Queridos amigos,
Nestas gares marítimas do porto de Lisboa, Almada Negreiros trabalhou entre 1943 a 1949. Assombrou uns, desgostou outros, Duarte Pacheco terá dito desdenhosamente que teria sido um desperdício gastar aquelas centenas de contos com tais mamarrachos. Almada teve grandes defensores, logo no Arquiteto, Porfírio Pardal Monteiro, com quem já antigamente trabalhara na Igreja de Nossa Senhora de Fátima e na ampla sala do rés-do-chão do Diário de Notícias. Não deixa de ser curioso, cerca de três quartos de século depois, verificar a perfeita integração desta pintura naquele espaço, assenta como uma luva. O mundo da viagem marítima alterou-se radicalmente mas estas obras-primas da pintura modernista possuem tal vibração, deixam antever o olhar provocador do génio Almada, que é um gosto permanente aqui regressar. Para nós, antigos combatentes, nem sempre as recordações são boas, falando por mim, ali a umas centenas de metros, num lance de escada me despedi dos meus entes queridos debulhados em lágrimas, eu disfarçado de pimpão, era uma viagem de pouca mossa e com regresso assegurado, acreditassem todos. Foi grande a fezada e o regresso se assegurou, mesmo por debaixo dos painéis geniais de Almada, era agosto mas para mim era a primavera.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (27):
O génio de Almada Negreiros nas gares marítimas do Porto de Lisboa
Mário Beja Santos
Historiadores de Arte como José-Augusto França consideram que o trabalho de Almeida Negreiros nas gares marítimas da Rocha do Conde d’Óbidos e Alcântara é o ponto mais elevado das Artes Plásticas do chamado Modernismo Português, tal como ele se exprimiu entre os anos 1930 e 1940. Tudo terá começado pela necessidade de construir gares marítimas no Porto de Lisboa, era um apelo do início da década de 1930, a urgência consumou-se nas vésperas da II Guerra Mundial, entregou-se ao Arquiteto Pardal Monteiro a tarefa de executar o traçado das gares, pensou-se inicialmente em três, Alcântara, Rocha do Conde d’Óbidos e Cais do Sodré que nunca chegou a ser executada. Pretendia-se, dada a importância que as viagens marítimas tinham no tempo, de fazer um belo cartão de visita para um verdadeiro cais da Europa para os passageiros e para as malas postais da navegação marítima. Era indispensável dar uma boa impressão de conforto e igualmente de grandeza, era assim que se entrava no Portugal do Estado Novo. Porfírio Pardal Monteiro já trabalhara com Almada em dois projetos de tomo: a Igreja de Nossa Senhora de Fátima e a receção do Diário de Notícias, empreitadas hoje tidas como indiscutíveis pegadas do génio de Almada.
O pintor andou por aqui anos e anos, começou obviamente por Alcântara e arquitetou um espetáculo de cor e uma garridice temática que desgostou profundamente a Duarte Pacheco, felizmente que Almada tinha defensores de peso como António Ferro e o próprio Pardal Monteiro. No exterior, temos as linhas puras da Arte Déco, uma sábia entrada de luz e uma conveniente arrumação do espaço, naturalmente que não se suspeitava ao tempo ter ali na vizinhança a ponte sobre o Tejo. Há que recordar ao leitor que aqui se arribou em dia chuviscoso, pretendeu-se circunscrever a visita à gare de Alcântara. Para os interessados, chama-se a atenção que as gares marítimas são visitáveis nos sábados e domingos do último fim de semana de cada mês, com entrada gratuita.
Houve um apelo da memória, daqui se partiu em outubro de 1967 para Ponta Delgada, aqui o Uíge atracou em agosto de 1970, ao tempo o serviço de transporte de militares estava concentrado na Rocha do Conde d’Óbidos. Depois de contemplar o espaço do vestíbulo, hoje praticamente sem vida, sobe-se uma escadaria de linhas equilibradas, com uma bela entrada de luz, é-se rececionado por uma escultura dedicadamente patriótica onde não faltam o escudo com as quinas, e veio espreitar-se o dia brumoso por aquela janela e naquela varanda onde muitas lágrimas se devem ter vertido em dias de partida e aclamado com exclamações ululantes quem regressava para o convívio dos seus.
