sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9094: Notas de leitura (305): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Outubro de 2011:

Queridos amigos,
Neste diário de JERO aprende-se muita coisa sobre o que era o Norte da Guiné em 1964, há mesmo observações indisfarçáveis de que aquelas regiões entre Binta, Farim e Guidage eram deficientemente percorridas, a ponto de não se transitar por viatura, antes de chegar a CCAÇ 675 nem se saia de Binta. Dá para pensar. É um diário riquíssimo, o furriel enfermeiro é porta-estandarte daquele entusiasmo que se torna compreensível lendo este diário correspondente ao primeiro ano da comissão.
Não percebo como é que este documento histórico esteve aferrolhado a sete chaves. Temos aqui matéria para o JERO se justificar…

Um abraço do
Mário


Um documento histórico, o Diário da CCAÇ 675, o Diário de JERO (2)

Beja Santos

A CCAÇ 675 está altamente mobilizada, maior entusiasmo não pode haver. JERO faz o balanço de um mês na zona, num mês percorreram 22 itinerários numa extensão de cerca de 250 quilómetros a pé e 90 viaturas.

Recorde-se que o autor se apaga no colectivo: “É de assinalar que entretanto e depois do primeiro golpe de mão a Cansenhe, onde tivemos o nosso primeiro morto e encontrámos forte resistência do inimigo, voltámos à região dois dias depois, destruindo a tabanca e um grupo de 30 casas de mato. No dia seguinte, abrimos o itinerário para Farim onde desde há uns tempos não passava tropa, levantando 31 abatizes. Parecia difícil de acreditar que soldados que um mês antes só tinham ouvido tiros em carreira de tiro, num clima difícil, numa terra em tudo diferente do que até então estavam habituados, tivessem conseguido varrer autenticamente uma zona infestada de um inimigo aguerrido e numeroso que nunca tinha sido verdadeiramente incomodado por tropa.

O 5 de Agosto é dia funesto para o capitão de Binta. Desta vez pretende-se ir até Santancoto, no limite do sector. Até ao cruzamento para Guidage não se sentiram dificuldades. Encontrou-se uma ponte destruída mas o obstáculo foi vencido. JERO escreve: “Antes de Banhima a mata fechadíssima que ladeava a estrada foi interrompida por uma bolanha por onde o caminho seguia, sobrelevando-a, durante cerca de uns trezentos metros. Era surpreendentemente bonita esta língua de água, ora negra ora esverdeada, que interrompia a floresta e de onde emergiam lindíssimas flores aquáticas de cores delicadas. Apetecia parar ali e observar demoradamente, entre o verde limoso da bolanha, as elegantes pernaltas de linda plumagem que passeando, bicada aqui, bicada acolá, arqueando o pescoço longo, iam procurando alimento entre as nuvens de insectos que sobrevoavam aquela água estagnada onde se iam cozendo ramos, folhas mortas e outros tantos detritos da floresta". “A progressão é penosa, todos caminham cientes de que o contacto está próximo. Chega um pequeno grupo inimigo, há uma intensa troca de fogo, retoma-se o quadrado, com os homens bem separados uns dos outros, centenas de metros à frente voltou a avistar-se um grupo inimigo, procura-se o contacto.

Aqui está um acidente: “Apesar de recomendado ao soldado do morteiro para ter cuidado com as árvores de grande copa que ladeavam a estrada, o seu excesso de zelo e ardor combativo para cumprir rapidamente a ordem e dizimar o grupo inimigo, levou-o a disparar a morteirada com tal precipitação que a granada foi rebentar num ramo alto de uma árvore do lado esquerdo, crivando de estilhaços o lado direito onde se encontrava nosso capitão e alguns soldados”. O “capitão do quadrado” cai ferido, um jato de sangue saia do ombro esquerdo, foi prontamente socorrido, estancou-se a hemorragia e caminhou pelo seu próprio pé para a coluna-auto. O capitão continuou a dar ordens e centenas de metros à frente o inimigo emboscado atacou. A resposta é enérgica. Numa prosa contida, o cronista dos acontecimentos volta a registar: “Quando seguíamos na região de Santancoto, surgiu dos lados de Binta o helicóptero pedido para a evacuação do nosso capitão. Montada a segurança em círculo, o helicóptero desceu. O momento que se seguiu não mais será esquecido por todos aqueles que o viveram. Alguns daqueles homens de camuflado que poucos quilómetros atrás tinham zombado das balas inimigas, desprezando a morte com um sorriso altivo nos lábios, choravam agora como crianças despedindo-se do seu capitão. Não menos comovido, este, deixava correr livremente pelo seu rosto marcado pelo sofrimento, lágrimas de que um homem não se envergonha. Todos queriam pegar na maca para o transportar até ao helicóptero; um despia o casaco camuflado para lhe aconchegar melhor a cabeça na maca do helicóptero, outro dava-lhe o seu concentrado de frutos da ração de combate para comer pelo caminho; outro ainda quase que o obrigava a beber água do seu cantil. Todos lhe queriam tocar, apertar a mão, desejar-lhe as melhoras para que voltasse depressa”. O texto continua, tem toda a dignidade para um dia enfileirar, por mérito próprio, numa antologia que fale da solidariedade na guerra.

