terça-feira, 3 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10107: O Nosso Livro de Visitas (141): Jaime Vieira, açoriano, a viver nos EUA há 38 anos, procura uma amigo e camarada, dado como desertor em 1972, o sold escrit Carlos Alberto Sousa Emídio, da CCAÇ 3476 (Canjambari, 1971/73)



Excerto da página do Carlos Silva, na parte relativa à história da CCAÇ 3476 (Canjambari, 1971/73) (Reproduzido com a devida vénia).




1. Mensagem do nosso leitor (e camarada) Jaime Vieira, açoriano, que vive nos EUA (*):

De: Jaime Vieira [52_j@live.com ]
Data: 2 de Julho de 2012 05:30
Assunto: Boas noites ou bons dias, a todos os camaradas da Guiné

Os meus parabéns por terem se lembrado de nós.

Fui soldado na companhia de caçadores 3476, estive em Canjambari, sector de Farim, nos anos de 1971 e 72 e depois estive no Chugué, antes de Mansoa. Vim para Casement [, nos EUA, ?] em 16 dezembro de 1973. 


Tínhamos o nome de Bebés de Canjambari por se tratar duma companhia muito jovem ou a mais jovem de todas. [Vd. o muito original miniguião, imagem  acima, cortesia de Carlos Silva].

Agora, meus amigos, tenho uma curiosidade: no ano de 1972 desapareceu um soldado que era escriturário, com o nome de Carlos. Penso que era de Trás os Montes. Sempre penso nele, era meu amigo, e sempre me preocupei em saber o que lhe aconteceu.

Se algum camarada sabe algo sobre este nosso amigo, diga-me alguma coisa para o meu email 52_j@live.com.

A companhia era açoriana.

Por agora é tudo, um abraço a todos
Jaime Vieira,

2. Comentário do editor:


(i) Pedi ao nosso camarada, amigo e vizinho  Carlos Silva, que eu trato carinhosamente, na brincadeira,  por "régulo de Farim", e que conhece bem toda a rapaziada que passou pelo setor, o seguinte:



Carlos Silva: Tens alguma "pista", na tua página, que possa ajudar este camarada que esteve em Canjambari, na CCAÇ 3476 ? Penso que ele vive no estrangeiro (EUA ?)... Deve ter emigrado, como muitos outros camaradas açorianos...

Não consegui localizar a cidade de Casement (em inglês, "batente", "casement windows", janelas de bater...).   Vou pedir ao nosso amigo Jaime se ele nos esclarece melhor estas duas coisas: (i) O país onde vive (presumo que desde 16 de dezembro de 1973); (ii) o apelido do amigo (Carlos... é pouco) e a companhia a que pertencia; era a mesma, a CCAÇ 3476, açoriana ? E já agora, como e quando é que ele desapareceu ? Foi em Canjambari ? Foi no Chugué ?

Um abração. Luis



(ii) O Carlos Silva respondeu-me de pronto, a mim e ao Jaime:


Luís e Jaime:

Aqui vai o link sobre o Carlos Emídio que desapareceu:

http://carlosilva-guine.com/index.php?option=com_content&view=article&id=57&Itemid=79&limitstart=23 
(**)

Nenhum camarada sabe dele. Espero que esteja vivo.
Estou no Algarve
Um abraço
Carlos Silva


(iii) O Jaime Vieira mandou-me um segundo email, ontem, nestes termos:

Muito obrigado por teres respondido. A minha companhia era dos Açores e fomos para Canjambari em 1971. O Carlos [Emídio] chegou mais tarde . Um pouco tinha sido cabo e foi despromovide mas antes de chegar à nossa companhia. Ele era um pouco contra o regime e tinha problemas com o capitão como eu tambem tinha. Ele desapareceu em Canjambari no ano de 1972 e nunca vi muito interesse por parte das autoridades em saber de ele. Por este motivo fiquei sempre preocupado e com ansiedade para saber o que aconteceu.

Sou emigrante nos Estados Unidos da América já há 38 anos,  era da companhia de caçadores 3476 e, como a metade da companhia era de voluntários com menos de 20 anos de idade,  deram-nos o  nome de Bebés de Canjambari. O meu capitão era chinês de Macau,  muito conhecido hoje pela televisao. O nome dele era Jorge Rangel.

Um abraço a todos, Jaime Vieira.


(iv) Comentário final de L.G.:

Obrigado, Jaime, por teres chegado até nós. Graças ao valioso contributo do nosso camarada Carlos Silva, ficamos a saber que o teu amigo, o sold escriturário Carlos Alberto Sousa Emídio, desapareceu no dia 17 de agosto de 1972 e foi dado, mais tarde como desertor, de acordo com a história da unidade.

Ninguém sabe, até agora, do seu paradeiro. Pode que ser que a tua mensagem chegue até ao seu conhecimento, se ainda for vivo, como esperamos... Como costumamos dizer, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande!... Oxalá possas encontrá-lo, vivo e de boa saúde. Terá, de certo, muito para te contar...

Ficas convidado, desde já, a integrar o nosso blogue. Manda-nos duas fotos tuas, uma do teu tempo de "bebé de Canjambari" e outra atual, tirada em Casement (já agora, em que Estado norte-americano fica ?).

Muita saúde e longa vida para ti e os teus.  Divulga o nosso blogue entre os nossos camaradas açorianos da diáspora!

PS - Na Internet, uma pessoa com este nome, num anúncio comercial, no portal Lisboanet... Pode ser uma pista...

CARLOS ALBERTO DE SOUSA EMÍDIO
Rua Marechal Gomes da Costa, 12 E
Famões, Odivelas, Lisboa 1685-901


Actividade: Instalação de canalizações


... Mas, como se costuma dizer, há mais Marias na terra!

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Notas do editor:

(*) Último poste da série> 2 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10104: O Nosso Livro de Visitas (140): António Rés Borié, ex-1º cabo cripto, Cmd Agr nº 16, Mansoa, 1964/66, camarada da diáspora, vive na Florida, EUA, e procura camaradas do seu tempo 

(**) Excerto da página do Carlos Silva, na parte relativa à história da CCAÇ 3476 (Canjambari, 1971/73):



(...) Caso Deserção do Sold Escrit nº 2055276 Carlos Alberto Sousa Emídio

17 – 08-1972 – Ao fim da tarde deste dia ausentou-se ilegitimamente o Sold Escriturário Carlos Alberto Sousa Emídio, constituindo-se mais tarde em desertor. Fora colocado nesta Companhia por motivo disciplinar, vindo da Sucursal do Laboratório Militar de Bissau.

18-08-1972 – Por todo este dia foram efectuadas buscas, e pelas 17H00 foram encontradas pegadas do Soldado ausente que seguiam na direcção da área da Bricama. O mesmo já fora desertor na Metrópole e o seu desaparecimento seria premeditado, em virtude de problemas de ordem pessoal e militares ainda pendentes, motivados pela sua deserção anterior.


[Fonte:] HU - História da Unidade, Cap II, pág 19

Será que este nosso camarada estará vivo? Faço votos para que sim.

Alguém saberá do seu paradeiro?

Guiné 63/74 - P10106: Parabéns a você (445): António Nobre, ex-Fur Mil da CCAÇ 2464/BCAÇ 2861 (Guiné, 1969/70)

Para aceder aos postes do nosso camarada António Nobre, clicar aqui
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10096: Parabéns a você (441): Silvério Lobo, ex-Soldado Mec Auto da CCS/BCAÇ 3852 (Guiné, 1971/73)

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10105: Memórias de Manuel Joaquim (7): Miserere

1. Mensagem de Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 28 de Junho de 2012:

Meus queridos editores:
Aqui vai mais um trecho das minhas memórias, "Miserere", sobre um momento operacional da CCaç 1419.

É a minha maneira de homenagear e recordar as vítimas da guerra. É, talvez, de cariz muito pessoal mas não poderia ser de outra maneira já que é a "minha" maneira, com toda a subjetividade que possa comportar pois cada um de nós terá o seu olhar (único) sobre a guerra e o modo como nela participámos.
Um grande abraço.
Manuel Joaquim


MISERERE

Do capim saem aromas a fazer recordar noites de verão nos campos da minha aldeia natal. Estamos deitados há largo tempo, até já sinto frio e viro de vez em quando o corpo de modo a procurar o calor que ainda brota do solo. Aguardamos o momento de voltar ao caminho a tempo de se poder atacar, ao alvorecer, uma “casa de mato” do IN na zona de Matar (“rico” nome para um combatente supersticioso).

Chegado esse momento, a coluna retoma a marcha e avança iluminada por um ténue luar de minguante, saído de uma lua em forma de C que nos permite “ver” algumas árvores dispersas. Parecem vigiar-nos, quais entes misteriosos, imóveis e ameaçadores. Sente-se o silêncio, só quebrado pelo ruído suave e descompassado dos passos a caminho da mata, uma massa negra de recorte pouco definido e que domina todo o curto horizonte. 

Ao entrarmos na mata desaparece a luz fraca da lua. Vamos agora em marcha muito lenta numa escuridão total. Apoio-me no ombro do camarada da frente, outro atrás de mim faz o mesmo comigo, olhos abertos não servem para nada, ali vamos numa marcha de cegos encostados uns aos outros, imersos na tal massa negra, como que viajando no ventre de um monstro que nos tivesse engolido.

Inesperadamente, três tiros e “Boum!” … um clarão / explosão fere violentamente a noite e o seu silêncio! Já quase deitado em reação imediata aos tiros, sou atingido por uma saraivada de pequenos projéteis, seguida de pequenas coisas que começam a cair-me em cima como se fosse uma chuva sólida! A um silêncio aterrador de alguns segundos sucedem-se alguns ais abafados e vozes ciciadas, sinais de vida na escuridão, sons que se misturam ao forte zunir dos meus ouvidos.

