quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11164: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (6): Regresso a Bissau

Abílio Magro junto às obras da piscina de sargentos que estava a ser construída nas traseiras dos nossos quartos


1. Em mensagem do dia 4 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Abílio Magro (ex-Fur Mil Amanuense (CSJD/QG/CTIG, 1973/74), enviou mais uma crónica para a sua série Um amanuense em terras de Kako Baldé.


Um Amanuense em terras de Kako Baldé

(Para quem não sabe, Kako Baldé era o nome por que era conhecido, entre a tropa, o General Spínola. Kako – (caco) lente que o General metia no olho. Baldé – Nome muito comum na Guiné) 

5 - Regresso a Bissau

O sol começava a nascer e ao longe, tenuamente, já se vislumbrava a costa da Guiné e, muito lentamente, o cais do Pidjiquiti tornava-se-me mais nítido e desejado.
Tinha a sensação de estar a regressar finalmente de uma longa ausência em terras inóspitas.
Cacine tinha ficado para trás. Foram poucos dias, eu sei (pareceram-me uma eternidade!), mas deu para "cheirar" ao de leve a guerra e sentir a vida dura do mato.
Senti-me regressar a "casa".

Em terra, aproveitei a boleia de uma das Mercedes que transportavam o pessoal da CCAÇ 3520 e que me deixou perto do QG/CTIG que não ficava longe do "Apart-hotel" onde estava alojado - O "Biafra". Este, era um alojamento provisório para quem chegava à Guiné pela primeira vez, ou que estava em trânsito. Eu já contava com 3 meses de Guiné e ainda ali continuava. Talvez as baratas tenham feito alguma pressão nesse sentido.

Embora necessitado de um valente banho, as saudades de uma "bejeca" geladinha falaram mais alto e, deixada a "bagagem" e a G3 na "suite", logo me dirigi ao Bar da Messe de Sargentos que se encontrava ainda fechado, mas que o "barman", vendo o estado lastimoso em que me encontrava e sensível ao meu convincente "choradinho", logo se disponibilizou para procurar a "bejeca" mais gelada que se encontrasse nas redondezas.
Até tinha gelo lá dentro! "Ganda barman!"
Bebi-a de um trago, o que fez com que não pudesse ter "cantado o fado" durante uns dias, mas que me soube bem "comó caraças"!

Havia agora que me apresentar ao serviço e recomeçar a minha outra "guerra", a que muitos chamamavam "do ar condicionado" (aproveito para informar que o ar condicionado estava reservado para os gabinetes dos Oficiais pois abaixo disso, aguentavamos com aquelas ventoinhas "gigantolas" penduradas no tecto e que, quando avariavam ou faltava a electricidade, nos obrigava a parar de trabalhar e vir para a rua, o que nos era permitido).

Lavadinho, barbinha feita, calças verdes de terylene, camisinha de manga curta e aberta no pescoço, lá vou eu todo vaidoso apresentar-me ao Chefe do Serviço de Justiça e Disciplina - Major do SGE, Mário Lobão (julgo que, naquela época, os Oficiais do SGE eram oriundos da classe de Sargentos e que, após frequência de um Curso na Escola de Sargentos de Águeda, acediam ao Oficialato e podiam progredir na carreira até ao posto de Ten. Coronel).

Para ir do meu gabinete ao do Major, tinha de passar pelo gabinete dos Advogados - Alferes Milicianos.
E, ao passar por estes, dizem-me:
- "Não se vá apresentar assim, tem de levar gravata!"

Eram uns brincalhões e eu era ainda muito 'pira'..., estão a ver?!
Gravata numa camisa daquelas e naquele clima?! "Gandas tangas estes tipos!"
Continuei a marcha em direcção ao gabinete do Major, entro, "bato-lhe a devida pala" e, quando me apronto para lhe contar as minhas desventuras, o homem levanta-se e vocifera:

- "Isso não é assim, vá-se ataviar convenientemente e venha-se apresentar depois!"

Se fosse hoje, corria para o computador, entrava no site da CP e comprava bilhete para o primeiro comboio que rumasse a Cacine (estou a brincar, não fiquei com saudades daquilo!).
Voltei para trás e ao passar novamente pelo gabinete dos Advogados, ouvi:
- "Está a ver, nós avisamos!"

Lá me informaram de como me deveria apresentar ao homem e concluí que tinha mesmo de pôr gravata.

- "Oh c'um carago, uma gravata nesta camisa é completamente ridículo! Isto anda tudo 'cacimbado' ou foi a cerveja gelada que me baralhou os neurónios?!

Bom, lá fui ao "Biafra", procurei a farda que tinha trazido da Metrópole, vesti a camisa de manga comprida arregaçando-lhe as mangas e coloquei a gravata.
Aquela gravata no meu pescoço fazia tanto sentido como um terço nas mãos do Luis Filipe Vieira!
Resta-me a consolação de ter obrigado o homem a levantar-se para me receber (o respeitinho é muito lindo!).
Quem por lá andou sabe que havia algumas personalidades estrambólicas, mas pelo que pude constatar nos cerca de 18 meses de Guiné, muito poucos Oficiais do SGE tinham semelhantes comportamentos.


Cartão que nos foi distribuído para podermos circular no QG depois da bomba. Reparem nas datas de emissão e validade (parece que contavam comigo até ao fim da comissão).


E a minha "guerra" lá foi continuando sem grandes sobressaltos e aproveito para aqui fazer um pequeno parêntesis para vos dar uma ideia geral de como era a vida do pessoal do "ar condicionado".

Na pequena sala onde prestava serviço, com uma ventoinha "matulona" no tecto, estavam também 4 Escriturários, dos quais dois eram africanos (1 civil, ex-guerrilheiro recuperado, e outro do recrutamento local), virados para mim e o espaço que existia entre as secretárias deles e a minha, não permitia que circulassem duas pessoas a par. A seu lado, estava ainda um 1º Sargento de quem já não me recordo o nome e a quem o Major parecia ter um ódio de estimação chamando-o de "gebo" e encarregando-o das tarefas mais achincalhantes.
Dava pena vê-lo abeirar-se de mim, cheio de medo e, em surdina, pedir-me qualquer tipo de ajuda sem que o Major "topasse". Felizmente para ele faltava pouco tempo para o fim da sua comissão.

A vida dos Escriturários não era "pêra doce"!. Entravam às 8 ou 9h00 (já não me recordo), destapavam as máquinas de escrever e era um matraquear contínuo até ao fecho do serviço, apenas com intervalo para almoço. Imaginem aquelas almas dias e dias seguidos (meses, toda a comissão!), sempre a bater à máquina com um calor insuportável e sem grandes hipóteses de "baldas"! E eu a levar com aquele constante matraquedo em cima!

Mas aquela "guerra" lá se foi travando até que surgem indícios de que a "coisa" estava a ficar mesmo feia e que parecia vir a alastrar-se a Bissau, com início de alguma guerrilha urbana, com bombas a rebentar no café Ronda, no QG/CTIG, num autocarro da Base Aérea e uma pseudo-bomba na Piscina do Clube dos Oficiais.

Tendo vivido de perto estes acontecimentos, com excepção daquele que se terá passado com o autocarro da Base, proponho-me relatar a seguir o que presenciei e de como reagi nesses momentos, não assegurando ser correcta a cronologia aqui apresentada.

