1. Em mensagem datada de 30 de Janeiro de 2013, o nosso camarada Armando Pires (ex-Fur Mil Enf.º da CCS/BCAÇ 2861,Bula e Bissorã, 1969/70) enviou-nos mais uma das suas histórias:
Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (5)
O dia em que a minha mala voou
A coluna estava pronta para se pôr em marcha.
À frente o rebenta minas, logo atrás uma das Panhard’s do EREC 2454, depois um Unimog com munições para o Óbus 14 e as restantes viaturas.
Eram seis camionetas civis que, vindas de Bissau, tinham sido cambadas, uma a uma, através do Rio Mansoa para João Landim e daí escoltadas até Bula, onde foi organizado o comboio militar que iria levar os reabastecimentos ao aquartelamento de Binar.
Além das Panhard’s, a da frente, outra colocada a meio e uma terceira a fechar a coluna, acrescia à segurança o 2º grupo de combate da CCAÇ 2466.
Cheguei-me à frente para tomar lugar no Unimog das munições. Fui para me sentar ao lado do condutor mas estava lá o Alfredo Miranda, soldado radiotelegrafista da minha CCS. Arrepiei caminho, mas ele, saltando da viatura, gritou-me:
- Ó Furriel, venha para aqui que eu vou lá atrás.
Seguiu-se, entre mim e ele, um jogo de cortesia, muito estranho para aquela hora da manhã e para aquelas circunstâncias, com o Miranda a querer dar-me o lugar e eu a dizer-lhe que não senhor, vai tu aí que lá atrás sento-me eu, a coluna presa, salvo seja, por tanta cerimónia, quando ele encontrou uma solução:
- Ó furriel Pires, então deixe ir aqui este nosso furriel que vem agora do hospital.
Sentei-me atrás, no chão do Unimog que ia sem taipais, com a chapa de matrícula a servir-me de apoio para os pés. Ao meu lado o Miranda e o Carlos Senra, também soldado radiotelegrafista da CCS. Dois homens do Norte, do Porto, com um sotaque daqueles nascidos e criados às portas do Bolhão.
Eram assim uma espécie de Roque e a Amiga. Sempre juntos.
Estiveram ambos em Binar, durante cerca de mês e meio, ao serviço da CCAÇ 2404, em substituição de dois radiotelegrafistas que tinham ido a consultas médicas em Bissau. Por lá fizeram e deixaram amizades, a tal ponto que sempre que havia uma coluna lá iam eles contribuir para o aumento das receitas do bar.
Iniciámos a nossa marcha e o Miranda explicou-me quem era o furriel a quem cedemos o lugar, lá à frente. Era um operacional da 2404 que fora ferido com estilhaços de um roquete, tinha sido evacuado para o Hospital Militar de Bissau e agora, que tivera alta, estava de regresso à sua unidade.
Contou-me ainda o Miranda que tinha saído com eles numa operação de segurança aos trabalhos de campinagem na estrada Binar, que deram voltas e mais voltas mas campinadores nem vê-los. Talvez porque… a única coisa que viram, ouviram e sentiram, foi a chuva de balas e de granadas que sobre eles choveram, vindas do lado do Choquemone. O tal furriel, que estava ali “mesmo à beira” do Miranda, foi atingido por vários estilhaços mas, felizmente, sem gravidade de maior.
Até se lamentou o Miranda que o rapaz era um dos “convocados” para a futebolada que, à tarde, iam ter lá em Binar.
Cabe aqui dizer que o Miranda era bom de bola. Um centro campista com peito para o que fosse preciso, com pés capazes de meter a bola onde fosse necessário. Ou não tivesse sido ele da escola do grande “salgueiral”, o Sport Comércio e Salgueiros de belas memórias.
O Carlos Senra, que ia ali ao lado, é que não era metido na conversa. Bola para ele, só se fosse daquelas de Berlim.
Íamos nestas divagações, passámos a mata dos cajueiros, acenei ao Teixeira, o meu soldado maqueiro que saíra, ainda noite, com três secções da 2466 que ali emboscaram, em segurança aos sapadores que foram picar a estrada, aproximávamo-nos daquela mata, à esquerda da estrada, onde já “cheirava” a Choquemone, quando pelo ar viajou até nós o som cavo da saída de uma morteirada.
