentos transmitiu ao autor, sobre os costumes do povo guineense.
Ao povo guineense:
Que pela sua afabilidade conquistou e motivou o autor para esta escrita.
À minha mulher com quem aprendi a gostar de ler.
Porto e Portugal: Agosto de 2010
Até sempre camaradas.
Fernando Gouveia
____________
Notas de CV:
Vd. último poste da série de 16 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7950: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (84): Na Kontra Ka Kontra: 48.º episódio
Vd. postes da série Na Kontra Ka Kontra:
P7583, P7589, P7598, P7605, P7612, P7624, P7630, P7637, P7643, P7648, P7664, P7667, P7673, P7680, P7687, P7698, P7701, P7707, P7713, P7719, P7739, P7743, P7748, P7755, P7763, P7779, P7787, P7794, P7801, P7809, P7830, P7837, P7847, P7854, P7861, P7875, P7882, P7885, P7890, P7896, P7905, P7910, P7915, P7919, P7926, P7939, P7944, P7950
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