1º envelope emitido pelos correios da Guiné independente;

1º selo emitido pelos correios da Guiné independente;

Selos que ainda se vendiam em Bissau em Setembro de 1974


Bomba no Café Ronda

O Cafe Ronda situava-se na Av. da República, um pouco mais abaixo do cinema UDIB e do lado contrário ao deste.

Segundo me recordo, possuía uma espécie de esplanada coberta e ali se juntavam muitos militares (uns fardados, outros trajando à civil) que lá bebiam o seu cafézinho ou "bejeca", entre outras coisas. Tinha também um pequeno balcão que dava para uma rua transversal e onde também se podia beber o "cimbalino" ou a "bejeca" de pé e do lado de fora, com um atendimento muito mais célere.

Numa determinada noite do ano de 1973  [, na realidade foi a 26 de fevereiro de 1974, LG],
eu e mais dois ou três camaradas meus, tomamos o nosso cafézinho no balcão referido e seguimos de imediato para o cinema UDIB para assistir à exibição de um qualquer filme que por lá andava. Poucos minutos depois do início da exibição do filme, dá-se um tremendo rebentamento lá fora e, quase de seguida se ouvem diversas viaturas com buzinadelas e sirenes, indiciando haver constante transporte de feridos.

É interrompida a exibição do filme e surge uma voz aos altifalantes do cinema, solicitando a todos os médicos que eventualmente por ali se encontrassem, o favor de se dirigirem de imediato ao Hospital Militar.

Estão mesmo a ver onde este vosso camarada se dirigiu para ver o resto do filme, né? Pois, acertaram! Direitinho às Instalações Militares de Santa Luzia, onde se encontrava implantado o seu maravilhoso "T2"!

Tinham colocado uma bomba no Café Ronda, que explodiu quando este se encontrava repleto de clientes, tendo causado alguns mortos e muitos feridos. Nesse atentado ficou gravemento ferido um "piriquito" com 2 ou 3 dias de Guiné e que eu tinha conhecido no dia anterior, pois tratava-se do "pira" que ia substituir na CSJD o meu camarada Fur Mil Costa que terminara a sua comissão e tinha já viajado para a Metrópole.

Aquele "piriquito" acabou por ser evacuado para Lisboa e soubemos mais tarde que aí falecera. Recordo-me do nome - Romão.

Como é sabido, tratando-se de pessoal de 'rendição individual', tinha de haver um período mínimo de 10 dias de trabalho em conjunto, em que o substituído transmitia ao "pira" todas as informações relacionadas com as tarefas que este iria passar a executar e só depois isso, era autorizado o regresso a casa do "velhote".

Mas o camarada Costa, de Estarreja, era de "olho vivo e pé ligeiro" e teve artes de obter a lista oficial do pessoal que vinha no avião que estaria para chegar e onde constava o nome do seu substituto (Fur Mil Romão) e, junto do Ten Cor (nessa altura o Major já tinha sido substituído), teve artes ainda maiores de o convencer que a substituição estava assegurada e que a transmissão de serviço se faria sem problemas de maior, com a colaboração dos Advogados a quem tinha solicitado previamente essa ajuda, obtendo, assim, o tão almejado papel.

E lá conseguiu embarcar e viajar para a Metrópole no mesmo avião em que o seu "pira" tinha viajado para Bssau.

Entretanto, deram-se os acontecimentos do Café Ronda, acima relatados, e a substuição não se deu, sobrecarregando durante algum tempo os Advogados (Alferes Milicianos).


Bomba no QG/CTIG

Um dia de Jan/Fev de 1974, encontrando-me eu a convalescer de uma operação às varizes a que tinha sido submetido no HMBIS e bebendo uma "cervejola",  sentado na esplanada da Messe de Sargentos de Santa Luzia, num final de tarde, dá-se semelhante rebentamento por ali perto que julgo me fez levitar por breves segundos. Segue-se de imediato o buzinar constínuo e enervante da sirene de alarme do QG e a debandada geral, desordenada e atarantada do pessoal que por ali estava.

Verificam-se então cenas dignas de um qualquer filme de Charlie Chaplin. Com efeito, face ao crescente temor de que um dia a "coisa" ia chegar a Bissau, o pessoal andava algo receoso e muito nervoso. Quais baratas tontas, cada um reagiu da forma que julgou mais conneniente, vericando-se que alguns procuraram locais que se assemelhassem a valas, tipo condutas de águas pluviais, e aí se deitaram. Eu, com a valentia que me é reconhecida e como é meu apanágio nestas situações, dirigi-me de imediato para o objectivo, isto é: direitinho ao quarto!

Nessa altura já não convivia com as baratas do "Biafra" e já habitava num "T2" (4 + 2 Furrieis) que, por sinal, ficava na direcção do QG e bem mais perto deste. Quem me viu avançar decidido em direcção ao QG (leia-se quarto) terá pensado: "se este vai, vou também!".

O grupo foi engrossando e, quando passei à porta do meu "T2", não tive "lata" para entrar e lá segui com a "malta" até ao portão do QG. Aí, quem estava completamente atarantado era o meu camarada madeirense Fernandes que estava de Sargento da Guarda e não sabia para que lado se havia de virar.

Logo pensei:
- "Olha se era comigo, ia ser bonito ia! Desta vez mandavam-me para o Burkina Faso!

Resumindo: Tinham colocado no QG uma bomba de alguma potência que mandou o telhado pelo ar e deitou paredes abaixo. Vi então sair em direcão ao Hospital o mercedes do Comando com o, já Brigadeiro, Galvão de Figueiredo que apresentava um ferimento no pescoço que, soube-se depois, era de pouca gravidade.

Se o rebentamento se tivesse dado mais cedo, as consequências teriam sido bem mais graves como constatei mais tarde quando regressei ao serviço, pós-convalescença.


Bomba no autocarro da Base Aérea

Não presenciei este acontecimento, do qual apenas me chegou alguma informação difusa de que teria sido colocada uma bomba no autocarro da Base Aérea, sem grandes consequências pelo facto de aquele se encontrar completamente vazio.


"Bomba" no Clube de Oficiais do CTIG

Nas Instalações Militares de Santa Luzia existia um Clube de Oficiais, composto de acomodações, messe, piscina, bar e cinema ao ar livre (podia-se fumar enquanto se via uma "sessão" - "porreiro pá!").

A classe de Sargentos tinha acesso a esse Clube para assistir à exibição de filmes e, uma vez por semana (5ªs-Feiras julgo eu) tinha também acesso à piscina. O local era circundado por um muro formado com aqueles tijolos geométricos que permitem ver de um lado para o outro.

O cinema era montado no recinto da piscina e a tela era composta de um grande pano branco suportado por duas altas estacas. As cadeiras eram metálicas, daquelas de fechar, usadas normalmente nos parques de campismo e nas nossas praias.

Nestas circuntâncias, as sessões de cinema eram efectuadas à noite como é óbvio e, como do outro lado do muro existiam tabancas, os respectivos habitantes viam o filme do outro lado da tela com as legendas do avesso, o que nunca impedia uma razoável assistência nativa.
Quando no filme se desenrolava uma qualquer cena de pancadaria entre um branco e um negro (Sidney Poitier, por ex.) e o negro dava um murro no branco, invariavelmente se ouvia uma grande salva de palmas vinda do outro lado do muro. Compreensível, diga-se de passagem.

Alguns soldados sentavam-se nos muros e também assistiam ao espectáculo.