Impulsionado pela travagem brusca do Unimog e pela acção que exerci com os pés na chapa de matrícula, voei sei lá que distância nem com que peso bati no chão.
De um lado e do outro, o fogo era intenso.
Chamaram por mim e eu procurei a minha mala de enfermeiro.
- A mala, porra? Onde é que está a mala?
- Qual mala, furriel? – era o Miranda a perguntar.
-A minha mala, merda. Tenho ali um ferido e não sei da mala.
- Furriel, está aqui – foi o Senra a descobri-la.
Mas a mala estava vazia. No descontrole do voo fui acompanhado pela mala. Pelo ar perdeu-se tudo o que lá ia dentro.
Então, o Miranda, o Senra e eu, naquela posição em que é mister dizer-se que foi como a Alemanha perdeu a guerra, começámos a procurar e a juntar frascos de soro e garrotes, “saiam daí, merda”, ligaduras e maços de algodão, e o fogo não parava nem de um lado nem do outro, ampolas de anticoagulantes e de narcóticos analgésicos, “saiam daí”, gritava a voz, mas o Miranda e o Senra não paravam de me ajudar a apanhar tesouras, pinças e o mais que eu precisava, porque tinha ali um ferido à minha espera.
Consta do relatório de operações que aquela emboscada durou trinta minutos. E todavia, do nosso lado apenas um ferido sem grande gravidade e um outro militar com um tornozelo de todo o tamanho.
Enquanto se “limpava” o terreno, o capitão Monge, do EREC 2454, que comandava a coluna, sugeriu que dada a pouca gravidade do ferido, e a relativa pouca distância a que estávamos de Bula, em vez de se perder mais tempo com a chamada de um heli para a evacuação, que eu levasse o ferido e o coxo a Bula, num Unimog, com uma Panhard a proteger.
Lá fui, e avisado pelo rádio o Machado, meu cabo enfermeiro, veio ao caminho, na ambulância, recolher os dois homens.
Eu voltei à coluna que já estava, de novo, a meter-se em marcha.
Mal chegados ao
canal da bazuca, tornámos a encher.
Ainda hoje não sei quem lhe deu o nome nem porque foi que lho deram.
O assim chamado
canal da bazuca, era um trilho aí com uns duzentos metros, ladeado de árvores, o que lhe dava um aspecto de túnel, que ido da estrada desembocava dentro da mata do Choquemone. Era, por assim dizer, o ponto de encontro com o IN.
Aqui voltámos a ter feridos. Dois, já com uma certa gravidade. Mas do lado do PAIGC as perdas foram grandes e uma delas de enorme significado.
Foi abatido o capitão Nhaga, chefe do 1º bigrupo do Choquemone, e feitos prisioneiros os dois homens que tentavam resgatar o corpo.
Desta vez não houve que sopesar circunstâncias.
Eu com os feridos num carro, o corpo do Nhaga e os dois prisioneiros noutro, regressámos a toda a velocidade para Bula.
À tarde, quando a coluna regressou de Binar, o Miranda passou pela enfermaria a cumprimentar-me:
- Então furriel, está tudo bem? Olhe que você teve uma sorte do caraças. Acabámos por embrulhar a terceira vez.
Não era preciso ele dizer-mo. Eu tinha sabido via rádio. Tinha sabido, sobretudo, que dessa vez não tivéramos baixas. Mas lá que foi uma manhã complicada, ai isso foi.
Infelizmente, há já alguns anos que o Carlos Senra nos deixou. Mas o Miranda, o Alfredo Miranda, está aí na sua cidade do Porto, muito debilitado na sua saúde, mas a malta da Gloriosa Tabanca de Matosinhos já foi umas três vezes a casa buscá-lo, para que com eles partilhasse as memórias e a camaradagem que teimamos em não querer perder.
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Nota do editor:
Vd. último poste da série de 6 DE DEZEMBRO DE 2012 >
Guiné 63/74 - P10768: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (4): Eu tinha dois doutores