Levanto-me às apalpadelas, o solo que piso já não é o mesmo de antes, está irregular. Dou um ou dois passos e resvalo para um buraco, caindo em cima de alguém que solta pequenos ais. Diz-me que pensa estar bem, só se queixa de dores numa perna mas que a está a mexer sem dificuldade. Procuro-lhe a perna e ao apalpar noto que há um rasgão nas calças e uma humidade que deve ser sangue mas a ferida parece superficial.

Tateando no escuro, ajudamo-nos mutuamente a sair daquela cova. Percebo que há feridos e reconheço a voz do capitão:
- Acho que só temos um morto, o Tu” - referia-se ao guia auxiliar Tu Pongue que, naquele dia, carregava granadas de morteiro 60.

Sinto a respiração difícil, talvez devido ao pó levantado do chão, tento limpar o rosto e como que sinto um afago da Sorte na minha nuca! “Escapaste, Manel!”

Começam a ouvir-se ais de dor, contidos mas indiciadores de virem de alguém aflito, talvez com ferimentos graves. Dizem-me que são do Zé Maria…

Continuamos a funcionar às apalpadelas, tentando situar-nos naquela confusão. Entretanto surge ordem de retirada. Predomina o silêncio, poucas vozes se ouvem para além das necessárias para o “passa palavra” do Comando. Sabe-se já que, para além do Zé Maria, há mais dois feridos com gravidade, cada um deles alvejado no tronco com um tiro. Ainda na escuridão carrega-se o corpo do Tu e apoiam-se os três feridos graves; dois deslocam-se pelo próprio pé mas o Zé Maria é transportado pelos camaradas. A explosão abriu-lhe um buraco no baixo-ventre. É ele que o diz, angustiado e consciente da gravidade dos seus ferimentos.

A saída da mata coincide com o início da luz do dia. De olhos tristes e encovados olhamo-nos em silêncio, camaradas e solidários, alguns com rasgões na roupa e salpicos de sangue na face suja de pó. A visibilidade aumenta rapidamente. O Zé Maria recebe cuidados de enfermagem, tenta-se a sua estabilização e é carregado às costas de alguém mais possante. O dólman do camarada que o transporta está totalmente empapado de sangue nas costas, o seu tecido brilha com a luz matinal a incidir no sangue coalhado. Seguimos um trilho numa clareira com alguma extensão, talvez a mesma onde estivemos antes “acampados”. Afastamo-nos da orla da mata até uma distância que oferece alguma segurança. Aparece o DO-27, já temos comunicações.

Pede-se a evacuação das vítimas.

Organizada a segurança, aguarda-se a chegada do helicóptero. Procura-se acarinhar e confortar os feridos, principalmente sustentar a vida do Zé Maria já que os feridos a tiro parecem estar a aguentar bem. É assim esta guerra: três tiros na escuridão fazem três vítimas, um morto (o Tu) e dois feridos!

Entretanto, ouve-se perguntar pelo “Chaves” do 1.º Grupo de Combate. Ninguém sabe dele mas surge uma pista: o “Chaves”, só pode ter ficado no local da explosão! Era ele que levava o morteiro 60. E o morto que temos é precisamente o carregador das granadas do morteiro que, logicamente, estaria perto dele no momento da explosão. Aumenta a nossa consternação perante a verosímil suposição do que pode ter acontecido.

Perante isto, há necessidade de o procurar de imediato! Esta missão calha ao 2.º pelotão, o meu. Vinte e tal homens, agora à luz franca do dia e facilmente localizáveis pelo inimigo, voltam à mata à procura do desaparecido! Em linha, a uma distância de uns dois metros entre si, avançam pelo único caminho possível, o mesmo trilho que tinha sido usado há pouco, na retirada. Pensa-se no pior: o IN, que estranhamente não tinha dado ainda sinal de si, estaria à espera que fôssemos recuperar o nosso camarada! Seria o mais provável!

Tenho medo, estou cheio dele. Sigo com um aperto na garganta e uma pressão no peito que me provocam uma espécie de agonia prenunciando vómitos. Sinto-me prisioneiro em marcha para o suplício, a caminho da “boca do lobo”, a caminho do sacrifício. Ninguém fala. O silêncio, abafante e ameaçador, aumenta a sensação de sufoco num abraço de chumbo. Mas não há alternativa, temos de seguir até ao fim.

- Meu furriel olhe ali uma cabeça! É a cabeça do Chaves! É mesmo!

À beira do caminho, aí a um metro, percebe-se uma cabeça meio encoberta pela vegetação rasteira.

- Pois é! Tem calma, vai lá ver!

Chamo o alferes que está perto. Uns momentos depois fixamos o olhar numa cabeça inteira dependurada pelos cabelos nas mãos daquele soldado, enxuta de sangue, face lívida, olhos baços e muito abertos, só com um golpe nos lábios. O choque desta visão deixa-me abstraído de tudo por que estava a passar. Aquela cabeça ocupa-me violentamente os sentidos, ali está ela, a Morte, no seu gelado e terrível esplendor! Sou assaltado pela imagem bíblica de Salomé com a cabeça de S. João Batista e vejo momentaneamente em mim o rapazito assustado com tão atemorizante imagem dos seus tempos de catequese.

Caravaggio (1573–1610): “Salomé recebendo a cabeça de S. João Batista”

Mas a situação não dá para devaneios. Volto rapidamente à realidade bruta e crua. Reunimo-nos, o alferes e furriéis, para uma análise rápida da missão, afinal já tínhamos a certeza da morte do “Chaves” e a prova dessa certeza! Interrogamo-nos sobre o que fazer:

- E o resto do corpo? Estará por aqui aos pedaços? Não se vê qualquer indício! Que fazer, sair do trilho e procurar? Mas somos tão poucos! Valerá a pena corrermos mais riscos só por tal motivo? O mais certo é o resto do seu corpo ter sido pulverizado, não seria melhor regressarmos o mais depressa possível?

Saiu rápida a decisão de seguir até ao “olho do furacão” que forçosamente estaria próximo e de enfrentar o perigo de termos o IN à nossa espera. Temos de ir, temos de voltar ao local onde tudo aconteceu, temos de tentar encontrar mais partes do corpo do “Chaves”

Medo. Medo não, terror! Cérebro fechado para os ruídos ambientais que me parecem chegar compactados num zunido persistente, os sentidos apuram-se dirigidos para qualquer ruído estranho, um ramo a partir-se, um clique metálico…

Lentamente atingimos o objectivo que não estava longe do local onde se recolheu a cabeça. Após uma curva do caminho, a uns 10 a 15 metros, notamos um monte de terra fresca e uma árvore quase sem folhas. A explosão, ao desfolhar a árvore, abriu uma estreita clareira na vertical que deixa agora entrar a luz do dia, luz que parece afagar aquele pequeno monte de terra mexida, debaixo daquela árvore desfolhada.

Um pequeno grupo avança agachado para o monte de terra e percebe que a árvore está cheia de penduricalhos nos seus ramos. Horror, só podem ser pedaços de roupa e de tecido humano, despojos do nosso “Chaves”! Há um silêncio estranho, algo sagrado, tudo parece ter adormecido à volta do local. E o IN não dá sinal! Aproximamo-nos. - Eh!... Está aqui mais alguém! - Parece o Abel do 1.º pelotão! - É ele mesmo, o Abel! – sussurra, espantada, uma outra voz.

Por esta é que ninguém esperava! Surpresa total, era mesmo o corpo do Soldado Abel! Quase todo coberto por terra, o corpo parece intacto mas não está, falta-lhe um pedaço no lado direito do peito. Junto dele está a sua G3 semienterrada e veem-se diversas granadas de morteiro 60 a alguma distância do buraco provocado pela explosão do fornilho. Percebemos agora que o Tu deve ter caído para fora da fila, fulminado (e “empurrado”) com o tiro na cabeça, tendo as granadas de morteiro que levava ficado a uns dois metros do centro da explosão, o que impediu que pudessem rebentar por “simpatia”. Todos sentimos, naquele momento, quanto mais grave poderia ter sido o resultado daquela explosão!

Recupera-se o corpo do Abel e procuram-se no local mais restos mortais do “Chaves” mas não se encontra nada que se possa recolher. Levanta-se todo o material encontrado (não me lembro de termos recuperado o tubo do morteiro, talvez tenha acontecido mas admito que a força da explosão o tenha atirado para longe dali e ter-se decidido, naquelas circunstâncias, não corrermos riscos com a sua busca). E o IN continua sem dar sinal! Vemos agora que nem sequer veio ao local da explosão! Não deve ter gente disponível, a que tem deve estar em posição de defesa da sua “casa de mato”. Ainda deve estar com mais medo que nós e o mais provável é não sermos atacados.

Sinto que o clímax da acção já foi atingido. Talvez por isso estou inesperadamente sereno, quase funciono como um autómato no olho do furacão. Tudo pode estar a rodar à volta mas ali, naquele momento, não dou por isso. Estou, sim, é aliviado por a nossa pequena força ter cumprido a missão e ter tido a sorte de não ter sido atacada.

Regressamos ao sítio onde nos espera o grosso da Companhia, carregando os restos mortais do Abel e do “Chaves”. A marcha agora é mais acelerada. À medida que nos vamos aproximando fixo-me no carreiro à minha frente, alheio à paisagem envolvente como que dissolvida num grande borrão cinzento. Somos aguardados com dolorosa espectativa. Também já tinham dado pela falta do Abel. Sou envolvido por um misto de emoções: satisfação pelos resultados obtidos, alívio do medo e da angústia anteriormente sentidos, dor pela morte dos camaradas e uma grande, grande tristeza.

