Aviso prévio:
Esta história é, no essencial, verdadeira, mas é aqui romanceada, pelo que não se garante a veracidade total dos factos descritos. Por razões de falta de memória, própria da idade e da distância com a data do que se passou... Que me desculpe o Paulo Raposo pela inconfidência... (RF) (1)
O voo incandescente do Jagudi sobre Madina Xaquili (2)
Dulombi, Junho de 1970, CCAÇ 2405 (3)
O
Carvalho Araújo já estava em Bissau para nos levar de volta à Metrópole… Viera cheio de tropa para substituir os
velhinhos, ansiosos pelo fim da sua comissão.
O tempo custava a passar para finalmente se dar a rendição, e por isso, cada um à sua maneira ia encontrando formas de apressar o tempo, de esquecer a lentidão inexorável do relógio…
Ao cair da tarde, com a luz alaranjada do sol a começar a esconder-se na linha do horizonte poente, o Paulo Raposo, alferes da CCAÇ 2405, de quem guardo as mais pistorescas histórias, estava sentado perto do
bunker do Capitão, com o olhar fixo num ponto afastado a sul do aquartelamento, perto do arame farpado.
Aproximei-me e comentei:
- Eh, pá, não estejas a pensar na morte da bezerra… Já faltou mais e não tarda estaremos em Lisboa a beber umas imperiais e a olhar as
bajudas brancas que por lá abundam.
Retorquiu, pedindo-me silêncio com um gesto:
- Senta-te aí, pá, e espera até veres, mais minuto menos minuto, um daqueles
jagudis que sobrevoam a tabanca, fazer um voo picado!
O
jagudi é uma ave da família dos abutres que existiam em grande profusão na Guiné, para o qual tinha sido promulgada pelo Governo legislação proibindo a sua caça, dado tratar-se de um animal de grande utilidade na remoção de cadáveres, lixo, matéria orgânica em decomposição, etc…
Tinha um aspecto um tanto asqueroso, medonho, embora naturalmente não atacasse as pessoas... a menos que já fossem cadáveres, é claro...
Meio curioso, disse-lhe:
- Explica-te lá…
Apontou o dedo e acompanhei com o olhar a direcção indicada.
- Ali junto àquele poste do arame farpado está uma armadilha que montei para caçar um daqueles filhos da puta – despejou de chofre o Paulo Raposo, rindo muito…
E continuou:
- Tem um laço em arame e um naco de carne fresca perto do laço…O
jagudi vai picar a carne e, ao fazê-lo, terá de enfiar a cabeça no laço…
- Depois, com o naco de carne no bico recuará e accionará o arame que se fechará em volta do pescoço…
Triunfante, exclamou, com um sorriso aberto:
- E pronto, depois já dali não sai…..
Embora conhecendo o
enfant terrible que era (e ainda é… ) o Paulo Raposo, não entendia bem ainda qual era o seu objectivo. Mas não tardaria a saber.
Tal como previsto, eis que um
jagudi mergulha em grande velocidade e, segundos depois, vejo-o debater-se, preso pelo pescoço na armadilha montada pelo Paulo Raposo.
Levantámo-nos de repente e segui o Raposo que corria em direcção ao
jagudi, ao mesmo tempo que chamava o cabo enfermeiro, intimando-o a comparecer rapidamente no local…
Com a ajuda de vários soldados e alguns nativos que se aproximaram curiosos, o animal foi imobilizado e foi então que finalmente percebi o objectivo do Paulo.
Mandou o cabo enfermeiro trazer-lhe algodão e com ele fez dois rolos que mandou colocar e atar com adesivo por baixo das asas do infeliz
jagudi…
De seguida embebeu o algodão em álcool, libertou a ave do laço que a prendia, sempre com vários soldados a segurá-la, e acendeu um fósforo que aproximou do algodão…
Incendiado o álcool, o
jagudi foi libertado e, em voo veloz, afastou-se em direcção a Norte, deixando um rasto luminoso na noite que entretanto acabara de cair…
Ficámos olhando a bola de fogo diminuir progressivamente de tamanho e finalmente desaparecer…
Como crianças travessas, riamo-nos todos, meio nervosos, estranhamente orgulhosos com a façanha acabada de praticar, sem que para isso encontrássemos motivo justificativo… E nem interessava…Importante é que tinhamos deitado uma pedrada no charco da monotonia…
As questões ecológicas, hoje tão em voga, eram naqueles tempos e naquela situação de guerra, algo que não nos precoupava…
Talvez os que hoje lêem isto não consigam entender tamanha infantilidade… Mas as circunstâncias e a idade duma geração transformada à força em idade adulta sem ter tido tempo de percorrer as etapas próprias de uma adolescência despreocupada, deverão obter, senão a justificação, pelo menos a compreensão dos leitores.