A actividade operacional não irá abrandar, aliás a malta da companhia recebeu com regozijo a notícia de que o “capitão do quadrado” conhecia melhoras, o estilhaço não tinha atingido o pulmão esquerdo. Fez-se uma nomadização em Guidage, sob o comando interino do alferes Foitinho efectuou-se um golpe de mão a Canicó, foram abatidos quatro inimigos e capturados dois canhangulos. Logo a seguir patrulharam as matas da região S. João e Sansancoto. Para o fim do mês efectuou-se uma operação de colaboração com a CCAV 487, de Farim. Mais guerrilheiros abatidos. Em 30 de Agosto, JERO rejubila: “25 dias depois do dia fatídico em que foi ferido com gravidade, voltou ao seio da 675 o nosso comandante de companhia sendo recebido por todos com a mais sincera alegria, todos o rodeavam dando-lhe mais uma vez a certeza de ter em cada subordinado um colaborador leal e um amigo que o seguem com dedicação e confiança totais. E partem todos para o Oio, numa operação em que colaboravam com mais duas companhias. O inimigo fugiu, deixando baixas. No balanço de Agosto, JERO escreve, abrindo espaço para acontecimentos de Setembro: “Logo após a operação do Oio, em 2 do corrente, dois grupos de combate chefiados pelo nosso capitão fazem um golpe de mão na região Faer, fazendo ao inimigo mais uma baixa confirmada e destruindo dez casas de mato. Dois dias depois voltou-se à região de Canicó, para acabar de destruir a tabanca e bater as matas vizinhas.

A CCAÇ 675 criou o seu jornal de parede “O Sabre”. O soldado A. Perfeito aproveita para saudar o regresso do “capitão do quadrado”: “Não quisemos deixar de usar estas colunas para lhe testemunhar toda a amizade e gratidão que lhe votamos; que estas palavras simples de um soldado não sejam vistas como adulação mas que através delas se conheça a amplitude de um sentimento que ninguém quer esquecer”.

Binta é atacada em 14 de Setembro, no ínterim a companhia andou em bolandas escoltando viaturas civis para Guidage, saídas em coluna auto até Santancoto, encontra-se uma tabanca que é destruída, etc. Foi um ataque de pouca monta, na retirada as forças do PAIGC incendiaram algumas moranças abandonadas a cerca de um quilómetro de Binta. Como já vem sendo hábito, a tropa reage e vai emboscar, ficará conhecida no diário como a emboscada na serração. E logo a seguir ocorre um episódio a que JERO vai chamar “a noite mais longa”, um patrulhamento a Simbor e Buborim, a moral da tropa está elevada, vão colaborar com a tropa de Bigene, lá vão pela noite escura, passou-se à formação do quadrado e aproximam-se da bolanha de Buborim. Um soldado precipita-se, dispara a arma e denuncia a presença da tropa. O contacto com o inimigo ocorre pouco depois: “Penetrámos numa zona de arbustos à esquerda de uma tabanca.

Registaram-se ainda alguns tiros isolados do inimigo e fez-se uma bazucada de fumos para a tabanca”. Gente de Farim apanhou algumas bicicletas que trouxe como ronco, estava vingada a visita, através de flagelação do dia 14, a Binta. Cada dia da semana tem a sua designação lá na companhia: Domingo é o dia da bandeira; segunda é a antevéspera do correio; terça é a véspera do correio; quarta é dia do correio; dia de São Comprimido; sexta tem estatuto de sexta-feira e sábado é véspera da bandeira e saída do correio. Está-se em pleno na época das chuvas, as ruas de Binta desapareceram sobre autênticos regatos. E assim se chegou ao mês de Outubro.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9071: Notas de leitura (304): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (1) (Mário Beja Santos)

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