Chove-me na alma!

Os meios aéreos para as necessárias evacuações estão prestes a chegar, ouço dizer. Entretanto, o IN “acordou”! Já não era sem tempo! Da mata, do lado contrário ao local de onde há pouco tínhamos regressado, vem fogo disperso de RPG (?). Má pontaria. Tem a devida resposta da nossa parte mas tudo dura pouco e nenhuma granada do IN atinge a nossa área de estacionamento.

Chegam os helicópteros. Os feridos têm “aguentado”, menos o Zé Maria que tememos não chegar vivo a Bissau. Feitas as evacuações, regressamos a Bissorã. São uns “bons” quilómetros de caminho que nos esperam.

O calor abrasa mas a alma vai gelada! Olho para os camaradas e vejo, para lá de sofrimento, muito desalento nas suas almas que agora carregam o “peso” dos nossos primeiros mortos e feridos, cinco meses depois da nossa chegada a este “campo de jogos de morte”. Não há deuses que nos valham, ao contrário do que alguns já diziam. Quebrou-se hoje o “bom feitiço” e com resultados cruéis. Penso nos mortos e na dor que irá atingir os seus entes queridos. Penso nos riscos de morte e no sofrimento a que estamos sujeitos. Tantos sacrifícios, tantas ilusões! Que triste e inglório é ficar por aqui e por esta causa!

Como de costume, em momentos como este, “aparece-me” Beethoven com os acordes da sua 5.ª Sinfonia, a chamada “Sinfonia do Destino”: tantantantan!… tantantantan!... Sei a sinfonia de cor, de tantas vezes a ter ouvido antes de adormecer. Já sei que me vem ajudar a caminhar, a esquecer a sede e a relativizar esta merda toda. Já sei que me vem preencher os vazios do cérebro de modo a poder voltar a mim e à lembrança dos meus amigos e entes queridos. A minha mãe, tão frágil, acreditará nas “balelas” que lhe conto quanto ao que se passa aqui? O meu pai acreditará quando lhe digo que o perigo é diminuto, que tudo isto é muito lindo e ainda por cima me pagam um bocado mais do que o meu ordenado de professor primário?

- Pois é, paizinhos, o que eu quero dizer-vos mas não posso é que isto aqui é difícil e perigoso, que quero voltar hoje mesmo mas não me deixam, que não sei o que ando aqui a fazer, que odeio esta guerra. 
Eu sei, eu sei que me não entenderiam, pois o que me apetecia dizer-vos seria incompreensível para vós perante o que ouvem aos nossos governantes.
Sei que não entendem como pode este vosso filho discordar do Salazar, “um senhor ungido por Deus para salvar Portugal “, assim o ouvem dizer aos importantes da nossa terra, não é? E eu sei que é-vos mais fácil acreditar neles do que em mim, eu sei.
Eu sei que vocês sofrem, que se têm sacrificado muito pelos vossos três rapazes, o mano Hilário também “anda a batê-las” em Moçambique, ele está no pior sítio, em Mueda, mas vocês não sabem, ainda bem, pensam que ainda está em Boane, um sítio que o pai conhece bem, o que vos vale é que conseguiram pôr o mano Arnaldo em França! Oh pai, desculpa, então a Pátria? Pois, eu percebo, já era demais tanta carne para canhão, ao menos que se safe o mais novo! Mas por que raio continuam vocês a acreditar no “Botas”?

Empurraram-me para dentro do campo, tenho de jogar neste campo, nem há perguntas a fazer pois já sei as respostas. Estou num jogo, há sorte e azar, mas tenho de tentar a sorte, a sobrevivência, mesmo tendo a certeza que a minha equipa sairá derrotada no fim. Como vencer o adversário se ele tem os ventos da história a seu favor, se pode usar tantas artimanhas para compensar a sua eventual fraqueza, se pode estar em qualquer lado desta terra sem se dar por isso, se pode ser até alguém que nos aperta a mão, nos dá de comer e nos mata a sede?!

- Pois é, Manel, os teus lamentos não valem nem te valem de nada! Aqui não há caridade nem compaixão, estás preso, não te deixam sair. Só o tempo, meu menino, só o tempo e a sorte te soltarão. A sorte! Está tanto calor e arrepias-te com frio?! Estás no limite quanto a sonhos de futuro, todo o futuro perde significado nesta situação, aqui nada mais interessa do que chegar ao fim. Tens os sonhos adiados para quando daqui saíres, se saíres!

Já “cheira” a Bissorã. Coisa estranha, ao atingir zonas mais seguras, o corpo parece querer desistir de andar! Como está difícil este último lanço do percurso! É Janeiro, para lá do meio-dia, um calor abrasador, dei o resto da minha água a dois “desgraçados” exauridos, deixei umas gotas no cantil para molhar os lábios e assim enganar a sede.

Chego ao aquartelamento com as ideias em farrapos, náufrago daquela “tempestade”, já não sou o mesmo de ontem, já não somos os mesmos de ontem e já somos menos que antes, faltam-nos cinco camaradas. Saio, moro fora do quartel. As pernas arrastam-se a caminho de casa. Nem entro, estiro-me ao comprido no quintal, à sombra duma laranjeira … …

Já toda a gente sabia dos mortos e feridos. É dada a notícia de que o nosso “enfermeiro” Zé Maria chegou morto ao hospital. Há lamentos, lágrimas, imprecações, conversas cruzadas a contar o sucedido a quem tinha ficado no quartel. O 1.º Sargento da Companhia chora ao contar como se tinha revoltado com a atitude de “Bissau” que o tinha admoestado pelo facto de terem recebido um morto não identificado e pedindo-lhe que enviasse a respetivos elementos identificadores, ameaçando-o se o não fizesse de imediato. (Referia-se ao caso do “Chaves”. É óbvio que a sua placa identificadora não foi enviada porque tinha desaparecido. Mas que dizer de quem “exigia!” o que alguém traria ao pescoço quando o corpo foi “pulverizado”, só se encontrando a cabeça?!)

Procuro desanuviar, deitado debaixo da laranjeira. Tento encontrar, entre as folhas duma goiabeira próxima, um camaleão que por ali costuma andar à caça. É um jogo que costumo fazer, conseguir descobri-lo “desmascarando” a sua camuflagem. Mas desta vez desisto porque, inesperadamente, me dissolvo no Agnus Dei (o do “Requiem” de Verdi) que me atinge o cérebro num espasmo de angústia e de desamparo resultante do ambiente de pesar que invadiu aquela casa. Momento tão violento que nunca mais foi esquecido, até hoje. Sempre que oiço este trecho musical me lembro da madrugada e da manhã daquele dia cinco de janeiro de 1966. E é em memória desses meus camaradas e em memória de todos os outros mártires daquela guerra que, mesmo sendo agnóstico, aqui recordo o “Agnus Dei”:

- Agnus Dei qui tollis peccata mundi, miserere nobis!
 -Agnus Dei qui tollis peccata mundi, dona nobis pacem!
(Cordeiro de Deus que tiras os pecados do mundo, tem piedade de nós!
Cordeiro de Deus que tiras os pecados do mundo, dá-nos a paz!).

E nós, os sobreviventes, por aqui andaremos durante mais algum tempo. Com sorte algumas das nossas memórias sobreviverão por tempos mais ou menos longos. Seremos “eternos” enquanto alguém se lembrar de nós.

A vida continuará, os meninos continuarão a rir, a cantar e a chorar, continuará a haver amor e morte, lágrimas e sorrisos, outros “soldadinhos” continuarão a ser joguetes de forças que não entendem, a natureza continuará a renovar-se ao sabor dos tempos, os nossos rostos continuarão a ser esculpidos pelo tempo até se dissolverem, com as suas memórias, no Tempo eterno e no Espaço infinito.

Para os não crentes na Divindade, a sua “imortalidade” está nos seus descendentes, na certeza de que a morte é condição para se manter a Vida.
Para os crentes haverá sempre a esperança num “Agnus Dei”, num “Miserere” para enfrentarem o “Dies Irae”, o Juízo Final.

Entretanto… procuremos, TODOS, ser felizes!
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10001: Memórias de Manuel Joaquim (6): Um acidente epistolar: "Furriel Mil Paulo Gabriel Péri Éluard"

Guiné 63/74 - P10104: O Nosso Livro de Visitas (140): António Rés Borié, ex-1º cabo cripto, Cmd Agr nº 16, Mansoa, 1964/66, camarada da diáspora, vive na Florida, EUA, e procura camaradas do seu tempo


1. Mensagem do nosso leitor (e camarada) António Rés Borié, que vive nos EUA:

De: António Borié [tonisaborie@gmail.com]

Data: segunda-feira, 2 de Julho de 2012 13:52

Assunto: Comando de Agrupamento nº 16, Mansoa, Guiné, 1964/66


Caro camarada, Luis Graça:

Não calcula como fiquei comovido, por saber alguém com coragem, que fez vir ao de cima milhares de vozes de camaradas que passaram por essa guerra colonial do então ultramar português, que nos marcou para o resto das nossas vidas. 


Eu,  António, mais conhecido na guerra, no meu aquartelamento, por "O Cifra", pois era primeiro cabo cifra, fui mobilizado para a província da Guiné, no ano de 1964 onde permaneci até 1966. 

Durante a minha estadia na então provincia, andei por diversas zonas onde a guerra se começava a desenrolar, mas estacionei a maior parte do tempo na vila de Mansoa, onde iniciamos a construção do aquartelamento, que seria no futuro um forte posto avançado, para o interior da província. 