Mas voltemos ao
jagudi…
Trata-se de um animal de grande resistência fisica, de carne duríssima e musculosa, capaz de lutar e vencer animais de maior porte e ferocidade, como é o caso de felinos selvagens e até leões (4). Não sucumbiria portanto, facilmente, ao calor do algodão em brasa…
E por isso continuou o seu voo assustado e veloz, certamente na ânsia de se libertar do fogo que o perseguia… E foi assim que poucos minutos depois sobrevoou, já noite fechada, o quartel de Madina Xaquili, a cerca de 15 kms em linha recta, onde se econtrava estacionada uma Companhia de Caçadores composta por madeirenses (5)…
Os sentinelas deram o alerta para uma estranha bola de fogo que se aproximava velozmente em direcção ao quartel e, sem mais pensar, desencadearam forte tiroteio contra aquela “arma desconhecida”…
O intenso tiroteio e alguns rebentamentos eram perfeitamente audíveis no nosso quartel e, por isso, o Capitão Jerónimo mandou estabelecer contacto rádio com aquela Companhia, indagando ao seu homólogo:
- O que se passa? Estão a ser atacados? Precisam de ajuda?
Resposta do outro lado:
- Eh, pá, só sei que estamos a ser sobrevoados por uma coisa luminosa que tem um comportamento muito estranho…
Deve ser alguma arma nova que desconhecemos…
E o nosso Capitão:
- Mas…. estranha, porquê?
A voz nervosa do Capitão de Madina Xaquili, retorquia:
- Eh, pá, parece uma coisa teleguiada, ou com sensores! Quando disparamos para a sua frente, ela recua…Quando disparamos para a sua rectaguarda ela avança! Nunca vi coisa assim…
De novo o Capitão Jerónimo:
- Mas continua? Não conseguem acertar-lhe?
Do outro lado, a resposta:
- Bom, agora já há uns minutos que desapareceu.. Mas acho melhor continuarmos a bater a zona para nos certificarmos que não regressa…
Finalmente o Capitão Jerónimo, pôs termo ao diálogo:
- Ok… Parece que vocês já eliminaram a tal arma …Se precisarem de alguma ajuda, não hesites! Basta pedires… Por agora, boa sorte e terminado!
Escusado será dizer que o Capitão Jerónimo não sabia de nada do que se tinha passado minutos antes com o
jagudi…
Soubemos, anos mais tarde, contado pelo mesmo Capitão Jerónimo, que ainda ficou mais uns meses em Bissau depois do nosso regresso a Lisboa, que a Companhia de Madina Xaquili teve que pedir remuniciamento dos seus
stocks de material de guerra…
Prolongaram o tiroteio até quase esgotarem as munições que tinham de reserva!
Rui Felício
Ex-Alf Mil Inf
CCAÇ 2405
Dulombi
_____________
Notas de L.G.:
(1) Foi o próprio
Paulo Raposo que me mandou estas histórias, à revelia do seu autor. Eis a mensagem telegráfica do nosso tertuliano de Montemor-O-Novo: "E aí vai mais fruta, é pró menino e prá menina"...
Há dias foi o próprio Rui Felício que me deu luz verde para continuar a publicar as "estórias de Dulombi" (a expressão é minha):
"Meu Caro Luis Graça: Fiquei surpreendido pelo facto do Paulo Raposo te ter enviado as minhas
estóriss da Guiné...
"!Mandei-as para ele e para o David, mas achei que não devia inundar ou deteriorar o teu blogue com historietas muito pessoais e que pudesses achar descabidas aqui.
"Mas a publicação de uma delas demonstra que, afinal, achas que é merecedora de publicação.. Fico honrado com isso e agradeço-te a distinção.
"Aproveito para te dizer que o Vitor David me recomendou de não protelar muito o envio das minhas fotos (uma antiga e uma recente). Como ele sabe muito bem, sou muito desleixado com os arquivos destas coisas e pedi-lhe que me enviasse, dos arquivos dele, uma foto minha tirada na Guiné.
"Ele já me mandou uma há algum tempo e agora só estou à espera de encontrar uma actual para depois te enviar as duas conjuntamente.
"Um abraço. (Quero que penses numa forma de nos encontrarmos .. gostaria de te conhecer pessoalmente... E renovo os parabéns, já anteriormente dados, para o teu blog). Rui Felício."
(2) O título da estória é da minha responsabilidade
(3) Vd post de 12 de Fevereiro de 2006 >
Guiné 63/74 - DXXV: Paulo Raposo e Rui Felício, dois novos camaradas (CCAÇ 2405, Galomaro, 1968/70)
(4) Vd. post de 8 de Junho de 2005 >
Guiné 63/74 - LII: Antologia (2): A fábula do jagudi e do falcão
(5) Julgo tratar-se da CCAÇ 2446 que, juntamente com os
periquitos da CCAÇ 12, sofreu um violento ataque, em Madina Xaquili, em 24 de Julho de 1969, ao anoitecer... A CCAÇ 12 teve um ferido grave; e a companhia madeirense dois mortos e vários feridos.
Vd post de 29 de Junho de 2005 >
Guiné 69/71 - LXXXVIII: O baptismo de fogo da CCAÇ 12, em farda nº 3, em Madina Xaquili (Julho de 1969)
Madina Xaquili ficava a sudoeste de Bafatá, na direcção do Rio Corubal. Vd. mapa de Padada.