1. Mensagem do nosso camarada Armando Pires (ex-Fur Mil Enf.º da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70), com data de 6 de Setembro de 2013:
Caro Carlos Vinhal.
Camarada e Amigo.
Meu caro Editor.
Conforme acordámos, aqui tens o episódio número 10 da série "Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista".
Dele farás o que melhor for julgado.
Quero explicar a razão daquela cor sépia que apresentam as duas fotografias de Bissorã. Naquele tempo eu fotografava em slides. E deu-me para colocar (esperteza a minha...) um filtro laranja na lente da máquina. O resultado foi aquilo, não há nada a fazer, não há Photoshop que as salve.
Um abraço que estendo a todos os camarigos.
Armando Pires
FURRIEL ENFERMEIRO, RIBATEJANO E FADISTA
10 - ALÔ BISSORÃ, CHEGUEI!
Portanto, o DO aterrou em Bissorã eram nove da manhã.
Nem fanfarra nem guarda de honra à minha espera.
Apenas um Unimog para me levar a mim, mais ao correio e outras mercadorias que o avião transportara.
Sem esquecer, evidentemente, o Machado, o meu cabo enfermeiro, que viera receber-me, dar-me as boas vindas, e levar-me ao comando onde era devida a minha apresentação ao comandante da companhia.
Duas ou três centenas de metros após termos saído da pista de aviação, seguindo por uma estrada pejada de tabancas de um lado e do outro, primeira surpresa. Entrámos numa enorme rotunda, cuja, ao centro, tinha um monumento em honra de Raimundo António Serrão, que foi governador da Guiné entre 1949/53, na qual desaguavam, contou-me o Machado, as estradas que vinham de Mansoa, a sul, de Mansabá e Olossato, a leste, do Barro, a norte, e onde havia, na tal rotunda de que vos venho falando, o edifício, pasmei, dos correios.
- Ó Machado, mas aqui há correios?
- Há sim, furriel, quando quiser telefonar à família vem aqui – começou ele a “ciceronear” – e aquela casa ao lado é a enfermaria civil, onde nós vamos dar consultas.
- Nós?? - Gritei eu, já a pensar em que trabalhos me ia meter.
- Ó furriel, não comece já a enervar-se que ainda é cedo. Depois explico-lhe tudo.
E como quem quer desviar conversa, o Machado, que tinha esse condão de me irritar primeiro para me acalmar depois, apontou para um enorme casarão que ficava na outra extrema da rotunda e anunciou:
- Ali é a casa do administrador de Bissorã.
Bissorã – 1969/70 – A rotunda de Bissorã. Ao centro, o monumento a Raimundo Serrão. Depois, e da direita para a esquerda, os correios, a enfermaria civil e a sede da administração da vila.
O Unimog fez a rotunda em direcção à casa do administrador e, mesmo em frente à escadaria do edifíco, havia uma rua para a esquerda, vedada por uma cancela que ergueu para nos dar passagem.
Era uma rua longa, sempre a descer, ainda que ligeiramente, que começava com duas vivendas, uma à esquerda, “é a casa do comandante”, disse o Machado, outra à direita, “aqui é a messe dos oficiais”, precisou o meu inestimável cicerone, e continuando por aí abaixo foi dizendo, “aqui são as casernas e o refeitório do pessoal… aqui a igreja (como se fosse preciso dizer)… esta casa à sua direita é a secretaria da CCS… também lá fica o posto de rádio, o centro cripto e o centro de mensagens… tudo ali… atrás é o paiol das munições… tá a ver, furriel, os espaldões dos morteiros?”, e já estávamos no fim da rua, com o Unimog outra vez a virar à esquerda mas a parar logo ali.
Tínhamos chegado ao edifício do comando do batalhão.
Era outro casarão, composto de rés-do-chão e primeiro andar. Em cima dormiam os oficiais, em baixo, um enorme espaço preenchido com secretárias onde trabalhava o pessoal da secretaria, e dois gabinetes para os comandantes. Num deles estava o capitão Alcino, comandante da CCS, a quem pedi licença para entrar e me apresentei.
- As férias foram boas, ó Pires?
Bissorã – 1969/70 – À entrada do quartel, as duas árvores que davam sombra às vivendas do comandante e da messe de oficiais. As casernas e o refeitório dos praças, a capela, à direita a secretaria e as transmissões, e lá no fim, onde se vê frondosa árvore, a secretaria do batalhão.
Faltava-me cumprimentar o “meu doutor” Oliveira para ir ao que mais ansiava. Saber das minhas coisas que, recordo, tinham ficado em Bula quando eu parti para férias.
- Ó Machado, onde é que está o doutor Oliveira?
- Está lá em cima, na enfermaria.
- Vamos lá.
E seguimos, agora por uma rua mergulhada na sombra de enormes mangueiras, e o Machado, sempre na sua função de cicerone, a dizer-me que “aqui à esquina é o clube, onde se junta a gente fina cá da terra e onde à noite, quando calha, a malta vem ao cinema… aqui é que o furriel tem de vir comer, é o tasco do Lavinas, um português que fez aqui a tropa (CCAÇ 1419) e ficou cá… aqui é a oficina de armamento e já chegámos”.
"Chegámos onde?" – perguntei cá para dentro de mim, acabado de entrar numa espécie de beco onde só via, ao fundo, as oficinas auto e, ao lado, uma casita azul com uma porta mal amanhada a que se tinha acesso subido três degraus de cimento.