Naquela altura pairavam no ar receios fundados de provável início de guerrilha urbana em Bissau. Ali, no cinema ao ar livre e com as luzes apagadas por via da exibição cinematográfica, e com as tabancas do outro lado do muro, uma bombita era "canja!"
O pessoal andava nervoso.

Naquela noite o cinema estava cheio como de costume. Eu também lá estava a ver uma "sessãozita".

De repente vê-se um clarão e a debandada foi geral! Com a confusão, algumas cadeiras "ensarilharam-se" provocando tropeções e quedas e, os que caiam ao chão eram espezinhados pelos outros, como foi o meu caso.

No chão, a ser espezinhado e com as cadeiras a atrapalhar, não conseguia fugir e entrei em pânico! Ouvia o som das "Kalashnikov's"! Ia ser apanhado à mão, despedi-me da família!

Passadas longos minutos, lá me consegui erguer e, já pronto para saltar o muro, ouço risadas!
O pessoal da primeira fila tinha-se safado bem das cadeiras e, junto à tela, deliciava-se com o espectáculo. Extremamente nervoso e com o coração a bater a 200 r.p.m., mandei umas "bocas foleiras" aos de "tacha arreganhada" e dirigi-me ao chuveiro da piscina para lavar os arranhões (face, braços e pernas) e tive a companhia do Brig. Galvão de Figueiredo que lá foi fazer o mesmo às mãos e que vociferou:
- "cambada de cretinos!"

Entretanto:
- "de quem são estas chaves?!"
- "ó Magro, olha aqui o teu cartão!"
Os meus "bens pessoais" lá foram aparecendo aos poucos.

Resumindo:
- a bomba tinha sido uma caixa de fósforos que se incendiara a um soldado, enquanto acendia um cigarro em cima do muro e que se terá desiquilibrado. Na queda, terá arrastado consigo mais dois ou três camaradas;
- os longos minutos no chão a ser espezinhado, ter-se-ão resumido a meia dúzia de segundos;
- o tiros de Klashnikov seriam, afinal, a cadeiras metálicas a bater umas nas outras.

Mais um filme ficou a meio e eu, novamente, fui direitinho ao quarto!
Acreditem que foi o maior susto que apanhei em 18 meses de Guiné.
Acreditem que, em pânico, a ser pisado, sem me poder levantar, nem ver o que se passava ao redor, nem que fosse feijão fradinho entrava no "uropígio"!

No dia seguinte, quando entro na CSJD vejo o cabo condutor-motorista do Ten. Cor. com a mão esquerda ligada.
- "Então que foi isso?"
- "Queimei-me ontem à noite no cinema."

Ali estava o autor do "crime"!

(Próximo episódio - O meu 25 de Abril)
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Nota do editor

Vd. último poste da série de 20 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11125: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (5): Curtas férias em Cacine, CCAÇ 3520 (2)

Guiné 63/74 - P11163: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (7): E a morte apareceu

1. Em mensagem do dia 22 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a sétima colaboração para a sua série "Carta de Amor e Guerra".


CARTAS DE AMOR E GUERRA

7. E a morte apareceu

A minha carta de 5/10/1965, abaixo transcrita, deu origem a um outro texto meu já publicado neste blogue a 7 de janeiro de 2012: P9326. ”Manhã maculada”.

Todos os capítulos publicados até agora foram compostos com excertos de várias cartas. Como parceiros da correspondência, eu e minha esposa, temo-nos abstido de publicar coisas de carácter muito íntimo. E há ainda aquelas partes que, a nosso ver, não têm interesse e/ou valor suficiente para aqui serem publicadas. O que não quer dizer que não sirvam de apoio e consulta para um qualquer trabalho mais alargado que, no futuro, possa vir a ser feito por alguém interessado neste tema e nos seus conteúdos.

Desta vez há só uma carta, a qual vai quase na íntegra para poder dar uma ideia sobre a minha posição político-ideológica na altura em que foi escrita, posição com fortes reflexos no meu modo de ver e de sentir a guerra.

Está claro que seria esquisito, para não dizer muito estranho, que as nossas opiniões de hoje coincidissem totalmente com as de há quase 50 anos atrás sobre seja lá o que for. Não coincidem muitas vezes, como é natural. É por isso que vemos estes namorados como jovens que conhecemos muito bem nos anos sessenta do século passado, como alguém que já fomos e que já não somos. Somos como que seus espectadores tal como outros possíveis leitores destas cartas o poderão ser. Com a diferença de já termos “visto este filme e conhecermos bem o seu enredo e respetivas personagens.”.

É com muito prazer, e algumas vezes admiração, que nos recordamos de sermos aqueles jovens cheios de idealismo humanista a lutar contra o que consideravam errado na política e na sociedade da época, decididos a participar na construção de um mundo melhor onde a opressão e a exploração do homem pelo homem não pudessem ter lugar. Utopias? Sim, mas “pelo sonho é que vamos” e pelas utopias também temos de lutar mesmo sabendo que nunca alcançaremos os nossos objectivos. Mas não faz mal.

Somos os “mesmos, mas outros” e cá vamos fazendo caminho, já um pouco cansados das jornadas, com algumas cicatrizes e uma ou outra ferida aberta no corpo e no espírito. Não se pode é ficar parado, o caminho faz-se caminhando, “se hace camino al andar” disse o grande poeta sevilhano Antonio Machado:

“ (…) /caminante, no hay camino, / se hace camino al andar / Al andar se hace camino, / y al volver la vista atrás / se ve la senda que nunca / se ha de volver a pisar / (…)”

(Antonio Machado, “Campos de Castilla” : excerto do poema “Caminante no hay camino” ) … … …


Caminante no hay Camino por Juan Manuel Serrat

Bissau, 5 de Outubro de 1965
Minha querida, precisamente hoje recebi a tua carta de 27/Setembro. 
(…). Queria-te convencer de que preciso imenso das tuas cartas. (…) uma carta é um bálsamo refrescante e alentador. As horas mais felizes que se passam aqui são aquelas em que se tem a sorte de receber umas cartitas. Tenho a certeza que não imaginas o que é a hora da distribuição da correspondência. (…).


E eu cá continuo em Bissau. Sem dúvida que é muito melhor estar aqui que no mato. Alguns (poucos) advogam o contrário devido ao modo de vida militar que aqui se tem de seguir, (…). Somos sobrecarregados de trabalho com rondas contínuas, guardas e serviços análogos. Este trabalho, actualmente, de perigo não tem nada pois a zona está completamente pacificada, exteriormente é claro (…) [mas sinto que] prolifera a revolta, aquela revolta que se sente nos olhos e nas faces desta pobre gente.

A simpatia pelo movimento revolucionário é quase geral mas é preciso, também para este movimento, conservar a zona calma pois Bissau não deixa de ser um dos principais centros de actividade conspirativa que abarca principalmente a aliciação do povo, a captação de informações e o próprio reabastecimento dos revoltosos. Visto isto, a vigilância militar é contínua, mesmo arrasante, pelo menos para evitar o pior já que limpar esta zona é impossível. (…).

(…). Às vezes vamos fazer uma incursão até às zonas perigosas (…). O sibilar das balas inimigas (…) conduz-nos a uma vivência tão grande como grande é o perigo que corremos. (…). São momentos difíceis de definir.
O desejo de sobrevivência sente-se tão fortemente que eu – EU, que tristeza! – chego a sentir prazer em [poder] matar. Para mim são os momentos mais tristes que tenho passado. Mas o que é certo, infelizmente, é que estou metido numa “alhada” e embora chegue a pensar que devia levar um tiro, [que] merecia levar um tiro (as ocasiões hão-de ser muitas com certeza), tenho de me safar. 
A vida é tão preciosa! Aqui sente-se isto profundamente. E tu, meu amor, exiges a minha presença junto de ti. E a minha família também. É uma situação incrível esta, a minha. “Preso por ter cão e preso por não ter”.

Ah, aquele grito de mulher, aquele grito de dor, de impotência, de desespero e de aviso para os seus familiares e camaradas de luta! 

Ah, aquele grito que nunca mais me sairá dos ouvidos, que ecoou na selva ao momento da aurora, seguido de rajadas de espingarda automática! Ela sentiu que se acabava, mostrou-me como é grande o desejo de viver e antes de cair varada pelas balas gritou bem alto o aviso aos outros que, como ela, estavam sob o nosso cerco. (…). Perto dela ficou uma jovem de quinze a dezassete anos, viçosa, seminua, seios túrgidos, vigorosos, pintalgados de sangue – talvez filha. Manhã maculada! Manhã terrivelmente dolorosa. Infelizmente, manhã inesquecível. 

“Perto dela ficou uma jovem …” que hoje recordo com esta bela imagem de paz. 

Na foto: “Uma rapariga beafada entrega-se aos cuidados da cabeleireira nativa para realçar, ainda mais, a sua beleza.” 
Foto extraída, com a devida vénia, do livro “GUINÉUS” de Alexandre Barbosa, 3ª edição, 1968. Edição, foto e legenda do autor.

Quão estúpida e vergonhosa, horrível e criminosa é a guerra, minha querida N. O meu batalhão está aqui há dois meses. Tem dois mortos, três feridos muito graves e vários soldados com ferimentos leves. Um dos mortos era um furriel meu amigo, o Jaime Feijão, das Caldas da Rainha. A série iniciou-se. Quem virá a seguir? 

Não é bem a ideia da morte que me aflige mas o poder vir a morrer aqui por uma causa estúpida em defesa de princípios antinaturais e anti-sociais, em defesa daquilo que grandemente abomino. Só quem aqui anda é que pode ter uma ideia mais segura a respeito desta catástrofe nacional.

Com que direito se utilizam da minha vida para a guarda dos seus monopólios, para a sustentação das suas megalomanias? Acaso já fui alguma vez favorecido? E o povo é favorecido? E ainda por cima me vêm cá gritar, (…), que estamos em defesa de princípios sagrados - a defesa duma pátria católica e da própria religião! 
Ah, então isto é que é sagrado? Isto que se faz aqui desta maneira é que é sagrado? Se isto é coisa sacra … então quero que vão todos à merda com todo o seu sacratismo! Pulhas!

Oh grande Maximo Gorki, como tinhas razão!: Sagrado é o descontentamento que o homem sente por si próprio e a sua aspiração de se tornar melhor; sagrado é o seu ódio pelas velharias de uma existência de que ele próprio é responsável; sagrado é o seu desejo de aniquilar na Terra a inveja, a ambição desmedida, os crimes, as doenças, as guerras e toda a inimizade entre os homens; sagrado é o seu trabalho pela conquista da liberdade e da progressão social.

Não me venham agora cá com loas ensaiadas e pré-dirigidas, seus abutres infectos! 

Meu amor, penso que ficarás mais ou menos com uma ideia do que é o ambiente em que agora vivo e como, cá dentro, o teu M. reage. Exteriormente, só tenho de obedecer. Envergonho-me de ser carneiro mas, o que é certo, é que o sou. Aparentemente, faço parte do rebanho. Tive azar com os pastores. E o que é desesperante é que não há meio de nos unirmos e destruirmo-los à cornada. Peço que me desculpes pela crueza com que expus certas ideias. Talvez, falando assim, te fizesse sofrer um bocadinho. Mas, às vezes, a verdade dói. 

(…) isto no aspecto de sobrevivência vai bem. Muito bem até. Não há motivos para preocupações. Corre-se mais perigo a atravessar uma avenida de Lisboa do que estar aqui na zona onde actualmente habito. Acredita-me, minha querida. Não te preocupes, sim? E … ESCREVE!

Até à próxima! 
Com todo o meu amor, sou o teu M. Beijo-te.
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 20 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11122: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (6): Amor sofrido

Guiné 63/74 - P11162: Álbum fotográfico do ex- fur mil José Carlos Lopes, amanuense do conselho administrativo da CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) (9): Ainda cheira a pólvora...


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Foto nº 45 > Invólucros de granadas de canhão s/r, deixadas na orla da mata contígua à pista de aviação, na noite do ataque a Bambadinca, 28 de maio de 1969... Ainda tenho bem presente, na minha memória, estes "objetos" de guerra, na nossa passagem pro Bambadinca, a caminho de Contuboel, em 2 de junho de 1969...Recorde-se que na história do BCAÇ 2852, o ataque a Bambadinca é dado em três linhas, secas, em estilo telegráfico: "Em 28 [de Maio de 1969], às 00H25, um Gr In de mais de 100 elementos flagelou com 3 Can s/r, Mort 82, LGF, ML, MP e PM, durante cerca de 40 minutos, o aquartelamento de Bambadinca, causando 2 feridos ligeiros"...



Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Foto nº 39 > Bidões de combustível atingidos pelo fogo do IN, no ataque da noite de 28 de maio de 1969. Recorde-se aqui o sistema de cores dos nossos bidões: Vermelho (gasolina), verde claro (petróleo branco), amarelo (gasóleo).


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Foto nº 2 > Possivelmente despojos de guerra, recolhidos durante a Op Lança Afiada (8-19 de março de 1969)


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Foto nº 1 > Não tenho a certeza de quem capturou nem quando nem onde este RPG 2 e a respetiva granada...Pode ter sido  durante a Op Lança Afiada (8-19 de março de 1969)


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Foto nº 46 > A ponte do Rio Udunduma, objeto de sabotagem por parte do PAIGC, na noite de 28 de maio de 1969, aquando do ataque ao quartel de Bambadinca... Pela escassez de água no rio, vê-se que estamos no fim da época seca...Não me lembro de ter visto o rio Udunduma com um caudal tão fraco...Passei/passámos (a malta da CCAÇ 12...)  muitas noites neste buraco... (do 2º semestre de 1969 ao 1º trimestre de 1971), neste destacamento (?) que depois dessa data foi improvisado para defender esta posição estratégica... Improvisado e definitivamente provisório... Com a construção da nova estrada (Xime-Bambadinca), mais ou menos paralela a esta, foi construída uma nova ponte..



Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Foto nº 38 > Ponte do Rio Udunduma, na estrada Xime-Bambadinca > Possivelmente no(s) dia(s) seguinte(s) ao ataque ao quartel de Bambadinca, em 28 de maio de 1969. Nessa noite, esta ponte, vital para as comunicações com todo o leste da província, foi objeto do "trabalho" dos sapadores do PAIGC... Os estragos, embora visíveis, não abalaram felizmente a sua estrutura. Era uma bela ponte, em cimento armado, construída no início dos anos 50. Esta foto é "histórica". O José Carlos Lopes posou aqui para... a "posteridade".



Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Foto nº 40: Chegada do gen Spínola (ou ainda brigadeiro ?), em data que não posso precisar: (i) em março de 1969, por ocasião da Op Lança Afiada (8-19 de março de 1969), em que o com-chefe se empenhou muitissimo, tendo estado inclusive com as NT no final, na Foz do Rio Corubal, na Ponta do Inglês;  ou então (ii) em junho de 1969, depois do ataque a Bambadinca (em 28 de maio de 1969)...


