quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9019: Os nossos Seres, Saberes e Lazeres (37): Palavras de um senhor defunto, um livro de Mário Serra de Oliveira (4): Autobiocómica: Passatempo, traquinices, enquanto teen-ager

1. Continuamos a apresentar o livro "Palavras de um senhor defunto",  de autoria do nosso camarada Mário Serra de Oliveira* (ex-1.º Cabo Escriturário, Bissau, 1967/68).


PALAVRAS DE UM SENHOR DEFUNTO

AUTOBIOCÓMICA (2)

Passatempo, traquinices, enquanto ‘teen-ager’

Ora, tal como é mencionado nalgum lado nestas linhas, a família do autor era mesmo bem pobre de tal modo que, conforme as horas passavam, a fome apertava e, não havendo forma de – com choro ou sem choro – que um milagre acontecesse, tal como quando a Rainha D. Isabel transformou as rosas em pão... (seria verdade?)... só restava ao autor tentar deitar a mão ‘ao alheio’!...

A coisa agravava-se mais ainda, quando ‘um aperto agudo’ no ‘esófago’ dava um sinal indicativo, indicando que, o estômago estava mais abaixo e – aí é que estava o problema – indicativo que o estômago estava mais abaixo, mas vazio!!!...

O estômago até podia estar onde quisesse. Isso não era o problema. O problema era estar onde estava e no estado em que estava. Pelo menos ali, o estômago não estava como o ‘defunto’ estava, que era, como foi dito várias vezes nalgum lado nestas linhas, completamente mudo e frio. Ali, o estômago, estava bem vivo e, para que constasse, fazia com que o vizinho logo a seguir – o esófago - fizesse lembrar ao dono e portador dos dois – o estômago e o esófago – que eles existiam e que, como tal, eles não tinham culpa alguma da ‘fartura de miséria’ que rodeava a família do autor.

Eles, o estômago e o outro, não se governavam com lamurias.

Eles estavam vivos e bem vivos - antes não estivessem – e, como tal havia que fazer algo e rapidamente, providenciando aos mesmos, algum combustível, mastigado ou não.

Quanto mais depressa melhor.

Mais!!!

O estômago não queria saber da origem de, fosse o que fosse - excepto pedras ou excrementos – mas que lhe fosse fornecido e muito rapidamente porque, ainda por cima, o nariz do autor cheirava aquele cheiro a ‘pão-trigo’ vindo de uma padaria situada nas traseiras da casa da família dele, conforme é referido nalgum lado nestas linhas. E, quando assim era, influenciado ou não pelo dito cheiro, o ‘aperto no esófago’ a comando do estômago, ainda se tornava mais insistente e agudo.

Era uma aflição aflitivamente aflitiva!...

Daí que, o autor, portador do estômago reclamando manutenção urgente – antes que gripasse não tinha outro remédio do que tentar deitar a mão fosse ao que fosse, desde que fosse comestível – excepto o acima – a fim de tentar ‘enganar’ o dito ‘complainer’ que – pensava ele, o autor, que ele não voltava ao mesmo.

Era o não voltavas porque, aquele gesto de tentar enganar, era sol de pouca dura devido a ser assim mesmo.

Hora após hora, dia após dia, semana após semana, e o pior de tudo ainda é que não se vislumbrava ‘luz verde’ – ou algo para trincar - na escuridão do horizonte próximo e arredores, da casa da família do autor. Assim, o andar descalço, até ajudava a atenuar a situação – embora somente temporariamente – porque, esta coisa de subir muros para saltar para dentro dos quintais, e subir a árvores de frutos dos outros, se andasse calçado a coisa poderia complicar-se.

Por várias razões mas por duas essenciais.

Uma - era o facto de que, o tempo que perdia a descalçar-se poderia ser vital na urgência demandada pelo esófago.

Duas – era o facto de que, se acaso o dono do que quer que fosse – a que o autor andava a deitar a mão – se o dono aparecesse, o autor corria o risco de ficar sem o calçado – fosse ele que calçado fosse e, claro, não só o esperaria ‘um ajuste de contas’ em sua casa, quando ele aparecesse descalço como, também correria o risco de voltar a ficar outros 11 anos à espera de novo par de calçado – botas ou o que fosse. Desta forma, o andar descalço era de uma ajuda.

Graças Deus pelo pé descalço. Não era nem foi por acaso que, as primeiras botas demoraram cerca de 11 anos a chegar!...