Agora com 70 anos de idade, uma das razões que me faz sobreviver, são as recordações, dessa guerra maldita, onde deixei um dos meus melhores amigos, e que me marcou para o resto dos meus dias. 

Tenho um livro escrito, mas ainda não publicado, onde conto alguns pormenores dessa guerra, que no tempo em que estive na província, estava a começar, e por isso era traiçoeira e imprevista, e nós sem muita preparação, e sem medicamentos de primeira necessidade, sofríamos emboscadas, e algumas vezes mortes, que mais tarde creio que seriam evitadas. 

Gostaria de saber se ainda existem camaradas vivos, que fizeram parte do Agrupamento 16, que esteve na Guiné de 1964 a 1966 em Mansoa. Mais uma vez o felicito pela sua coragem, e com todo o respeito, sou António Rés Borié, estou a viver os meus últimos anos de vida na Florida, nos Estados Unidos, o meu email é: tonisaborie@gmail.com, para onde me pode contactar, se o desejar.


Bem haja.





Blogue do camarada João Valentim, algarvio de Olhão, ex-casapiano, ex-1º cabo escriturário da CCS/BART 645, Mansoa, 1964/66. Este blogue merece uma visita mais demorada... De qualquer modo, trata-se de um contemporãneo do António Borié. Será que ele é capaz de o reconhecer, à distância de quase 50 anos ? O João Valetim tem mais oito (8) blogues, além deste...




Guiné > Região do Oio > BART 645 (1964/66) > "As trazeiras da Igreja. Um dos poucos edifícios de pedra e cal e talvez o mais alto."






Guiné > Região do Oio > BART 645 (1964/66) > "Mansoa , 1965. O depósito de água dentro do quartel".


Fotos (e legendas): João Valentim (2009) (Com a devida vénia...)


2. Comentário do editor:

Querido camarada Tony (julgo que é assim que te tratam na Florida): Antes de mais, tenho que te bater a pala!...Para já. entre camaradas, tratamo-nos por tu, o que simplifica muita coisa... Por outro lado, a antiguidade,  aqui, no nosso blogue,  é apreciada e respeitada. Pouca gente do teu tempo (, comparativamente com os mais novos, os piras da 1ª metade de 1970...)  se sente afoita para aparecer por estas bandas, contando as suas histórias, as suas alegrias e as suas mágoas... 

Com 70 anos e a  viver na Florida, és um jovem! Nada de discursos derrotistas ou pessimistas. Espero que tenhas muita saúde, longa vida e os dólares suficientes para viveres a tua 4ª idade com dignidade e qualidade...


Fico orgulhoso de ti e da tua ousadia de escrever um livro sobre a tua experiência de guerra na Guiné, há meio século atrás... Ficas desde já convidado a integrar a nossa Tabanca Grande: como mandam as regras, basta-te mandar duas fotos digitalizadas, uma do teu tempo de tropa (pode ser de Mansoa) e outra atual, da Florida...  Se assim o entenderes, tens o lugar nº 564 à tua espera, debaixo do frondoso e fraterno poilão da nossa Tabanca Grande. Como vês, já somos mais do que um batalhão...

Manda-nos também um a pequena história passada lá na região do Oio... O facto de teres sido cripto também significa que tivestes acesso a informação outrora classificada... Há coisas que estás muito mais à vontade para partilhar hoje, com todos os teus camaradas, quer os do teu tempo (1964/66) quer os piras que fecharam a guerra... 



Infelizmente não encontro ninguém do teu Comando de Agrupamento nº 16... Mas sobre Mansoa temos mais de 250 referências... E, em contrapartida, encontrei, por aí, o João Valentim, que foi 1º cabo escriturário da CCS/BART 645, e que portanto esteve contigo em Mansoa, na mesma época. Dá uma espreitadela ao blogue dele, onde há muitas fotos dele, nessa época. Vê se te lembras dele e dos sítios...


Por certo que vamos encontrar gente que esteve nessa época contigo, embora pertencente a outras unidades... Ficas também à vontade para publicar, no nosso blogue, alguns excertos do teu livro. Seria uma honra para nós. E vais ter aqui os teus mais entusiastas e apaixonados leitores. Isso garanto-te eu. Já saíram daqui, no nosso blogue, diversos livros e aqui nascem bons e grandes escritores... Pensa nisso. Recebe um grande abraço. E até à próxima. LG


PS 1 - O Comando de Agrupamento nº 16 foi mobilizado pelo RI 1. Partiu para o TO da Guiné em 23 de maio de 1964 e regressou a 14 de maio de 1964. Nesse tempo cumpriam-se dois anos de comissão... Esteve em Bissau e em Mansoa. Foi seu comandante o cap inf José Augusto Henriques Monteiro Torres Pinto Soares.


PS 2 - Sobre o BART 645 (´"Águias Negras") temos mais de 20 referências no nosso blogue. Sabemos que o seu pessoal há mais de trinta anos.O mais ativo dos seus representantes no nosso blogue é o Rogério Cardoso (ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66).


Mobilizado pelo RI 1, o BART 645 partiu para a Guiné em 4 de março de 1964 e regressou a 9 de fevereiro de 1966. Esteve em Bissau e em Mansoa. Teve dois comandantes: ten cor art António Braamcamp Sobral, e maj art Raul Pereira Baptista. Subunidades de quadrícula: CART 642 (Mansoa, Mansabá, Bissau(, CART 643 (Mansabá, Bissorã, Bissau) e CART 644 (Mansabá, Mansoa).
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Nota do editor:


Último poste da série > 15 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10034: O Nosso Livro de Visitas (139): Investigação sobre Guiledje (TCorEng José Berger)

Guiné 63/74 - P10103: Patronos e Padroeiros (José Martins) (31): Patrono do Instituto de Odivelas - Infante D. Afonso de Bragança




1. Em mensagem do dia 27 de Junho de 2012, o nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), enviou-nos mais um trabalho para a série Patronos e Padroeiros.






Patronos e Padroeiros XXXI

Patrono do Instituto de Odivelas


Busto de D. Afonso de Bragança, no Instituto de Odivelas
© Foto José Martins - 14 de Dezembro de 29011


Infante D. Afonso de Bragança

Filho de D. Luís I, 33.º monarca português, e de sua mulher D. Maria Pia de Sabóia, princesa da Sardenha, nasce na Ajuda, em Lisboa, a 31 de Julho de 1865, o Infante D. Afonso a quem, segundo a tradição, foram atribuídos vinte e um nomes próprios, seguidos dos nomes de família: Afonso Henriques Maria Luís Pedro de Alcântara Carlos Humberto Amadeu Fernando António Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Francisco de Assis João Augusto Júlio Valfando Inácio de Saxe-Coburgo-Gota e Bragança.

Como filho segundo do rei, seguia-se, na ordem de sucessão, ao príncipe herdeiro, pelo que tinha o tratamento de Alteza Real (S.A.R.) e direito aos uso dos títulos subsidiários de Duque de Bragança, Duque de Guimarães e Duque de Barcelos, Marquês de Vila Viçosa, Conde de Arraiolos, Conde de Ourém, Conde de Barcelos, Conde de Faria, Conde de Neiva e Conde de Guimarães.

Foi Condestável de Portugal, desde o nascimento até à queda da monarquia em Outubro de 1910: Duque do Porto, desde 1889 até à data da sua morte; Vice-Rei da Índia no final do ano de 1895, quando comandou o Corpo Expedicionário do Reino, onde em conjunto com as forças da guarnição da Índia e um contingente de marinheiros do cruzador Vasco da Gama, tendo comandado e dirigido várias operações para apaziguar aquele território, até ao regresso ao reino em finais de 1896.

Foi General de Divisão do Exército, Inspector-Geral da Arma de Artilharia e Comandante Honorário dos Bombeiros Voluntários da Ajuda.

Para poder proporcionar às filhas dos oficiais, que tivessem morrido em combate ou por doença, fundou, em 14 de Janeiro de 1900, no palácio do Conde de Sobral, à Luz, um colégio que foi inaugurado com a presença do rei e da família real, começando a funcionar com 17 alunas.

Com o regicídio de 1 de Fevereiro de 1908, em que perderam a vida o Rei D. Carlos e o Príncipe D. Luís Filipe, a 6 de Maio de 1908, com a aclamação do novo rei D. Manuel II, é jurado, novamente herdeiro presuntivo da coroa portuguesa, que se manteve até ao exílio em Pisa (Itália), aquando da implantação da Republica.

Casou com Nevada Stoody Hayes, cidadã americana, em Madrid no ano de 1917, de cujo casamento não houve descendentes.

Faleceu a 21 de Fevereiro 1920, em Nápoles, Itália, tendo sido trasladado em 1921 para o Panteão dos Bragança em S. Vicente de Fora.


Instituto de Odivelas



Medalha de Ouro do Instituto de Odivelas
Foto: © http://www.institutodivelas.com/medalha-ouro.html

Fundado em 14 de Janeiro de 1900, dando corpo ao desejo de um grupo de elementos das Forças Armadas, com o nome de Instituto D. Afonso, foi inicialmente instalado no palácio de Conde de Sobral, à Luz.

Tendo por modelo as Escolas da “Légion d’Honneur” fundadas em 1806 por Napoleão, com o objectivo de proporcionar às filhas dos oficiais que tivessem morrido em combate, ou por doença, uma educação condigna.

Em 1902 é transferido para o Convento Cisterciense de São Dinis e São Bernardo, em Odivelas, privilegiando cursos cuja formação permitisse a entrada no mundo do trabalho, não descurando a cultura geral das alunas.

