1. Continuação da leitura do livro "Panteras à solta: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal", de Manuel Andrezo, edição de autor, s/l, s/d [c. 2010], 399 pp. il, disponível em formato pdf, na Bibilioteca Digital do Exército).
Título: Panteras à Solta
Desc. Físicia: 399 p. : il. ; 26 cm
Contém: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal
Notas: Manuel Andrezo é pseudónimo do Tenente-General Aurélio Manuel Trindade
O ten gen ref Aurélio Manuel Trindade foi cap inf, 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, Bedanda, jul 1965/jul 67. Irá completar 90 anos em 2023. Vive em Lisboa. Um exemplar do seu livro, impresso na Alemanha (c. 2020), foi-me gentilmente facultado, no verão passado, a título de empréstimo, pelo cor inf ref Mário Arada Pinheiro, com dedicatória autografada do Aurélio Trindade, seu amigo, datada de 13/12/2020.
UM PRÉMIO PARA O SOLDADO BALDÉ
(pp. 258-259)
por Manuel Andrezo
Para os militares que mais se distinguiam em combate havia na Guiné um prémio especial. Era o prémio Governador da Guiné, independente de outros louvores ou condecorações, e constava de uma viagem a Lisboa paga pelo Governador. Poucos militares tinham acesso a esse prémio porque ele era em numero muito reduzido, e sendo muitos os que se distinguiam em combate a selecção era rigorosa.
Um dia chegou uma mensagem dizendo que o prémio tinha sido atribuído ao soldado Baldé, um militar nativo da secção da Casa Gouveia. Todos ficaram contentes por o prémio do mês ter vindo para alguém da companhia e ainda mais para um soldado nativo que não conhecia Lisboa. O capitão mandou chamar o soldado Baldé e o seu comandante de pelotão.
─ Baldé, estás de parabéns, ganhaste um prémio. O Senhor Governador atribuiu-te o prémio Governador da Guiné. Embarcas em Bissau para Lisboa na próxima quinta-feira. É uma honra para ti e para todos nós este prémio. São poucos os soldados que o recebem, e tu até vais a Lisboa. Espero que te divirtas por lá e que quando voltares venhas tão bom soldado como tens sido. Amanhã chega o avião do correio e tu embarcas nele. Tens aqui dez mil pesos da Companhia que em Bissau trocas por escudos de Lisboa para te divertires por lá. Além disso, levas um mês de vencimento adiantado. O nosso alferes vai ajudar-te a tratar e a arranjares as coisas que deves levar.
Podes ir embora. Bom dia.
─ Bom dia, nosso capitão.
─ Oliveira, vê a roupa que ele leva. O verão lá é sempre mais frio que aqui e eu não quero que o Baldé ande a mendigar roupa. Se for preciso comprar alguma coisa compras no Zé Saldanha que a Companhia paga. Explicas no teu pelotão o que se passa, de forma a criar neles o desejo de também ganhar o prémio Governador da Guiné. Dizes aos outros comandantes de pelotão para fazerem a mesma coisa. Vai lá tratar disso. Até logo.
─ Até logo, meu capitão.
No dia seguinte, com a companhia na pista, o soldado embarcou para Bissau onde ficaria uns dias antes de seguir para Lisboa. O avião do correio vinha de Bissau para Catió, onde deixava o correio e o recebia com destino às várias companhias, levantando depois voo para fazer o circuito tradicional ─ Catió, Cufar, Empada, Cabedú, Bedanda, Catió. Nas diversas companhias entregava e recebia o correio.
Recebia também os doentes ou outros passageiros urgentes até ao limite da sua capacidade. Em Bedanda recebeu o soldado Baldé. Ao chegar a Catió o piloto verificou que havia dois passageiros para embarcar com destino a Bissau e apenas um lugar. Ao saber disto informou o oficial de reabastecimentos e pessoal que só podia embarcar um dos passageiros, pois um dos lugares, inicialmente disponível, fora ocupado por um soldado de Bedanda. A decisão do oficial não se fez esperar e transmitiu-a ao soldado Baldé.
─ Tu aí, desce do avião para entrar o nosso furriel. Vais depois no próximo avião.
─ Eu não desço ─ disse o soldado. ─ Capitão de Bedanda que é capitão do mato disse-me que eu ia neste avião para Bissau para ir para Lisboa como prémio do nosso Governador. Tu és capitão da CCS. Capitão da CCS não dá ordens a soldado de Bedanda diferente da do capitão do mato. Capitão do mato manda mais do que capitão da CCS. Eu vou para Bissau neste avião como disse capitão de Bedanda.
─ Tens que descer. Quem manda no avião sou eu e não o nosso capitão de Bedanda, de quem sou muito amigo. Nosso capitão Cristo não me avisou da tua vinda e eu tenho que mandar o furriel que vai de licença.
─ Não, nosso capitão. Eu não posso descer. Se nosso capitão da CCS é amigo do nosso capitão do mato não dá ordens diferentes dele. Nosso capitão manda no avião e nosso capitão manda em Bedanda, e o avião também é de Bedanda. Eu vou para Bissau porque nosso capitão de Bedanda disse para eu ir, e também tenho de apanhar avião grande para Lisboa. Em mim quem manda é capitão do mato e não capitão CCS.
Dada a situação que foi criada, e porque nada demovia o soldado porque ele não aceitava sequer a ideia de alguém contrariar o seu capitão do mato, o oficial de reabastecimentos e pessoal foi falar com o comandante de batalhão a quem expôs o problema. E falou então o comandante do batalhão.
─ É bom ver um soldado nativo que acredita tanto no seu capitão que não admite que alguém possa contrariar uma ordem sua. O soldado vai para Bissau. Sai do avião o militar a quem não faça diferença embarcar no próximo, ou então só embarca umpassageiro para Catió. Lembra-te de que o soldado que aí vai é um herói. Vai para Lisboa como prémio dos seus feitos em combate. Isto é tão raro que este é o primeiro soldado do batalhão a ganhar tal prémio. Isso devia ser razão suficiente para não ter havido este incidente.
Deste modo, o soldado Baldé conseguiu que uma ordem do seu capitão fosse respeitada no Comando do Batalhão, e ele continuou a considerar o seu capitão como o melhor do mundo. Mundo pequeno, mas era o seu mundo.
[Seleção / revisão e fixação de texto / subtítulos / negritos, para efeitos de publicação neste blogue: LG]__________
Notas do editor:
(*) Vd. postes anteriores com as nossas notas de leitura sobre o livro "Panteras à Solta";
9 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23603: Notas de leitura (1493): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte VIII: A visita de uma delegação do Movimento Nacional Feminino, em fevereiro de 1966: "O senhor capitão hoje está cheio de sorte, há meses que não via uma mulher branca, hoje vê duas"31 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23573: Notas de leitura (1484): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte V: Bedanda, em meados de 196529 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23565: Notas de leitura (1481): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte III: O Tala Djaló, cmdt do Pel Mil 143 e depois fur grad 'comando' da 1ª CCmds Africana, que virá a ser fuziladdo em Conacri, na sequência da Op Mar Verde
25 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23553: Notas de leitura (1478): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte I: "Os alferes não gostaram do novo capitão. Acharam-no com cara de poucos amigos."