Ó mar salgado, que desta varanda guardaste a memória de dolorosíssimos acenos das partidas e júbilos de regressos, antes e depois de se erguer aquela ponte.
Aqui se fica em contemplação, atento aos pormenores, a entrada vigorosa da luz não se faz por acaso, o país era muito pobre mas o Estado era rico, havia que mostrar boa pedra marmoreada em todos os andares, em todos os espaços que o visitante trilhasse, como se se procurasse dar a sensação de se entrar numa infraestrutura quase apalaçada.
Outro pormenor que abona o talento do arquiteto, a relação entre o comprimento, largura e altura, a dimensão das portas, o espaço reservado para a pintura mural, as janelas rasgadas, a esplêndida iluminação do teto, é verdadeiramente uma sala de espetáculo, a voz ecoa, são pouquíssimos os visitantes, é uma vibração que enche de vida aquele enorme salão de espera ou boas-vindas e aonde era suposto que Almada Negreiros deixasse o traço resplandecente da grandiosidade do Estado Novo. Mas ele trocou-lhes as voltas, concebeu dois trípticos, um à volta da Nau Catrineta, uma lengalenga que recitávamos na escola e na continuação um mito, D. Fuas Roupinho e o milagre da Nazaré, a Aparição da Virgem, lá no Sítio; o outro fala-nos do Tejo, das embarcações do porto, as lides ribeirinhas e separadamente temos um par amoroso, talvez ele seja marujo e ela peixeira e há para ali uma festa campónia extremamente vistosa. É altura de irmos aos pormenores.
Tudo vai num reboliço a bordo na Nau Catrineta, os marinheiros têm umas solas para comer e há até quem insinue que a primeira vítima de antropofagia seja o capitão, vemo-lo afanoso no cesto da gávea, talvez aquele marinheiro ande à procura de terra à vista, e na vela enfunada vemos o espetro da morte em visita. Mas o mais belo de tudo é o ângulo em que Almada nos põe a ver a Nau Catrineta, de tresvês, como no segundo painel por ali anda a vista abismada por aquele longo mastro, também as velas enfunadas, do lado direito temos umas histórias de encantar, até prelúdios funestos, mas aquele anjo que parece caminhar na linha do painel tudo vai resolver a contento e daí o alvoroço do terceiro painel, as alegrias do reencontro, um esplêndido arraial em que Almada esmiúça os quadros da sociedade, em indumentária moderna. E lá temos o mural isolado com gente da Nazaré, a praia e os barcos e as lides que envolvem homens e mulheres, e milagre dos milagres um D. Fuas Roupinho transmudado em cavaleiro tauromáquico.
No outro tríptico, também de uma beleza extrema, e de um colorido quase efervescente, temos varinas descalças na descarga do carvão, um fabuloso painel com mastros, apetrechos marítimos e barcos, varinas dividindo o peixe e, separadamente, o que se pode chamar piquenique em dia de romaria, manifestamente Almada sentiu-se cativado pelo Tejo e exprimiu o realismo social, como é que aqueles senhores poderosos do Estado Novo não olharam enviesadamente as varinas descalças na descarga do carvão, não seria que o pintor Almada queria desconsiderar o que estava previsto como bonito bilhete-postal?
Perdoe o leitor este gosto pessoal de integrar a pintura de Almada em contexto arquitetónico, enche-me as medidas esta Arte Déco e não quero despedir-me sem pedir a vossa atenção para a natureza desta pintura mural, efetivamente ele trabalhou o fresco sobre a cal, mas introduziu imensos apontamentos pictóricos. Vêem-se para ali umas manchas de humidade, indispensável será o restauro dado que estamos a falar do que há de melhor da pintura portuguesa depois do génio meteórico de Amadeo Souza-Cardoso. E fica prometido um próximo fim do mês se irá visitar a gare da Rocha do Conde d’Óbidos.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 27 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22755: Os nossos seres, saberes e lazeres (479): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (19) (Mário Beja Santos)