Tomando a designação de Instituto de Torre e Espada, em 6 de Novembro de 1910, vê, em 25 de Maio de 1911, o seu nome alterado para Instituto Feminino de Educação e Trabalho, assim como o seu plano de estudos.

Em 1942 passa a designar-se por Instituto de Odivelas e é tutelado pelo Ministério da Defesa Nacional.

Tem como divisa “DUC IN ALTUM” (Cada vez mais alto)

José Marcelino Martins
25 de Junho de 2012
josesmmartins@sapo.pt
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10089: Patronos e Padroeiros (José Martins) (30): Brigada de Intervenção - Infante D. Pedro, 1.º Duque de Coimbra

Guiné 63/774 - P10102: Ser solidário (131): Semana Cultural Guineense. na Escola Fontes Pereira de Melo, Porto, de 2 a 7 de julho de 2012 (Sofia Santos)




1. Mensagem da nossa amiga e leitora Sofia Santos:


Sofia Santos [ sofsrs@hotmail.com }
Data: 2 de Julho de 2012 15:16
Assunto: Hoje, Documentário "42.195km" - 21h30, Escola Fontes Pereira de Melo, Porto


No âmbito da semana cultural guineense que a ACGB [, Associação de Cooperação com a Guiné-Bissau,]está a organizar, hoje haverá a visualização do documentário "42.195Km", seguido de debate. .


A projecção do documentário começa às 21h30,  na escola Fontes Pereira de Melo, no Porto.


Convite:


A Associação de Cooperação com a Guiné-Bissau [ACGB] tem o prazer de convidá-lo(a) para a Semana Cultural Guineense, que decorrerá de 2 a 7 Julho na Escola Fontes Pereira de Melo [, Rua O Primeiro de Janeiro, Porto].


PROGRAMA
02.07, 2ª feira | 21h30 | Documentário “42.195Km”,  de Júlio Alves
Valor Entrada | 3.50€

04.07, 4ª feira | 21h00 | Tertúlia Literária e Prova Gastronómica, com a presença do Prof. José Luis [Carvalhido] da Ponte, Presidente da ACGB, e da Associação de Guineenses do Porto[, e membro de longa data da nossa Tabanca Grande].
Entrada Livre | Traga merenda e literatura guineense

06.07, 6ª feira | 21h30 | Peça de Teatro “ Mãe Guiné” AG-P
Valor Entrada | 3.50€

07.07, sábado| 9h00 | Torneio de Futebol
Valor Inscrição | 20€ por equipa (inscrição obrigatória até 29 de Junho)

O valor angariado durante a semana cultural reverte a favor dos projectos a implementar pela ACGB em Cacheu.

APOIOS
Escola Fontes Pereira de Melo
Associação de Guineenses do Porto

Mais informações
acgb.porto@gmail.com





2. No passado dia 15 de junho, tínhamos recebido o seguinte pedido de colaboração:


Caro Dr. Luis Graça


Sou aluna de doutoramento e amiga de Laura Fonseca, que me desafiou a contactá-lo no âmbito de um projecto que estou a desenvolver na Guiné-Bissau.Enquanto voluntária da Associação de Cooperação com a Guiné-Bissau, desenvolvi, juntamente com 2 colegas o projecto educativo EPPI que visa desenvolver formação com professores e área da saúde em determinadas áreas consideradas prioritárias na zona de Cacheu.


Sendo nós uma associação muito pequena com poucos recursos temos desenvolvido várias acções de angariação de fundos que suportem a deslocação da missão. Nesse âmbito, estamos a organizar uma semana cultural dedicada a Guiné-bissau (2 a 7 de Julho) com diversas actividades (teatro, tertulia, filme documentario, torneio de futebol) no sentido de abranger diversos públicos. Após conversa com a Laura Fonseca e pesquisar o seu blogue dos Camaradas de Guiné, gostaria de saber se seria possível contar com a sua presença ou que indicasse alguém também ligado a expêriencias na Guiné-Bissau que participasse ou no filme documentário ou na tertúlia que visa focar a literatura guineense. Como vi no blogue que estava ligado a poesia seria óptimo se pudesse participar na tertúlia.


Como sei que mora em Lisboa e toda esta semana se vai realizar no Porto, se puder pelo menos encaminhar-nos para alguém do seu blogue, ficariamos muitos gratas. Vou enviar um email com o cartaz da semana cultural.Desde já agradeço a atenção. (...)




3. Comentário de L.G.:


(...) Muito obrigado por me ter contactado. Estive em Angola, em trabalho, de 18 a 23 de junho p.p., e estou agora a responder aos mails atrasados. Louvo a sua iniciativa. Por razões profissionais, não poderei deslocar-me nessa data,  aí ao Porto. Mas terei todo o gosto em mandar-lhe (ou disponibilizar~lhe) alguns poemas meus, de temática guineense, para sua apreciação, com a autorização para serem divulgados e/ou ditos...


Temos, em Matosinhos, uma "delegação" do nosso blogue e da nossa Tabanca Grande: a Tabanca de Matosinhos [, cuja página está de momento com alguns problemas informáticos...]. O Álvaro Basto e o José Teixeira são dois camaradas meus que conhecem bem e amam por demais aquela terra e aquelas gentes. Vou dar-lhes conhecimento do seu pedido, bem como ao meu querido amigo e co-editor Carlos Vinhal. Eles irão por certo fazer o seu melhor para ajudá-la nesta louvável iniciativa. São, aliás, pessoas muito experientes na organização de eventos com objetivos de solidariedade para a Guiné. Os meus melhores cumprimentos para si e a Laura. A Laura conhece o Zé Teixeira de longa data. (...)

PS - Vai daqui também um afetuoso Alfa Bravo [ABraço] para o nosso camarada J. L. Carvalhido da Ponte, e votos de bom sucessos para os projetos solidários da ACGB.

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Último poste da série > 7 de junho de 2012 >  Guiné 63/74 - P10011: Ser solidário (130): Mensagem do Pepito, em nome pessoal e do pessoal da AD: Temos o dever moral de não vos defraudar... e prometemos continuar a luta

Guiné 63/74 - P10101: Notas de leitura (376): "Aviltados e Traídos - Resposta a Costa Gomes", por Mello Machado (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 15 de Maio de 2012:

Queridos amigos,
Foi graças ao confrade Duarte Azevedo que tive acesso a este livro do coronel Mello Machado.
Trata-se de um libelo acusatório à descolonização, há que ponderar os seus argumentos e os factos históricos recentes que ele desconhecia quanto à situação da Guiné, a sua comissão foi entre Fevereiro de 1969 e Dezembro de 1970. O levantamento dos factos político-militares já se encontra bem caracterizado até 25 de Abril de 1974, como recentemente se tem visto no blogue ainda há muita coisa a cruzar entre os relatórios e a vivências das unidades militares durante todo o período de transição para a independência.
Mais uma iniciativa a que o blogue se pode afoitar.

Um abraço do
Mário


Aviltados e traídos 

Beja Santos

O coronel Mello Machado (1928 – 2012) que foi comandante do BART 2865 entre Fevereiro de 1969 e Dezembro de 1970, no sudoeste da Guiné, escreveu em 1977 o livro “Aviltados e Traídos – Resposta a Costa Gomes” (Literal, 1977). Trata-se de um libelo acusatório contra o antigo Presidente da República, destaca frases de Costa Gomes durante o período da guerra e vem a terreiro queixar-se da traição da descolonização. Alega a sua experiência nos teatros de guerra, conheceu as três frentes, como escreve: “Por destino e profissão, cruzei os sertões distantes, vivi no seio das gentes dos territórios africanos atingidos pela guerra. Por ordem cronológica, primeiro Moçambique, depois Guiné, finalmente Angola. Evacuado da frente de campanha em meados de 1973, é longa a minha experiência”.

Vem juntar a sua voz àqueles que “arrastam entre nós o desespero do labor perdido, do sonho destruído, da fazenda espoliada, dos bens que viram roubados”. E procede a uma incursão pelos diferentes territórios. Como aqui só se fala da Guiné, vejamos os seus argumentos, depois de descrever os elementos geográficos mais pertinentes: “A guerrilha raras vezes aceitou combate. Subtraindo-se a qualquer contacto, preferia atuar por ações maciças de fogo, com armas de longo alcance sobre as guarnições militares ou povoados nativos indefesos, sem qualquer discriminação. Furtou-se sempre ao combate a peito descoberto, e quando o fez sofreu desaire, apesar do melhor armamento que dispunha. Muitas das flagelações por meio de armas pesadas eram desferidas a partir de bases em território vizinho. As guarnições de fronteira foram, de longe, as mais sacrificadas. Compreende-se que a solução da guerra não se encontrasse dentro dos acanhados limites da pequena parcela nacional (…) Exerci comando sobre guarnições todas elas implantadas em zona libertada. Indique as guarnições: Catió, Cufar, Bedanda, Cabedú, Cacine, Cameconde, Gadamael, Guileje, Ganturé. Nesta porção de território havia povoações nativas isoladas que se organizaram em autodefesa: Ilhéu de Infanda, Mato-Farroba, mais tarde Cameconde e Caboxanque. Tropas regulares e milícias, irradiando desta dúzia de localidades, patrulhavam as matas e asseguravam a proteção dos povoados nativos”.

Confessa o seu pasmo quando em Lisboa lhe mostraram estes aquartelamentos dentro do chamado “território libertado”. Porque não houve sufrágio para decidir, depois de 25 de Abril de 1974, de que lado queria ficar toda aquela população guineense. A guerra não estaria ganha dados os condicionalismos que descreve, mas admite que houvesse revolução em Angola e Moçambique chegaria a paz à Guiné.