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Foto nº 107 > Vista parcial do aquartelamento de Bambadinca: o espaldão do morteiro 81 (ver aqui a posição nº 23 nesta infografia) e à esquerda um abrigo recente... Ao fundo, a grande e mítica bolanha de Bambadinca, na margem esquerda do Rio Geba Estreito... (Vê-se também empoleirado num dos troncos de lenha, usada pelos cozinheiros da messe, um maco-cão, mascote da CCS... Estes meios de defesa terão sido construídos ou melhorados depois do ataque a Bambadinca. Todo o vasto perímetro do quartel foi guarnecido, já no tempo da CCAÇ 12 (a partir de julho de 1969),  com um sistema de valas em ziguezague.. Uma boa parte dessas valas foram abertas por nós, no intervalo do descanso entre duas saídas para o mato...  

Fotos: © José Carlos Lopes (2013). Todos os direitos reservados. (Editadas e legendadas por L.G.)

1. Continuação da publicação do excelente álbum fotográfico  (, constituído por "slides" digitalizados, ) do José Carlos Lopes, meu contemporâneo em Bambadinca, pelo menos na época de julho de 1969 a maio de 1970 (quando o batalhão regressou à metrópole). Embora a sua especialidade fosse "contablidade e pagadoria" (sic), ele exerceu funções como fur mil reabastecimentos da CCS/BCAÇ 2852. É nosso grã-tabanqueiro, nº 604, desde 10 do corrente. Bancário reformado do BNU, vive em Linda a Velha, Oeiras.

Recorde-se, de passagem, que o ataque a Bambadinca, em 28 de maio de 1969, assume alguns aspetos hilariantes (sem ofensa para ninguém...), dois meses depois da Op Lança Afiada (8-19 de março) em que todo o dispositivo político, administrativo e militar do PAIGC, no triângulo Xime-Bambadinca-Xitole- margem direita do Rio Corubal,  terá sido desarticulado... Sorrateiramente, audaciosamente, dois bigrupos (c. de 100 homens), aproximam-se da sede do batalhão, importante posto administrativo e estratégico porto fluvial, e conseguem tirar o sono aos nossos camaradas da CCS/BCAÇ 2852 e subunidades adidas...

Felizmente que não houve baixas de monta... A sorte (ou a nabice dos artilheiros do PAIGC) protegeu  o pessoal de Bambadinca:  segundo os  diversos depoimentos coincidentes que fui ouvindo (, incluindo o do José Carlos Lopes, que podia ter morrido na cama com uma morteirada!),  os canhões s/r enterraram-se no solo e a canhoada foi cair na bolanha... Estávamos já no princípio da época das chuvas.

Quando nós, periquitos da CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12), lá passámos, uns dias  depois, vindos de Bissau e do Xime a caminho da nossa estância de férias (Contuboel, um mês e meio de paraíso... seguido depois de 18 meses de inferno... quando fomos justamente colocados na sede do Setor L1), os nossos camaradas da CCS do BCAÇ 2852 ainda falavam do evento com alvoroço e emoção...
- Podíamos ter morrido todos! -  dizia-me 1º cabo cripto Agnelo Ferreira, da minha terra, Lourinhã, e meu amigo de infância...

Fomos depois nós, para lá, com os nossos nharros, e em 18 meses nem um tirinho: que o respeitinho (mútuo) era muito bonito... Porrada, porrada, era só quando a gente se atrevia a meter o bedelho na terra deles, na margem direita  do Rio Corubal, que eles consideravam "libertada"...   (LG)
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Nota do editor:

(*) Vd. último poste da série > 23 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10993: Álbum fotográfico do ex- fur mil José Carlos Lopes, amanuense do conselho administrativo da CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) (8): Há festa no quartel: visita da Cilinha e do conjunto musical das Forças Armadas, em abril ou maio de 1969

Guiné 63/74 - P11161: Parabéns a você (542): Luís R. Moreira, ex-Alf Mil Sap da CCS/BART 2917 e BENG 447 (Guiné, 1970/71)

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Nota do editor

Vd. último poste da série de 26 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11154: Parabéns a você (541): João Carlos Silva, ex-1.º Cabo Especialista da FAP (1979/82)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11160: Blogpoesia (322): Não sou nada, não sou ninguém (Ernesto Duarte)

1. Em mensagem datada de 19 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67) enviou-nos um poema de sua autoria a que deu o expressivo título:


Não sou nada, não sou ninguém

Aqui no alto das minhas recordações 
Aqui do alto da minha serra 
Aqui do alto de onde as recordações têm outro sabor 
Eu sempre soube o amanhã 
Eu sempre soube que todos os amanhãs são passos para o fim 
Eu sempre soube que nada é eterno 
Eu sempre soube que mesmo os amanhãs passos gigantescos para o futuro, são igualmente passos para o fim 
Eu já andei muitos passos 
Eu já me sinto cansado de tanto descer 
Eu já estou num patamar em que tenho mais passado do que futuro 
Eu sei que passo mais tempo a recordar do que a sonhar 
Eu sei que já posso dizer com um sorriso, que não sou ninguém, não sou nada porque eu sei que lutarei até ao fim, até para lá do fim 
Eu sei que posso dizer que a minha terra está muito longe 
Eu sei que posso dizer que a terra onde vivo não é a minha 
Eu sei que não conheço as pedras das calçadas 
Eu sei que não conheço as gentes que se cruzam comigo 
Eu sei que vivi sempre em terras que não eram as minhas 
Mas eu vou voltar à minha serra, nem que seja só por um dia, pelos caminhos de ontem de muitos ontens
As serras algarvias são diferentes das outras 
São mais pequenas 
Chove pouco, cai neve uma vez por século 
Mas têm uma luz única 
A paisagem é deslumbrante 
O Sol incide naquela extensão enorme de Oceano 
Naquela estrada marítima, naquele caminho marítimo 
Refletindo-se nas dezenas de barcos que a cruzam constantemente 
No muito ontem 
Já tocado pela história, fico horas ali tentando imaginar os grandes Portugueses do passado 
Os seus grandiosos feitos 
Como seriam surpreendentes aqueles novos pedaços de Portugal 
Coisas deslumbrantes e arrebatadoras com certeza 
Muito maiores do que a história 
Não a história maior do que eles 
E desejava mesmo um dia poder lá ir 
Extasiar na sua grandeza física, mas muito mais na sua grandeza humana 
O tempo foi passando e eu fui esquecendo mais, mas sempre tocado 
Sempre imaginando os feitos naquelas terras, as suas grandezas 
E um dia quase sem perceber apareci dentro de um barco, o Niassa 
Daquele barco naquele Atlântico eu olhei a minha serra com saudade 
Chego à Guiné e a desilusão é muito grande 
Eu chego mesmo a pensar que estou em 1400 
Interior comigo, encontro os de 1963 a quem vamos render 
Eles falam connosco, tentam nos dizer o máximo 
Cada palavra que nos dizem, é uma afirmação de que aquilo, esteve, continua a estar igual 
Quase dois longos anos se passam 
E um dia aparecem outros para nos render 
E nós temos para dizer o mesmo, nada 
Naqueles primeiros anos deram-se muitos tiros 
Limparam-se muitas estradas 
Fez-se muitos golpes de mãos, trabalhou-se duro e com sacrifício 
Resultados! 
Em cada rendição estava sempre tudo igual, para não dizer pior 
Mais triste me sinto hoje no meu emaranhado de recordações 
Quanto mais penso, mais confirmo a inutilidade 
E como posso dizer sou nada 
Não sou ninguém

Ernesto Duarte
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 17 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11104: Blogpoesia (321): Não à filha-de-putice-da-vida, camarada! (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P11159: Bibliografia de uma guerra (67): Alguns comentários sobre a guerra na Guiné e a sua literatura (1) (René Pélissier / Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Fevereiro de 2013:

Queridos amigos,
Alguns meses atrás, recebi uma carta do Prof. René Pélissier solicitando-me livros e alguns contactos, ele continua indefetivelmente, infatigavelmente, a fazer recensões de livros em torno dos nossos conflitos coloniais. Daí nasceu a ideia, mais tarde, de sugerir a esta autoridade internacional na historiografia das nossas guerras que pusesse por escrito as suas reflexões sobre escritores e escritos de antigos combatentes.
Penso que este trabalho científico nos deve orgulhar e não escondo uma certa ufania em ter participado neste exclusivo que inclui fotografia inédita do historiador a mostrar leituras onde a Guiné é preponderante.

Um abraço do
Mário



Alguns comentários sobre a guerra na Guiné e a sua literatura (1)

René Pélissier

É com toda a franqueza que confesso ter hesitado em publicar esta pequena crónica num blogue de antigos combatentes portugueses na Guiné. E porquê? E, finalmente, como é que eu cheguei aqui? Antes de mais, não sou nem antigo combatente nem mesmo português, nem até alguma vez pus os pés na Guiné. Nem – nunca – alguma vez estive implicado em qualquer outro conflito tropical. Contento-me em estudá-los atentamente há mais de 50 anos, sempre que me interessam. Depois, procurando encontrar argumentos plausíveis, disse a mim próprio que os frequentadores deste blogue terão passado, na maior parte dos casos, de 20 a 26 meses no tarrafo e nas picadas da Guiné, enquanto eu, pura e simplesmente, passei mais de 4 intensos anos a escrever uma história da ocupação militar deste território. Isto não se compara com os sofrimentos suportados pelos jovens- ou menos jovens – soldados, sargentos e oficiais que arriscaram a sua pele e a sua saúde para defender, a despeito do que pensavam, um mito. Eles andavam nos Unimogs, procuravam detetar as minas, viviam em destacamentos fortificados, enquanto eu, no meu escritório, procurava,mas mais tarde (1984-1988) organizar centenas e até mesmo milhares de informações que poderiam ajudar a explicar porque é que eles tinham sido enviados para um país que lhes tinham dito ser Portugal mas que, a seus olhos, não tinha muitas semelhanças com os Açores ou o Minho. É um eufemismo da minha parte. Enfim, a minha qualidade de historiador da colonização portuguesa moderna em Angola, em Moçambique, na Guiné e em Timor, não era argumento suficiente para falar a pessoas que, como todos os antigos combatentes do mundo, gostam de se reencontrar para falar da sua história pessoal vivida no terreno, mas que têm pouco interesse pela história militar do passado.

Mas a minha segunda identidade de crítico de livros publicados por antigos combatentes é ainda mais conflituosa. Um historiador deve conservar uma distância profissional com o que estuda. É o mínimo de imparcialidade que se espera dele. Esta condição é raramente alcançada quando o historiador e os atores têm a mesma nacionalidade ou o mesmo credo político ou religioso que o autor e, pior ainda, quando as nacionalidades e as posições são antagónicas. Acreditem na minha experiência, os historiadores militares são quase sempre historiadores comprometidos. Veja-se como divergem as suas interpretações sobre Naulila, no sul de Angola, em 1914, na perspetiva portuguesa ou alemã. A mesma coisa para os combates de Cuíto Cuanavale (1987-1988), quando se é angolano, cubano, soviético ou sul-africano. Quando se quer passar uma determinada opinião sobre um acontecimento é certo e seguro que vai trazer descontentamento a dois, três ou quatro adversários, e, em primeiro lugar, às testemunhas que o viveram. Conhece-se a suscetibilidade – por vezes patológica – de autores e editores em geral, e a dos portugueses em particular; o ofício de crítico é o melhor meio de fazer inimigos e de se ver ligado a polémicas em cadeia. Detesto polémicas, mas não posso dizer o contrário do que penso se o livro é mau. Eu respeito o meu leitor e procuro não o enganar induzindo-o em erro. Graças a Deus, poucas vezes passo o meu tempo a falar das qualidades e dos defeitos literários dos autores. Não possuo as competências para tal, é coisa que não me diz respeito.

Enquanto historiador, o que me interessa é o valor documental, a sua pertinência, se possível a sua cronologia, se ela até se apoia num diário de operações. Desconfio da memória, se bem que aprecie a exposição de estados de alma para conhecer o ambiente local num dado período, os ajustes de contas pessoais, as críticas ad hominem entre “camaradas” não me entusiasmam. Em contrapartida, as críticas que incidem sobre a condução das operações ou as insuficiências deste ou daquele oficial são preciosas. Os casos mais notáveis são os que se referem a Spínola na Guiné, genial, corajoso e visionário para uns, insuportável, pretensioso e péssimo estratega para outros.

Em suma, a minha dupla identidade de historiador africanista e de Timor, por um lado, consumidor de literatura memorial e, por necessidade, divulgador de novas perspetivas com vista a uma hipotética história da última guerra colonial portuguesa, por outro lado, não me predispõe para falar de novidades num fórum ou num ambiente de camaradagem em que os elogios mútuos são muitas vezes a regra de ouro.

Acontece que vocês me estão a ler no vosso blogue. Quem venceu as minhas hesitações foi Mário Beja Santos, que eu nunca encontrei e tem, pelo menos, um editor (Temas e Debates e Círculo de Leitores) que nunca se dignou a enviar-me uma só informação ou livros para recensão, provavelmente porque eu escrevo geralmente em revistas que não têm impacto sobre as grandes vendas, e outro editor (Âncora Editora) que nunca mais me enviou nenhum livro talvez por ter sido demasiado crítico a propósito de um dos seus autores, ou, sabe-se lá, porque os livros estão muito caros.

Suponho, observador longínquo da cena mediática portuguesa, que Mário Beja Santos goza de alguma notoriedade em Portugal. Em todo o caso, não foi a sua posição social que me decidiu a ultrapassar as minhas reticências iniciais, foi, acima de tudo, o facto de que ambos praticamos em dose elevada o mesmo ofício: o da crítica de livros ultramarinos e porque ele é, tanto quanto sei, o primeiro em Portugal a ser bem-sucedido com uma iniciativa espetacular: a de coligir em volume dezenas e dezenas de resenhas e longos comentários, que publicou em diferentes meios de comunicação social, por os ter classificado em categorias (romance e conto; memórias; ensaios; poesia; reportagem; história; diários), sintetizando-os e classificando-os pela sua devida importância. E, finalmente, encontrou um editor (Âncora Editora), bastante corajoso e profissional para publicar o resultado final (Mário Beja Santos, Adeus, Até ao meu Regresso, Âncora Editora, Lisboa, 2012, 408 páginas).