Mas, nesta coisa de subir a árvores, o autor teve a brilhante ideia de, um dia, decidir serrar uma pernada de uma árvore – figueira, diga-se já – pelo facto de que, na ponta da mesma, se encontrar lá um ninho de ‘Papa-figo’ - o qual o autor não conseguia alcançar, devido à fragilidade da pernada – bem como uns quantos figos que o autor queria e precisava de ‘papar’ para acalmar as picadas no ‘esófago’ cujo sinal recebia do estômago. Assim, não podendo alcançar nem ninho nem figos, a solução seria – e foi – cortar a pernada porque, na mente do autor, funcionava a ideia de que, se os figos são dados pela figueira para a gente comer, de modo algum lá iriam ficar.

Garantido!!!

Foi aqui que, a agilidade do autor ficou patente devido a que o mesmo estava escarrapachado na dita pernada virado de costas para a ponta da mesma – local onde o ninho e os figos se encontravam – e, o autor, começou a serrar a pernada junto ao toro, com consequências quase desastrosas porque, com o peso dele na pernada, esta cedeu mais repentinamente do era de esperar – ou era de esperar ? - e, de repente... catrapum... figueira abaixo, ficando dependurado numa outra pernada mais abaixo – qual ‘monkey, chimp’ ou qual macaco(?)’ - muita sorte teve ele não se estatelar directamente em cima de umas empas (estacas) que estavam num feijoal, mesmo por baixo da figueira.

Entretanto, e como é mencionado nalgum lado nas linhas interiores deste livro, o autor, enquanto jovem, além de se dedicar a ‘brincar aos meninos’ com garotas lá do sua aldeia, matou um gato preto – e a razão é bem referida noutro local destas linhas – e, ao mesmo tempo, sempre que alguma garota se fazia rogada não querendo alinhar naquela coisa do ‘brincar aos meninos’, então, como é referido, o autor, aproveitando o buraco existente em quase todas as portas da vizinhança – que era o buraco para o gato entrar e sair, enquanto os ocupantes da casa, iam laborar cada um para a suas hortas cada qual para seu lado, ele metia toda a espécie de ‘bodega’ que lhe desse na gana, como pedras, bugalhos de carvalho, serradura e, na casa daquelas garotas cuja família se tinha um pouco menos pobres que a família do autor – eram pobres mas a caminho de não serem tão pobres como a família do autor - e que, como tal, às vezes arrebitavam um pouco o nariz, olhando sobranceiramente para o autor, assim como que dizendo: ‘cresce e aparece ou desta carne não comes tu’, então ele, aproveitando as visitas que às vezes fazia ao seu irmão que era pastor de guardar cabras, aproveitava a oportunidade de recolher – apanhando – ‘caganetas de cabra’ já secas, as quais metia em caixas de fósforos vazias.

Depois, aproveitando algum jornal velho que às vezes andava por ali a voar, - o autor não se podia dar ao luxo de comprar papel de embrulho - embrulhava cada caixa de fósforos e, aproveitando aquela coisa que às vezes sai dos troncos das cerejeiras – a que o autor chamava cola – colava o jornal para que a caixa de fósforos vazia não ficasse à vista.

Então guardava cada caixa num local previamente escolhido à espera de encontrar a primeira que arrebitasse o nariz e, se isso sucedesse – e sucedia bastantes vezes – lá ia uma caixa de fósforos com ‘m&ms’ de cabra pelo buraco do gato adentro.

Ou então, aproveitando a oportunidade de, quando via algumas dessas garotas a brincar com outras - outros garotos, ao lado de um balcão de pedra ‘cantaria’, onde, no topo do mesmo, tinham feito um ‘refisgo’ para que a água da chuva corresse para fora do balcão, ele, o autor, tentava subir ao balcão de modo a que ninguém visse, e vedava o ‘refisgo’ de modo a encaminhar o líquido - principalmente mijo, fresquinho ainda quentinho, acabado mesmo de sair de onde saía – de modo a que fosse desaguar por cima do local onde as garotas e garotos ‘snobs’, brincavam.

Uma outra faceta que o autor, quando jovem, teve e tinha, era ‘querer’ ser ‘terrorista’ para se vingar de todas as ‘afrontas’ que alguns dos ricos lá da aldeia do mesmo, fizeram à sua família.

Com isso em mente, aproveitando o facto de que um dos seus irmãos – aquele que tentou praticar de veterinário sem licença, conforme é mencionado nalgum lado nas linhas deste livro – tinha uma caixa de chá ‘lipton’ quase cheia de ‘lindcão’ que, por não aparecer no dicionário, terá que se explicar que se trata de grão de uma espiga de trigo (?) ou centeio que, ao contrário dos outros grãos, nasce desfigurado - retorcido - e de cor escura que, naquele tempo, os ‘farrapeiros’ que visitavam as aldeias à procura de peles de coelhos, lebres, etc, procuram muito porque, constava-se que o ‘lindcão’ servia para fazer não se sabe que tipo de medicina. Se servia ou não, para o autor, continua a ser uma incógnita.