Pois. Era aí a enfermaria.
Entrei e à direita, atrás de um secretária, rodeado de prateleiras com medicamentos, estava o doutor Oliveira a dar consultas.
- Viva, doutor!
- É Pires! Então pá, como é que estava lá a nossa terra?
Não sei se também vos aconteceu, mas parecia não haver ali ninguém que, ao ver-me, não perguntasse “como estava a nossa terra”.
Cumprimentei o resto do meu pessoal, João, Maltez e Teixeira, fiquei a perceber que naquele cubículo, além da secretária do doutor só cabia mais uma marquesa, vi que havia uma ligação para outro espaço atrás daquele, mas tão acanhado quanto ele, com lugar para seis camas montadas em beliche.
- Ó doutor, então isto é que é a nossa enfermaria?
- Já viste pá, com o barulho das oficinas ao lado, está aqui uma merda jeitosa para um gajo recuperar de uma carrada de paludismo.
- Bem, se o doutor dá licença, preciso de me desfardar, tomar banho e saber das minhas coisas.
Não foi necessariamente por esta ordem. Eu queria, acima de tudo, saber das minhas coisas.
E esclareçamos.
As minhas coisas, para além das pouco relevantes, para o caso, peças do fardamento que ficaram em Bula, eram os livros, as fotografias que decoravam a cabeceira da minha cama, as bonecas em miniatura como amuletos, o corno do Aleixo, o cinto do “Rapina” (ver foto em
P11567) e, ainda mais importante, a minha mala.
Importante pelo valor afectivo que lhe tinha, ou melhor dizendo, pelo valor afectivo que lhe tenho.
É uma pequena mala de cartão, dentro da qual a minha mãe meteu a roupa com que eu aos quatro anos de idade… repito, aos 4 anos de idade… fui entregue, em Santarém, aos cuidados do revisor do comboio que me levou com destino ao Porto, cidade que adoro e onde fiquei 2 anos, até à idade de entrar para a escola.
Não sei o que levou a minha querida e saudosa mãe a guardar aquela mala, sei que foi dentro dela que eu levei para a Guiné o que me era precioso, que dentro dela tais preciosidades regressaram a casa, e é dentro dela, dentro da “minha caixa dos segredos”, como já por duas vezes aqui lhe chamei, que guardo os meus tesouros.
Com os amigos partilhamos o que de melhor temos. Aqui têm a mala dos meus tesouros, a “minha caixa dos segredos”. No fundo da mala existem mais tesouros. Mas esses respeitam a outras vidas.
Pois quem levou a mala para Bissorã foi o Filipe, furriel miliciano vagomestre, a quem ainda hoje me liga uma sólida amizade, nascida em Chaves, onde formámos batalhão, quando ele, futebolista de pé quente, disparou de fora da grande área um tal pontapé que a este, que sou eu, guarda-redes de mãos rôtas, virou ao contrário o polegar da mão esquerda.
Apanhei o Filipe à porta do comando e avançámos em direcção à casa dos sargentos, ali a três dezenas de metros, num caminho que levava a Missirá.
Era uma habitação com uma ampla sala de entrada, onde se distribuíam doze camas. Ao centro uma porta de acesso a um estreito corredor que fazia separação a três quartos interiores. O Filipe conduziu-me ao quarto mais próximo da casa de banho e disse-me, “este é o nosso”.
Nosso porque só lá cabia a cama dele e a minha.
O Filipe tinha seguido a velha máxima do quem parte e reparte…
Sentámo-nos frente a frente na beira das camas e eu disse-lhe:
- Ó Filipe, mas isto não é um quartel. Bissorã não tem quartel.
- Pois não, Pires. Isto foi uma terra muito importante, um grande entreposto agrícola. Não sei se viste que todas as casas tem em anexo espaços que ou foram armazéns ou lojas. As casernas dos soldados eram enormes armazéns onde se guardavam as produções de arroz, mancarra e castanha de cajú. Quando começou a guerra, aos poucos, os portugueses foram embora, para Bisssau, ou até mesmo de volta a Portugal. Como o exército precisava de instalações, foi ocupando o que ficou vazio.
- E está cá muita malta?
- Não Pires, só estamos nós e uma companhia operacional, a CCAÇ 2444.
- E também ficam aqui connosco?
- Não, eles têm instalações separadas. Têm casa lá em cima, junto à casa do administrador, e também do outro lado do rio, no destacamento da Outra Banda. Se quiseres, a seguir ao almoço, damos lá um salto.
- Ó Filipe, estou podre de cansado. A seguir ao almoço quero é dormir um bocado.
A modos que a conversa terminava ali, posto que fomos almoçar à D. Maria, mulher do Sr. Maximiano, dois cabo-verdianos que recebiam uma subvenção da companhia para nos dar de comer.
Saímos de casa, e, quando íamos a atravessar a rua, quase fui abalroado por um gajo em grande velocidade numa motorizada que fez duas “chicuelinas” para me evitar, seguindo em frente sem dizer água vai nem água vem.
- Que é isto, ó Filipe?
Com um largo sorriso na cara, responde-me ele, “é pá, é o maluco do Rebola, furriel da 2444”.
Apresentado assim pelo Filipe, a espantação passou-me e pensei para com os meus botões:
- Queres ver que já estou com a minha gente?
____________
Nota do editor
Último poste da série de 30 DE AGOSTO DE 2013 >
Guiné 63/74 - P11994: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (9): Um reencontro para agasalhar a idade