Faz um breve excurso sobre o mosaico étnico para também concluir nem de perto nem de longe o PAIGC representava as aspirações dos povos da Guiné. E termina com uma poderosa catilinária: “Perverteu-se a disciplina militar; louvou-se a cobardia; instalou-se a desordem nos quartéis; contestou-se a hierarquia; comandos dos mais qualificados foram afastados das tropas que lhes votavam obediência e lealdade… A capitulação iniciou-se com o abandono da Guiné. As populações nem sequer foram consultadas. É certo que não mostravam disposição para aderir ao movimento libertador. Razões tinham para isso, lembradas dos martírios e violências até então sofridas. Talvez por isso malogrou-se a conferência de paz que reuniu em Londres representantes da soberania portuguesa com delegados do PAIGC. Nas guarnições militares daquele território assistiu-se à substituição de comandos; as tropas foram industriadas numa nova missão para que não estavam habilitadas – não deveriam combater! A televisão ajudou, bem como a imprensa, fazendo a apologia do PAIGC como legitimo representante da vontade dos guinéus. Chefiado por cabo-verdianos, não estaria lá muito bem identificado com os guinéus”.

São estas, no essencial, as referências à descolonização da Guiné. É do senso comum que as recordações de guerra que retemos têm uma data, o coronel Mello Machado teve a sua comissão na Guiné nos anos 1969 e 1970. Não fala de tudo quanto aconteceu depois, nomeadamente dos episódios críticos de 1973. Não há, nem podia haver, pois não estava no domínio público, uma só referência à reunião de Londres, de Março de 1974, entre um emissário de Marcello Caetano e uma comitiva do PAIGC, as ordens do diplomata eram para negociar um cessar-fogo e depois encetarem-se negociações para a independência da Guiné. Não há, nem podia haver, só recentemente é que se procedeu à divulgação do que seria o dispositivo aprovado para a manobra, negociado por Costa Gomes e Spínola, como Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes escreveram: “A manobra proposta foi uma ação retardadora em profundidade para ganhar tempo e consolidar um reduto final que in extremis, ainda possa permitir a solução política do conflito. Para a constituição desse reduto eram considerados pontos-chave a manter a todo o custo: Aldeia Formosa, Cufar, Catió, Farim, Nova Lamego, Bafatá, a Ilha de Bissau associada às regiões de Bula e Mansoa. A situação aconselhava a um retraimento do dispositivo militar português que devia ficar com todas as unidades aquém da linha geral Rio Cacheu – Farim – Fajonquito – Paunca – Nova Lamego – Aldeia Formosa – Catió, para evitar o aniquilamento das guarnições de fronteira. Foi este novo dispositivo que Spínola e Costa Gomes acordaram em 8 de Junho de 1973. Esta solução de último recurso tem sido apresentada como prova de que no seu regresso a Lisboa Costa Gomes considerou a situação da Guiné como controlada e que o território era defensável quando era, como hoje se sabe, a única viável das três que lhe foram apresentadas por Spínola no memorando do comando-chefe: redução da área a defender; conservação do atual dispositivo sem qualquer reforço, à luz de um espírito de defesa a todo o custo; reforço do teatro de operações em ordem a manter a superioridade do inimigo. O general Costa Gomes emitiu a opinião de que, perante a impossibilidade de dotar a Província com os meios necessários à sua defesa, a única alternativa seria a de um retraimento do dispositivo com o abandono de largas áreas do território ao longo da fronteira. Esta solução é a clara admissão de que as forças portuguesas abdicavam da posse de boa parte do território da Guiné e das suas populações para concentrarem num reduto central. A soberania portuguesa seria assim apenas formal e enquanto pudesse sê-lo porque, a partir da declaração de independência que o PAIGC veio a fazer em Setembro, e logo reconhecida por 88 países, este reduto seria sujeito a ataques que poderiam contar com forças regulares de países africanos e que teriam justificação face ao direito internacional, pois Portugal já era considerado pelas Nações Unidas ocupante ilegal do território. O reduto central seria militarmente e politicamente cada vez mais indefensável. Com a adoção de uma estratégia deste tipo, o governo português sujeitava as Forças Armadas a uma derrota humilhante e o país a uma situação de vexame internacional”.

As queixas de traição, como é sabido, vêm de longa data e tendem a perpetuar-se, independentemente de hoje se saber que não havia volta a dar no caso específico da Guiné, pelo menos. Aqui fica a recensão de “Aviltados e Traídos” a juntar a outros documentos como “Vitória Traída” e “Em Defesa da Pátria”.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10097: Notas de leitura (375): Prefácio de † Joaquim Evónio de Vasconvelos ao livro de Manuel Bernardo "Marcello e Spínola: a ruptura: as Forças Armadas e a Imprensa na queda do Estado Novo (1973-74)" (Lisboa, 1ª ed,, 1994)

domingo, 1 de julho de 2012

Guiné 63/74 – P10100: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (19): A Serração de Joboiá - a destruição de um mito

1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 25 de Junho de 2012:

Caros Luís Graça e Vinhal, sem esquecer o meu grande amigo M. Ribeiro:
Recebam as maiores felicitações e mais uma folha “arrancada” das minhas memórias.

Rui Silva



Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”

A SERRAÇÃO DE JOBOIÁ – A destruição de um mito

16 de Dezembro de 1965

Julgo que toda a Companhia ou Grupo militar operacional, tinha, em menor ou maior grau, o seu “calcanhar de Aquiles” na guerra, isto é, algo que a estigmatizou em dado momento, através de um grande revés ou infelicidade, (refiro-me principalmente de mortos em combate ou de fortemente estropiados) na estrada, no mato, no aquartelamento, ali ou acolá, e que a marcou. A 816 não era exceção. Passar depois por esse mesmo sítio havia sempre um nervoso miudinho na malta.

A 643 dos Águias Negras (grande Companhia operacional) em Bissorã e a 566 (não menos grande Companhia) no Olossato, para falar das Companhias com que tivemos o privilégio de atuar, muitas vezes em conjunto, pareciam também ter o seu.

A 643 falava muito na “carreira de tiro”, um percurso em balcada com uma centena de metros, na estrada de Bissorã para Olossato antes de Maqué e do grande poilão.

A 566, no dizer de alguns dos seus operacionais, preferia uma operação a Morés do que entrar na estrada (então interdita) que ligava Olossato a Farim.

No entanto, não esqueço aquele Cabo da 566 que de Dryse na mão, em cima do capot do motor de uma GMC, a peito descoberto, ajudou a resolver uma grande e violenta emboscada feita a toda a Companhia 816, naquela estrada, que entretanto tinha pedido ajuda no Olossato, pois as munições estavam a acabar à coluna da 816 no célebre e traumatizante dia 1 de Agosto de 1965. Começamos aos tiros de manhã cedo e até ao princípio da noite e já depois de os dois T6 nos deixarem, por razões óbvias (obscuridade e já falta de bombas), de operar.

A serração de que falo ficava a poucos quilómetros de Olossato na estrada para Farim (e K3) mais propriamente em Joboiá, metida um pouco dentro no mato e do lado esquerdo.

Era um dos santuários do inimigo ali no Oio. A 566 tivera ali um revés que os marcou.

Até que um dia chegou a ordem de alinharmos para destruirmos a famigerada Serração de Joboiá, a célebre serração, ou melhor, o que restava do que outrora foi uma serração e isto não passava apenas das paredes ao alto (o que bastava para o IN se emboscar e era tido como um ponto de encontro) e dos caibros da armação que outrora sustentava o telhado. A serração de Joboiá distava do Olossato cerca de 4 a 5 quilómetros na estrada para Farim. Ficava isolada e longe de qualquer meio povoado. Olossato era o mais próximo, porventura. A “casa-de-mato” de Cansambo não muito longe dali também.

Chamo-lhe de célebre pois muito cedo começamos a ouvir falar dela. Logo que se falava de Olossato falava-se fatalmente da serração e de uma maneira temível e então esta tinha as suas histórias de guerra para contar. Ao que se sabia, os terroristas aproveitavam-se das suas ruínas, ou melhor das paredes, para fazerem emboscadas, assim bem abrigados e num ponto bem estratégico. Ali, naquele sítio, uma emboscada era uma constante sempre que a tropa passasse na estrada de Farim, estrada que distava da serração aí a uns 40 metros.

Lembro que esta estrada no meu tempo era dada como interdita a colunas auto.

O acesso a Farim era feito pela estrada que vinha de Mansabá até ao K3 onde entroncava com a estrada Olossato-Farim e, principalmente, pela via fluvial, através do Cacheu.

Assim, sempre que passávamos ao lado da serração havia o receio de eles estarem por ali.

Então o Capitão resolveu acabar com aquilo, o que, e no dizer dele, era mais um mito que outra coisa, o que nós concordamos.

O dispositivo para tal operação foi, prévia e obviamente, muito bem concebido pelo Cap. Riquito.

A foto na Serração (houve tempo para uma foto de circunstância): Pessoal da 816 que colaborou na destruição da serração de Joboiá – Veem-se em pé: o Alferes Costa (com a G3 à caçador), Furriéis Rui (eu com a mão no cinto) e Coelho; Flores, Alferes Esteves (de capacete) e o “Pelé”; e em baixo o Clarimundo simulando carregar o morteiro e o “Chaves” com a sua “bazooka” a “fazer foto” da estrada Farim-Olossato. Do lado direito pode-se ver ainda parte da estrutura da serração.

Cerca das 3 horas da madrugada sai então do aquartelamento o 1.º Grupo de combate comandado pelo Alferes Costa, na ausência do Alferes Barros o titular daquele Grupo. A missão deste Grupo é fazer um reconhecimento e instalar-se em redor da serração, em dispositivo de segurança, de forma que, já pelo alvorecer, a chegada do meu Grupo de combate àquele sítio e mais tarde o grupo das viaturas seja feito a coberto de qualquer surpresa, pois, uma vez já ali instalado o 1.º Grupo, não seríamos surpreendidos pelo inimigo, que podia muito bem já estar ali acoitado. Portanto, quer dizer, o 1.º Grupo assegurava a não presença inimiga ali na altura que nós chegássemos pela alvorada, e mantinha a segurança ao 3.º GC (o meu Grupo) que com o material adequado procedia à completa destruição do que ainda então restava da antiga serração. Mas, logo no começo da operação, traçou o destino, ia haver contacto com o inimigo. Assisti ao partir do 1.º Grupo de Combate, que, silenciosa e cuidadosamente, saiu em fila indiana, e como já se disse, à volta da 3 da madrugada, rumo ao objetivo. Primeiro eles iam por a estrada até à ponte do rio Olossato - o costume - que ficava a cerca de um quilómetro do Quartel, e, ultrapassada a ponte, meter-se-iam então pelo mato, para melhor segurança na progressão e evitarem serem detetados.

Quando os últimos homens da coluna estavam a sair do aquartelamento contornando o cavalo-de-frisa na saída para a estrada para Farim, e como já era um pouco tarde e eu tinha que me levantar cedo, fui-me deitar. Quando me aprestava para adormecer, e já todos nós deitados, eis que ecoa um metralhar contínuo e forte que mais forte parecia no silêncio da noite. Uma rajada breve. Parecia fogo de uma metralhadora pesada. “É nosso?” “É deles?” - interrogamo-nos, surpresos. Era eles com certeza; naquela altura já tínhamos o ouvido bem sintonizado para o tipo de estampido e a sua cor. Era ali perto, pelo nítido ouvir da metralhadora e a julgar por só terem passados breves minutos após a saída do Grupo. Como que impelidos pela mesma mola logo saltamos da cama e procuramos saber o que se passava. Tinha sido ali pertinho, precisamente logo ao sair da ponte e à entrada para o mato. “Foram eles, e parece que há feridos” - alguém disse apavoradamente. Estranhamos como aconteceu já ali perto e para mais saídos de surpresa (?) como era habitual. Logo o Capitão e dois soldados armados se introduziram num ”jeep” e para lá se deslocaram ao saber-se pelo rádio do local exato e de que haviam feridos. Pouco tempo depois regressa o “Jeep” rumo à Enfermaria e então constatou-se ter sido o Andrade atingido com um tiro numa coxa. O preto Seidi tinha levado também um tiro que lhe esfacelou um dedo dum pé. Os feridos, claro, ficaram no quartel, mas o Grupo continuou para o objetivo: Garantir a segurança em redor da serração, para o outro Grupo, que iria chegar pelo alvorecer, para proceder ao seu desmantelamento.

Viemos a saber que os tiros de metralhadora e ao que parecia ser pesada, tinham sido feitos por presumíveis sentinelas que o inimigo tinha ali instalado em permanente vigilância à tropa do Olossato. Porém, estes sentinelas, com certeza que só à noite ali estavam, pois era também sempre de noite que nós saíamos para operações de “Golpes-de-mão” e não só. As sentinelas descarregaram então o que puderam e logo fugiram através do emaranhado do mato e a coberto da escuridão. Acontecia muitas vezes isto: sentinela detetado, despejar a arma e fugir. O alarido dos tiros avisava o seu grupo e podia ainda sobrar alguma coisa. Não seriam mais que dois, como alguém bem perto da cena calculou. Do pelotão nem chegou a haver reação. Apanhados de surpresa, em plena escuridão da noite e praticamente à porta de casa, limitaram-se a deitarem-se para o chão e como ficaram aos magotes, ninguém respondeu ao fogo inimigo até com o receio de se ferirem uns aos outros. A coisa foi também muito rápida pois eles fizeram a rajada e debandaram logo. “Só se via a chama à boca da metralhadora” -  alguém acrescentou depois. “Eles estavam atrás de uma árvore muito grossa” - alguém ajuntou também.

Como se nada tivesse acontecido, ou por outra, como o que aconteceu não era de modo a abortar a operação, esta prosseguiu como se impunha.

Pelo alvorecer já estava o meu Grupo a caminho da serração e de encontro ao 1.º Grupo. Uma vez ali chegados, logo se começou a trabalhar na destruição do esqueleto daquilo que outrora fora uma serração. Começou-se pela remoção dos caibros que sustinham o telhado que provavelmente teria existido, e depois, à picareta, as paredes também foram postas abaixo. Com o barulho das moto-serras, o bater das tábuas ao caírem, e outros inevitáveis barulhos, receávamos pela chegada do inimigo a qualquer momento, embora o dispositivo de segurança entretanto montado pelo 1.º Grupo desse tranquilidade aos que trabalhavam. Assim, havia um grupo empenhado na completa destruição da serração e outro metido no mato formando um anel em volta daquela e a olhar pela segurança do primeiro. Entretanto alguém aproveitou para bater um instantâneo para a posteridade, cuja foto se pode ver atrás. É isso (!), havia sempre quem andasse de máquina fotográfica no seio da guerra; quem não se lembra do saudoso camaradão do Sarrico?

Foram também chegando as viaturas e respetivas guarnições. As viaturas serviriam assim ao transporte da grande quantidade de tábuas resultante da destruição da serração.

As tábuas grandes e espessas fariam bastante jeito em diversas construções no quartel.

As viaturas ficaram na estrada, portanto a cerca de 40 metros da serração, distância esta já referenciada atrás. A serração que ficava do lado esquerdo da estrada de quem ia para o K3 e mais à frente Farim, estava bem metida no mato e apenas havia um carreiro a ligar a dita serração à estrada, o que não permitia o acesso às viaturas. O transporte das tábuas e caibros para as viaturas foi assim muito moroso, pois para além de serem muitas, eram pesadas também.

Houve depois também um vai-e-vem de viaturas para o quartel, até que tudo que tivesse préstimo fosse transportado. Depois, a Companhia, naquela altura já praticamente toda, rumou de regresso ao aquartelamento, metade apeada e outra metade aproveitando as viaturas. Tempos andados teríamos então uma surpresa, ou talvez não… o inimigo! Como tempo para isso não lhes faltou. Montaram uma emboscada a meio caminho Serração-Olossato.

Emboscada forte mas a que a 816 respondeu com a maior determinação.

Na altura a Companhia já denotava muita maturidade e muito calo e então a reação foi espontânea e em potência. O inimigo pôs-se em debandada e o regresso continuou sem mais problemas.

Interrogamo-nos só, como ali tinham passado tantas vezes viaturas isoladas, algumas só o condutor e com um ou outro atirador, aquando do vai-e-vem do transporte da madeira para o quartel, e eles não terem atuado. Imaginamos então que, inclusivamente, eles até com um simples tronco de árvore atravessado na estrada apanhavam à unha o condutor e o seu eventual acompanhante e depois também destruírem a viatura. Mas, ou não acreditavam em tamanha descontração, ou preferiram esperar pelo grosso da coluna, ou seja pelos 2 Grupos de combate, agora já reforçados e assim teriam “caça grossa”. Os condutores que por ali tinham passado um pouco antes até tremiam quando se lembravam do tal.

Mas, isso é o que poderia ter acontecido, mas que de facto não aconteceu. Assim era a filosofia do “segue em frente e não olhes para trás” que melhor se coadunava com quem convivia com a guerra. A Companhia regressou ao Olossato e o mito da Serração deixou de existir, pois esta foi completamente arrasada, e quando por lá passávamos depois, já ninguém se lembrava da Serração, que afinal deu muito que contar sobretudo aos homens da 566.

Houve momentos de satisfação por mais um obstáculo desimpedido: E o mito da serração de Joboiá foi destruído,… de todo.

Segue o extrato do relatório da operação em questão:


"Estrela": local aproximado da Serração (4 a 5Km do Olossato, na estrada para Farim, passando pelo K3)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 – P9887: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (18): O primeiro "ataque" a Bissorã

Guiné 63/74 - P10099: Blogpoesia (191): De Lisboa a Luanda, ou o puro azul do desejo (Luís Graça)

De Lisboa a Luanda: o puro azul do desejo  



Estavam lindos os jacarandás
quando deixei Lisboa
e o Tejo,
ao fundo.
Eram o puro azul do desejo,
o azul mais inebriante do mundo.
Para trás,
ficava o sulco de uma canoa
e o cheiro a alfazema de Alfama.
No teu quarto, de hotel barato, 

o sofá-cama desfeito
era um certo jeito de dizer adeus.
Um jeito tão português,
tão nosso,
o nosso fado, 
dirás.
Não posso falar da saudade 

de quem fica,
nem devo dizer do desejo de quem parte,
que o amor, na cidade,  

é ciência e é arte.
Subo aos céus,
em avião a jacto
que corta o planeta
em duas metades laranja
ao pôr do sol.
Nem sei se é amor,
de jure e de facto,
ou apenas sorte
o arco-iris da tua paleta
com que pinto Lisboa de jacarandás.
Mas que pode a imaginação do poeta,
quando o coração, mais forte,
pensa que manda ?
Eram os teus lábios
que em vão eu procurava
nas folhas das acácias vermelhas
com que imaginava,
coberta,
a ilha de Luanda…

Luís Graça

Junho de 2012: Portugal, Lisboa, Parque Eduardo VII:

Angola, Luanda, Ilha de Luanda, Clínica da Sagrada Esperança.
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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P10098: Blogues da nossa blogosfera (51): "Uma boa e rápida recuperação Meu Coronel", in Swedish Lapland to Key West (José Belo)

1. Mensagem do nosso camarada José Belo com data de hoje: 

Caríssimo. 
A http://swedishlaplandtokeywest.blogspot.com/ acaba de publicar um poste dedicado ao nosso Amigo "recuperante", Miguel Pessoa.
Um pouco de humor inocente ajuda sempre os... pacientes. 

Um grande abraço,
José Belo


2. Assim, não resistimos à tentação de reproduzir, com a devida vénia, este humorístico poste publicado no Blogue Swedish Lapland to Key West dedicado ao nosso sinistrado Coronel Pilav Miguel Pessoa que, num voo rasante, danificou um braço.

Não deixem de visitar a página que é bem bonita.

Uma boa e rápida recuperação Meu Coronel! 


O nosso Amigo (Jaktpilot-Överste M.P.) confortavelmente deitado, obrigando uma Camarada Militar, muito especial, a aguentar o peso do seu displicente banho de sol, enquanto fotografado para "Revistas de Sociedade". (Felizmente que, naqueles tempos *tão felizes*, o peso seria outro!)

É também claro na foto que, ao contrário dos "palmípedes" de outros Ramos, não bebia água da bolhanha, mas sim garrafas de champagne!... E isto por "dá cá aquela palha"... como um inofensivo foguete de romaria Balanta chamado Strella!...

É para evitar cenas destas que a Svenska Flygvapnet (Forca Aérea Sueca) se passeia nos seus JAS-39/Gripen procurando convencer a rapaziada Balanta a não usar novo foguetório nos festejos do regresso do NOSSO ÖVERSTE.



3. Notícias de Miguel Pessoa
Por CV 

Aproveito para dizer que falei "telemovelmente" na passada sexta-feira com o Miguel Pessoa que me disse estar bem, dentro dos condicionalismos impostos, e que provavelmente terá alta na próxima segunda-feira.

Desejamos-lhe um bom regresso a casa e uma total recuperação.
Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10090: Blogues da nossa blogosfera (50): A página do camarada Carlos Silva, "Guerra na Guiné 63/74" está de novo operacional

Guiné 63/74 - P10097: Notas de leitura (375): Prefácio de † Joaquim Evónio de Vasconvelos ao livro de Manuel Bernardo "Marcello e Spínola: a ruptura: as Forças Armadas e a Imprensa na queda do Estado Novo (1973-74)" (Lisboa, 1ª ed,, 1994)


"Marcello e Spínola: A ruptura", de Manuel A. Bernardo, 1ª ed., Lisboa, Editora Margem, 1994, 456 pp. Prefácio de † Joaquim Evónio de Vasconcelos, ex-cap Inf da CCAÇ 727 (1964/66) e da CCAÇ 2316 (1968/69).

Reproduzido, com a devida vénia, da página pessoal do Joaquim Evónio (1938-2012), Varanda das Estrelícias:


O desconhecimento do passado, recente ou remoto, nunca será bom conselheiro para quem pretenda compreender o presente e trilhar com segurança os caminhos do futuro.

Este livro, ao desvendar alguns eventos que ainda se podem considerar próximos no tempo, vem proporcionar elementos de informação significativos para a compreensão da conjuntura em que vivemos.

Só o contributo de muitas histórias, todavia, permitirá a explicação da verdadeira História, caracterizadora do espaço-tempo em apreciação, identificadora daquilo que é estável e permanente e não apenas passageiro ou efémero.

Do autor, Manuel Bernardo, poderá dizer-se que nunca conviveu directamente com o poder, embora tivesse estado bem posicionado para lhe avaliar as forças e as fraquezas.

Sempre Maquiavel e nunca Príncipe, quase vítima da voragem totalitária em 1974 e 75, desempenhou corajosamente a missão que se atribuiu de esclarecer a comunidade a que sente pertencer e assim publicou, em 1977, Os "Comandos" no Eixo da Revolução - Crise permanente do PREC.

O facto de estar em consciência seguro da sua verdade não impediria que se visse confrontado, entre outros dissabores, com uma acção no Tribunal e um processo disciplinar do foro militar.

A partir de fins de 1974 quando, atrabiliariamente mas sem sucesso, o quiseram estigmatizar, nunca mais descansou e, fazendo apelo ao seu dever para com todos nós, desencadeou uma notória acção pedagógica, veiculada por diversos periódicos e baseada na essência permanente e profunda das coisas, sublinhando com destemor as contradições emergentes de interesses marginais.

Campeão da perseverança, no desenvolvimento dum trabalho profícuo e rigoroso decidiu frequentar na Universidade Católica Portuguesa o Curso de Ciências da Informação, no âmbito do qual, como dissertação final, acaba de presentear-nos com esta lúcida peça informativa a que chamou "Marcello e Spínola: a Ruptura - As Forças Armadas e a Imprensa na queda do Estado Novo (1973-74)".

Para isso elegeu o período de dezasseis meses que antecedeu a queda do anterior regime perante o Golpe de Estado de 25 de Abril de 1974.

Embora se acredite que a História é linear e não cíclica, difícil é, todavia, resistir à tentação de estabelecer uma analogia entre o referido período e o que actualmente vivemos.

De acordo com a vox populi, o clientelismo e o nepotismo encontram-se agora tão instalados entre nós como estariam no fim do regime marcelista, configurando um modelo a que poderá aplicar-se, sem grande margem de erro, o epíteto de ditadura administrativa. A grande diferença reside, obviamente, na natureza democrática do regime de hoje e, por inerência, na liberdade de expressão, fomentadora e propiciadora de correntes de opinião.

E este livro pode ser considerado um autêntico elogio da liberdade de expressão.

Manuel Bernardo é dotado duma honestidade intelectual bem patente nesta obra. Por isso não se espere encontrar nem especulação nem apressados juízos de valor.

Temos perante nós o resultado duma pesquisa elaborada por um bom profissional, um repositório de factos a todos os títulos interessante.

A notícia é em si mesma um facto e tende a ser cada vez mais importante que o próprio facto que lhe esteve na origem.

O autor fez reflectir no seu trabalho os enquadramentos então vigentes, tanto a nível nacional como internacional.

Colocou em evidência os silêncios do poder e abordou a patologia da comunicação como autêntica doença de que padecia então o tecido social.

Para os que viveram aquela época (1973-74) trata-se duma saudável recordação, hoje mais esclarecida pelos acontecimentos posteriores; para os mais novos, o testemunho da importância da comunicação, que ora não lhes está vedada, como elemento fundamental para o posicionamento perante os factos e para o fortalecimento da capacidade de opção.

Múltiplas referências são feitas neste livro ao Ultramar, tema de fundo de muitos analistas, e às diversas formas de o conservar ou alienar.

Os militares sabiam, desde 1961, que a Guerra do Ultramar não se ganhava pela força das armas, mas também não ignoravam que se poderia perder de armas na mão.

Por outro lado, por mais que tenha sido conveniente, de modo diferencial conforme o sector considerado, que existia apenas uma guerra, facilita bastante a compreensão não escamotear que havia duas: uma subversiva e outra revolucionária.

E se uma fazia apelo ao romantismo da liberdade por via da libertação, encontrando ecos de legitimidade no espírito dos combatentes que se lhe contrapunham, a outra não passava duma componente da estratégia global e totalitária de luta entre os grandes blocos, sendo ainda de referir que um deles, inibido por tácticas de aparente defesa de valores, vai precisamente permitir a vitória do seu adversário e, por consequência, a destruição irreversível dos próprios valores a que dizia prestar homenagem.

A nível nacional, no campo da oposição, verificava-se uma diferença fundamental entre a plataforma da Ala Liberal, que pugnava pelo estabelecimento das liberdades democráticas como condição prévia para a resolução de todos os problemas do País, incluindo os ultramarinos, e a que viria a ser consagrada no III Congresso da Oposição Democrática, em 1973, em que a primeira prioridade era o fim da guerra, seguida da luta contra o capital monopolista e da conquista das liberdades democráticas.

Que modelo de democracia poderia emergir de uma e de outra era fácil de prever, especialmente à luz do conturbado advento das "independências" africanas.

Voltando às soluções que então se perfilavam, no período de 1973-74 que é objecto deste trabalho, sublinhe-se apenas que não é possível negociar sem dispor de graus de liberdade como sustentáculo da capacidade negocial.

Ao precipitarem-se os acontecimentos, acelerados pela má fé de uns e consentidos pela ingenuidade de outros, não só se inviabilizou a negociação como se criaram situações que ainda hoje perduram e têm, na base, o facto inegável de que foi traída a confiança dos povos ultramarinos que confiaram em nós.

Ao servir-nos factos até agora inéditos ou ao apresentar-nos um pacote informativo bem delineado, Manuel Bernardo vem contribuir para a compreensão de fenómenos até hoje inexplicáveis, ou mal explicados.

Este livro evidencia de forma clara e categórica a importância das ideias e da sua circulação na sociedade, designadamente numa altura em que as pessoas mais carentes delas se encontravam.

O autor perseguiu a verdade com denodo e sem obediências, sistematizou os resultados da sua pesquisa e disso nos dá conta.

Vamos ler.

Lisboa, 12 de Abril de 1994

Joaquim Evónio de Vasconcelos 
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Nota do editor:

Último poste da série > 29 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10088: Notas de leitura (374): Obra Escolhidas de Amílcar Cabral (2) (Mário Beja Santos)


Guiné 63/74 - P10096: Parabéns a você (444): Silvério Lobo, ex-Soldado Mec Auto da CCS/BCAÇ 3852 (Guiné, 1971/73)


Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10091: Parabéns a você (440): Manuel Maia, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610/72 (Guiné, 1972/74)