O certo é e foi que, o autor ‘roubou’ a lata do chá ‘lipton’ ao irmão para vender o ‘lindcão’ lá numa mercearia, a qual fazia negócios com o ‘farrapeiro’. E, aproveitando a verba recebida, o autor gastou tudo na compra de bombas de ‘S. joão’ e, apesar de na ocasião ser bastante guloso, só comprou 25 tostões de rebuçados, daqueles que traziam um boneco com figura de jogadores de futebol.

Tudo o mais, foi só bombas.

Assim, embora comprometido com o roubo feito ao irmão dele, de modo algum queria chegar a casa dos pais, carregando com tanta bomba. Decidiu abrir uma cova, colocar as mesmas dentro de um saco de plástico que voava por ali – mais um – e enterrou tudo num local que ainda hoje não sabe porque - pouca sorte dum cabrão - confessou o autor – o terreno tinha sido vendido e, de repente, entrou uma escavadeira, dando cabo do esconderijo das bombas.

Mas como a ideia era poder juntar muitas, para tentar dinamitar a casa lá do tal ricalhaço - não digo o nome por uma questão de segurança – e, querendo comprovar que as mesmas bombas não eram falseadas, meteu umas 10 nos bolsos para se certificar que funcionavam.

Assim, sozinho e estando de guarda ao caldeiro com a vianda para os porcos – facto que é referido nalgum lado nestas linhas - coisa que era uma tarefa diária, o autor decide experimentar e - vejam só - abriu uma das bombas pelo lado oposto ao rastilho e toca a deitar a pólvora nas chamas da fogueira, por debaixo do caldeiro.

Que liiiiiiiiindo!!!

Aquilo, tudo luminoso fazia lembrar o fogo de artifício.

Que coisa linda!!!

Bem, descoberto o ‘engenho’ o autor decide colocar todas as restantes 9 bombas de ‘cú’ virado para a lareira (?) – monte de lenha a arder, debaixo do caldeiro, com a vianda p’rós porcos.

A ideia, até era boa mas, o resultado é que não.

Portanto, tal como o autor esperava, cada das bomba devia pegar fogo pelo lado de trás, não utilizando o rastilho mas – há sempre um mas – o problema foi que, quando uma delas se incendiou como devia – que lindo espectáculo!!! – a chama pegou fogo ao rastilho da que esta mais próxima e catrapum, pum-pum-pum-pum-pum-pum-pum-pum, caldeiro a dançar, brasas pelo ar, vizinhos a gritar e a cama dos pais do autor quase a arder.

É que a cama estava logo ali ao lado da cozinha, apenas com uma cortinazinha feita de um lençol velho, com uns quantos buracos naturais pela idade, e aqui e ali – mas lá na cortina (?) – uns sinais de algumas assoadelas que, como é mais que lógico, não havendo muito mais opções para limpar ‘o monco’ que às vezes aparecia no nariz dos mais novos – incluindo o nariz do autor.

Aqui não só foi ‘que lindo’ porque de facto, ia sendo o lindo e o bonito.

Depois disto, o autor crê que só apareceu em casa, depois de dois dias escondido numa choça - cabana lá numa horta de alguém, lá na encosta da serra da Gardunha, já depois de ter pesquisado quantas árvores de fruto havia por ali nas redondezas – pertencessem ou não à família dele.

Portanto, a tal ideia de querer ser ‘terrorista’ aterrorizou-o de tal ordem que, para que conste, hoje é um homem pacífico que sabe perdoar ao seu semelhante, excepto a quem o quiser ‘falcatruar’.

A terminar, não havendo mais de realce a realçar, resta acrescentar que, o autor, até talvez pudesse vir a ser um filósofo – se tivesse nascido numa família mas abastada mas como, filosoficamente disse ‘não se sabe que filósafo’, que – ao contrário do sábio – não sabendo que sabia, aventurou-se a dizer o que pensava saber e sem saber o que dizia, acabou por ficar a saber que, aquilo que dizia sem saber era aquilo que sabia, daí que, quando eu digo o que digo é porque o que digo  é o que sei.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9008: Os nossos Seres, Saberes e Lazeres (36): Palavras de um senhor defunto, um livro de Mário Serra de Oliveira (3): Autobiocómica: Nascimento, Educação e Amores

Sem comentários: