Cartaz de campanha internacional contra a Mutilação Genital Feminina, em inglês, francês e árabe, com apoio da União Europeia.
Foto: © International Campaign for The Eradication of Female Genital Mutilation (2002) (com a devida vénia...).
O Jorge Cabral, advogado e professor universitário, director do Instituto de Criminologia da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, deu há tempos uma entrevista a dois dos seus alunos (1), aceitando falar da sua condição, algo priviliegiada, de testemunha presencial de uma acto de mutilação genital feminina (MGF) na Guiné, em 1969.
Pelo contexto e época, percebemos que essa cereimónia decorreu nas imediações de Fá Mandinga, a nordeste de Bambadinca. O Jorge Cabral, branco, europeu, militar, comandante do Pel Caç Nat 63, deverá ter sido ser um dos raros homens, africanos e não-africanos, a assistir a este cruel ritual de passagem, ainda profundamente enraízado na cultura de certos povos, nomeadamente de África.
Pelo seu interesse e actualidade, voltamos a publicar esta entrevista (1), agora em post autónomo.
Entrevista ao Prof. Dr. Jorge Cabral (2)
P: Quando é que assistiu à excisão?
R: Em 1969.
P: Foi na Guiné Bissau?
R: Sim
P: Porque é que quis assistir?
R: Por curiosidade antropológica. Eu fui sempre uma pessoa extremamente curiosa. O problema da colonização portuguesa, que é o problema de qualquer colonização, é que o colonizador não fez um esforço para perceber a cultura do colonizado. A colonização é isto: partir da base que a nossa cultura é que é.Neste sentido, já que eu estava numa posição privilegiada, procurei compreender alguma coisa dessa cultura e, obviamente, a excisão fazia parte dela. Também procurei compreender o tipo de famílias, as relações familiares, perceber porque é que alguns cortavam as cabeças a outros, qual o significado de cortarem a cabeça e pô-la nos pântanos... procurei entender, embora não seja antropólogo.Eu nessa altura nunca tinha ouvido falar da excisão... em 69. Foi uma experiência sobretudo traumatizante. Se calhar tenho o trauma da excisão!
P: Mas foi lá de férias, estava de passagem...?
R: Não, não! eu estava na guerra!
P: Qual foi o tipo de excisão a que assistiu?
R: Foi a mais simples, foi a ablação do clítoris.
P: Em que condições foi feita?
R: As condições eram más... mas estavam várias miúdas para fazer a cerimónia. A cerimónia só tinha mulheres, a rapariga... era uma miudita de onze anos talvez... estava amarrada, era evidente que gritava, gritava bastante e era uma mulher mais velha que fez o corte para a ablação do clítoris.
P: Com que objecto?
R: Com uma faca e sem quaisquer condições de higiene, aliás, como era feita a circuncisão dos miúdos. Era feita com uma faca ou com uma lâmina.
P: Como é que foi feita a abordagem, como é que se proporcionou a hipótese de ver uma excisão?
R: Eu estava numa situação muito privilegiada, primeiro porque eu era chefe daquilo tudo, segundo porque estava só com soldados africanos e com população africana, cada soldado tinha as suas três mulheres, não sei quantos filhos, de maneira que eu era, pelo menos a um nível simbólico, uma espécie de chefe. Nesse sentido, por curiosidade, falei com mulheres, não falei com homens, e disse que estaria interessado. Primeiro negaram, disseram que os homens não podiam assistir e eu lá expliquei, lá entreguei dinheiro e lá consegui. A cerimónia não é feita na aldeia, é feita fora da aldeia.
P: Porquê?
R: Porque mesmo entre eles é dotado de algum secretismo, é uma cerimónia que tem alguma coisa de religioso por isso mesmo não é feita na aldeia, é feita na floresta. A rapariga não sabia como era. Há simultaneamente medo mas algum orgulho porque significa uma passagem para uma idade adulta, por isso há essa duplicidade, penso eu, ao nível das miúdas que têm medo, é evidente, porque as outras também já contaram como foi e que vão sofrer muito, mas ao mesmo tempo... se calhar é como usar o primeiro sutiã. Há efectivamente um certo orgulho.
P: Qual é a posição dos homens em relação à excisão?
R: Os homens concordam até porque eles não aceitam para mulher alguém que não seja excisada.Dentro da própria comunidade uma rapariga que não tenha passado pela excisão, dificilmente arranjará marido. Uma rapariga que não tenha feito a excisão é uma criança por isso elas submetem-se para evitarem a exclusão.Não podemos generalizar e falar da mulher africana porque mesmo na Guiné não são todas as etnias que fazem a excisão. Normalmente são os islamizados. Há excisões muito mais gravosas principalmente na Somália, na Etiópia.Há outro tipo de excisão, já agora. É uma excisão que se faz em Angola, eu ainda estou a começar a estudar isso, é uma excisão ao contrário, serve para mulher ter mais prazer durante o acto sexual. Ainda não vi nada disso escrito, li isso num romance. Já perguntei a várias angolanas e elas não sabem nada mas é uma excisão para dar mais prazer à mulher, não é como a outra. Não é a ablação do clítoris, é como um “desembaraçar” do clítoris e também é feita na pré-adolescência, aos 12, 13 anos.
P: A maior parte das pessoas é contra esta prática porque é uma violação dos direitos humanos...
R: Sim, embora isso hoje seja muito discutível há uma posição radical que diz que isto ofende os direitos humanos mas há vozes autorizadas que a defendem e eu já tive a oportunidade de assistir a uma conferência, creio que há três anos, em Valência, em que um professor dizia “O que é que nós temos a ver com isso?! Isso é um valor cultural, porque é que nós estamos sempre a ver de uma perspectiva europeia, europocêntrica o problema?”Por isso há vozes que discordam desta luta contra a mutilação sexual.
P: Mas hoje em dia há organizações e outras pessoas que trabalham no terreno, no sentido de dissuadirem as mulheres a praticar este tipo de ritual.
R: Pode ter o efeito contrário, não é?!, se é proibido...
P: O isolamento destas tribos torna muito mais difícil o acesso a qualquer alteração na mentalidade destas pessoas?
R: Será muito difícil. Se nós defendêssemos sempre os mesmo valores culturais não havia evolução. É precisamente a mesma coisa, os chineses partiam os pés às crianças, os aztecas apertavam os olhos, o meu avô tomava banho uma vez por mês... quer dizer esses são valores culturais. As coisas alteram-se.
P: O que é que a lei portuguesa diz acerca disto?
R: A lei portuguesa não prevê a excisão. Se aparecer algum caso será um crime contra a integridade física grave, se aparecer algum caso. Já me contaram um caso que apareceu num hospital em que os próprios médicos nunca tinham ouvido falar da excisão e não foi levantado nenhum processo crime. Os médicos apenas verificaram que havia uma ablação mas não sabiam mais nada.
P: A quem seria aplicada a medida?
R: Neste caso seria contra a mãe. Ela é que é responsável porque leva a criança e, também, contra quem fez isso. É evidente que os casos vão aparecer. Será inevitável que qualquer dia apareça um caso destes, em França já foram julgados alguns casos.
P: Quer dizer que não estamos preparados...
R: Claro que não! É natural que uma miúda apanhe uma infecção qualquer, vá para a Estefânia e... é natural! O que o médico devia fazer era participar imediatamente mas para isso é preciso que os médicos saibam o que é a excisão e que se pratica em Portugal .
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Notas de L.G.
(1) Mafalda Sofia Félix dos Santos; Paulo César Lino Belchior de Matos - Mutilação genital feminina. Trabalho apresentado na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias no Curso de Pós-Graduação em Criminologia. s/d.
(2) Vd. post de 17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXXII: Vocês não tenham medo, não fujam, sou o Cabral (Fá, 1969/71)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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