Sem qualquer adulação da minha parte, considero, enquanto autor precursor com três recolhas de (cerca de 3000) recensões de livros espalhados por uma cinquentena de revistas e jornais publicados numa meia dúzia de países(1) , que Adeus, até ao meu Regresso é não só um livro indispensável para todos os antigos militares que combateram na Guiné, mas que deveria estar disponível pelo menos em 100 bibliotecas universitárias ou públicas portuguesas. E porquê? Porque o autor enfatiza a necessidade de estudar seriamente este ramo da literatura portuguesa, não só para satisfazer os antigos combatentes que a sociedade atual tende a esquecer e mesmo a desprezar, ou a denegrir em certos casos, mas também porque, pela primeira vez depois dos Descobrimentos e até ao século XVII, esta literatura exótica tornou-se parte integrante da história portuguesa, não se pode ficar indiferente à abundância destas publicações. Se se comparar o número de livros publicados em Portugal sobre a Guiné entre 1840 e, digamos, 1940, com o número de publicações de essência guineense aparecidas depois da guerra colonial, é fácil concluir que a explosão atual anuncia, pela primeira vez, a entrada desta Guiné nas preocupações de muitos portugueses.

Com efeito, é o fator colonial a corpo inteiro e as suas desditosas realidades que penetram nas casas de centenas de milhares de famílias, tanto as dos antigos combatentes como as dos retornados de Angola e Moçambique. Mesmo se eles não comprarem muitos livros, o fenómeno durará muito após o desaparecimento dos protagonistas e provavelmente durante, pelo menos, a geração que está para vir. Veja-se o que se está a passar com o impressionante movimento editorial francês que invade atualmente as livrarias com recordações e estudos referentes à I Guerra Mundial.

Mas regressemos a Mário Beja Santos, pondo-lhe uma questão ligeiramente impertinente. Se ele tivesse publicado há 50 anos um livro sobre a Guiné ele teria posto “do Tangomau” no seu título? Vejamos o que nos diz a 11ª edição do Grande Dicionário Português/Francês de Domingos de Azevedo, 1998. “Tangomau”, V. “Tanganhão”. “Tanganhão” = 1º) [Mercador de escravos]; 2º) [Negociante de gado, vigarista, adelo, vivaldino]. Mário Beja Santos, defensor do consumidor, a vender escravos em África? Impossível.

Historiador da Guiné, sei e já o sabia, o que a palavra quer dizer na Senegâmbia, mas o grande público e os próprios autores do dicionário não sabem. Eu quero provar, neste caso, que uma aceitação tão pejorativa do termo era corrente no regime de Salazar, mas agora que África é menos estranha à população letrada, pôr o sentido guineense do termo no título de um livro destinado a uma vasta difusão não choca ninguém. Estando o Império morto há mais de uma geração, assistimos à africanização da língua. Paradoxo da História.

Por conseguinte, Mário Beja Santos, A Viagem do Tangomau. Memórias da Guerra Colonial que Não se Apagam, Temas e Debates, Círculo de Leitores, Lisboa, 2012, 518 pp. é uma espécie de livro-balanço que começa pela narrativa de um estudante politicamente vigiado, se bem que simplesmente cristão de esquerda, que foi obrigado a sair da universidade para ser transformado num futuro alferes, será punido e afetado à colónia mais perigosa para a sua saúde física e mental. Evidentemente que falo da Guiné.

Amigo de Teixeira da Mota (o oficial de Marinha historiador que acabará a sua carreira como almirante e com quem eu encarei a hipótese, um pouco antes do seu falecimento, de coordenarmos um livro em 5 ou 6 volumes sobre a história colonial integral de Portugal, obra que não existia nos primeiros anos após a queda do antigo regime), o nosso autor embarca para África, e, se eu entendi bem, apaixona-se pela Guiné e pelas populações com quem convive. Não é um caso excecional na literatura dos antigos combatentes, mas não é, de facto, a norma. Não vamos segui-lo nas suas deambulações, mas não devem ter sido muitos os jovens oficiais que frequentavam o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa entre duas consultas no Hospital Militar de Bissau. Que pena que a minha História da Guiné (Editorial Estampa) tenha aparecido em 1989, 20 anos demasiado tarde para que ele tenha podido andar com ela. Ele teria visto que estava numa zona de rebeldes (o Cuor) à dominação portuguesa, no princípio do século XX.

Após o termo da guerra, ele regressará por três vezes à Guiné (1990, 1991 e 2010), irá rever os antigos combatentes da milícia e os caçadores nativos que comandou no seu tempo de alferes. E aqui as coisas tornam-se sombrias no livro: execução dos “traidores”, deliquescência, afundamento da economia, etc. Este “caderno de um regresso ao país quase natal” não se aconselha a toda a gente, mesmo a um leitor sentimental. Retrospetivamente, a idade de ouro era talvez o tempo dos portugueses, pelo menos para os que estavam do seu lado.

(continua)
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(1) Cf. René Pélissier, Africana. Bibliographies sur l’Afrique Luso-Hispanophone (1800-1980), 1981, 206p ; Du Sahara à Timor, 700 Livres Analysés (1980-1990) sur l’Áfrique et l’Insulinde Ex-Ibériques, 1991, 350p. ; Angola-Guinées-Mozambique-Sahara-Timor, etc. Une Bibliographie Internationale Critique (1990-2005), 2006, 748 p. 

Estas três obras descrevem cerca de 3000 livross e brochuras publicados em 20 línguas, em que uma cinquentena de páginas é dedicada a Portugal. Só para a Guiné, considerada individualmente, esta três obras referem 167 livros e para a Guiné inclusive nas obras existem muitas páginas, cerca de 200 outros livros. De acordo com uma sondagem feita pela Porbase, dois terços destes 367 títulos estão ausentes das bibliotecas universitárias ou públicas portuguesas, incluindo a Biblioteca Nacional de Lisboa. Estes três livros foram publicados por Éditions Pèlissier, 78630 Orgeval (França), viapelbooks@wanadoo.fr
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 20 de Janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10969: Bibliografia de uma guerra (66): A morte de Amílcar Cabral no livro "Guerra da Guiné: A Batalha de Cufar Nalu" (Manuel Luís Lomba)

Guiné 63/74 - P11158: Contraponto (Alberto Branquinho) (49): O Spínola que eu... entrevi

Foto: © Pierre Fargeas / Jorge Félix (2009). Direitos reservados.

1. Em mensagem de 17 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69) enviou-nos o seu quadragésimo nono contraponto.


CONTRAPONTO (49)

O SPÍNOLA QUE EU… ENTREVI

Não me pareceu que este texto pudesse ser colocado na série “O Spínola que eu conheci”, porque não o conheci. O que posso dizer é que, por duas vezes, pude entrevê-lo.

A primeira foi durante o período de permanência da minha companhia em Bissau (onde nunca estivera), aguardando o embarque de regresso a Lisboa. Encaminhava-me para a messe em Santa Luzia, quando o vi, ao longe, em frente à messe, entre meia dúzia de oficiais.

A segunda vez foi durante a formatura de despedida das tropas que, no dia seguinte, embarcavam para Lisboa. Que me lembre, na formatura, estava o meu batalhão, outro batalhão e, lá mais à frente, sob a minha direita, tropas da marinha, impecáveis, nas suas fardas brancas.

Eu estava à frente do meu pelotão e tinha a tapar-me a visibilidade sobre um palanquim de madeira (onde estava um microfone) o meu comandante de companhia e, em frente a ele, o coronel que comandava a tropa em formatura. Chegou o ComChefe, acompanhado de um oficial que se colocou mais atrás, sob a sua esquerda. Toque de “Sentido”. A seguir, o coronel fez o cumprimento militar. O ComChefe respondeu, elevando a mão direita, enluvada, mais ou menos à altura do rosto. Toque de “À-vontade”.

Colocaram um microfone em frente ao coronel. Compasso de espera para o acertar à altura adequada. O coronel colocou os óculos e retirou umas folhas de papel do bolso direito das calças. (Aproveitei para espreitar discretamente, ora sobre a direita ora sobre a esquerda.) O coronel começou a ler. Eu não prestava atenção ao que ele dizia, tentando entrever o general, que dava sinais de impaciência. Apurei o ouvido. O coronel falava da arma de Artilharia, da excelência do artilheiro, da história da Artilharia.

O general, que estava cada vez mais impaciente, chegou-se ao microfone do palanquim e ouviu-se, por entre as palavras do coronel, em som nasalado e grave:
- Já chega!

O coronel pareceu não ouvir e continuou a passar folhas e a ler. E o general:
- Schh! Schh!

De cabeça baixa, continuei a procurar entrever o palanquim e o general, olhando por cima do sobrolho e pensando: - Vai haver esturro!

O general, de novo:
- Já chega! Schh!

O coronel continuou. Acabou. Dobrou e guardou as folhas.

Ouviu-se o toque de “Sentido” e, logo a seguir, o coronel fez continência. O general mandou, com um gesto, fazendo oscilar o pingalim sobre o seu lado direito. Então recuou um pouco, ficando, assim, visível, olhou o oficial que o acompanhava e que estava à sua esquerda e, com o pingalim apontando o microfone, disse em voz bem audível, mais ou menos isto:
- Diz lá umas palavras aos rapazes sobre o significado deste acto, que voltam para as famílias, para as mulheres, para os filhos… que era o que o senhor coronel devia ter feito.

Alberto Branquinho
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 5 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11062: Contraponto (Alberto Branquinho) (48): Cuando sali de Cuba...

Guiné 63/74 - P11157: Memória dos lugares (219): Olossato, anos 60, no princípio era assim (5) (José Augusto Ribeiro)

1. Quinta série de fotos do Olossato que o nosso camarada José Augusto Ribeiro (ex-Fur Mil da CART 566, Cabo Verde (Ilha do Sal,  Outubro de 1963 a Julho de 196464) e Guiné (Olossato) (Julho de 1964 a Outubro de 1965), nos enviou em mensagem do dia 13 de Fevereiro de 2013.


MEMÓRIA DOS LUGARES

OLOSSATO - O princípio (5)


Foto 164 > Como era o nosso único carro de combate

Foto 165 > Material de guerra aprendido em combate ao IN

Foto 166 > Sem legenda

Foto 167 > Quintal do cabo-verdiano residente dentro da área do nosso quartel

Foto 168 > IN morto em combate 

Foto 169 > IN morto em combate

Foto 170 > Sem legenda

Foto 171 > Sem legenda

Foto 172 > Uma coluna militar

Foto 173 > Operações militares realizadas a partir do Olossato

Foto 174 > Sem legenda
Foto 175 > Sem legenda

Foto 176 > Sem legenda

Foto 177 > Sem legenda

 Fotos: © José Augusto Ribeiro (2013). Direitos reservados
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Nota do editor:

Vd. poste anterior de 24 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11147: Memória dos lugares (218): Olossato, anos 60, no princípio era assim (4) (José Augusto Ribeiro)

Guiné 63/74 - P11156: Do Ninho D'Águia até África (54): Ano e meio já lá vai (Tony Borié)

1. Quinquagésimo quarto episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:


DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA - 54


Os últimos meses de presença em cenário de guerra foram passados quase como todos os combatentes que cumpriram vinte e quatro meses de estadia na então província da Guiné, mais ou menos naqueles anos, portanto é quase um reviver de acontecimentos, as porporções do conflito estavam a aumentar de dia para dia, já era difícil viajar de uma povoação para outra sem haver contacto com os guerrilheiros ou com qualquer das suas armadilhas, colocavam minas e fornilhos nas principais vias de comunicação, utilizavam os seus corredores de abastecimento durante a noite, tinham as suas “casas mato”, na verdade os guerrilheiros já tinham alguma experiência em guerrilha e sabiam o terreno que pisavam.
O Cifra ia sobrevivendo, já tinha o seu calendário em papel quadriculado, onde todos os dias colocava uma cruzinha, a caminho de se completar. Já não eram tantos assim os dias que lhe faltavam para um possível abandono do mesmo cenário e regresso a Portugal.


Todos os dias pela manhã, ao colocar uma cruzinha no referido quadrado, considerava uma conquista. Não era bem uma conquista, era uma reconquista, era uma satisfação interior que não cabia dentro dele. Passavam dias, semanas e meses, e lá ia sobrevivendo, preenchendo os referidos quadrados do seu calendário. Não sai do aquartelamento, a não ser por motivos de ordem maior, tirando claro, as suas idas quase todos os dias, à vila e à tabanca com casas cobertas de colmo, que existia próximo do aquartelamento, onde estavam pessoas que já considerava família. Tirando isso, procura todas as desculpas possíveis para não se deslocar na distribuição do tal material classificado que era o novo código de cifra, que era renovado todos os meses, e tinha que ser distribuido por mão própria a todas as unidades que se encontravam em diferentes zonas de combate, a palavra “sobrevivência”, agora sim, era muito importante para o Cifra.


O movimento de militares aumentou na área, quase que triplicou em alguns dias, são centenas de militares em constante movimento, com as viaturas ocupando todos os espaços. É uma barafunda. Com a chegada de novos militares já ninguém se conhece. No dormitório colocaram mais do dobro das camas, neste momento existe dois andares de camas, muito chegadas umas às outras, com roupa camuflada, alguma molhada, a secar, colocada em cima dos mosquiteiros e em outros locais, dos militares que vão chegando das patrulhas. Os militares caminham por um labirinto de camas, como andassem dentro de um submarino, logo à entrada do dormitório está sempre uma caixa com uns resto de munições, que não auxiliam nada a quem quer passar, mas ninguém se importa com isso, e sempre que passa por lá um militar, dá-lhe um empurrão com a perna, mas alguém volta a colocá-la no lugar inicial, pois o militar que dorme na cama ao lado quer mais espaço. Em alguns dias de calor infernal, o cheiro a suor e outras coisas é insuportável, e alguns vêm dormir na rua, encostados ao dormitório, onde alguns dias por mês, alguém, muitas vezes até é o Cifra, vai buscar um balde, onde com um pouco de criolina e água, pincelam, com uma vassoura feita de ramos de alguns arbustos, em volta do dormitório. Na área ao fundo do aquartelamento, onde existem os tais furos de água quente, muito quente, a cheirar a enxofre ou coisa parecida, é um pandemónio. As couves e alfaces, que o Cifra tinha plantado, desapareceram. A área agora, está cheia de bidons, uns com água, outros vazios e amolgados, ao sol quente, abafado e húmido.


O Cifra ia escrevendo o seu diário, mas as palavras que completavam as frases eram sempre as mesmas, ataques ao aquartelamento, emboscadas, feridos, mortes, só mudava as datas, às vezes ficava desesperado e gritava:
- Merda, tirem-me daqui, pois estou a ficar doido.

Alguns diziam:
- O Cifra, ou está sobre influência, ou já está “apanhado”!
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 23 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11141: Do Ninho D'Águia até África (53): Comando de Agrupamento 16 (Tony Borié)